quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Scalabrini e os sinais dos tempos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo do Pe. Alfredo Gonçalves,
reflete sobre o Dia Mundial do Migrante


‘A expressão “sinais dos tempos” remete ao Evangelho de Mateus. Jesus reprova a incredulidade dos fariseus porque, sendo capazes de ler no céu os sintomas que anunciam chuva ou sol, revelam-se ao mesmo tempo incapazes de ler na terra os sinais dos tempos (Mt 16,1-4). Estes últimos, em linguagem teológica, representam as digitais de Deus no pergaminho da história. Os dedos invisíveis do Criador costuram os fatos aparentemente brutos e absurdos, conferindo-lhes um sentido mais profundo e oculto a olho nu. No ditado popular, “Deus escreve direito por linhas tortas”. É justamente esse significado teológico da história que escapa à percepção dos interlocutores de do Mestre da Galileia, aferrados que estão ao cumprimento estrito da lei. Conhecem, sim, os acontecimentos, mas não os observam com os olhos da fé ou do coração. Voltam-se para o passado, ignorando a irrupção divina no curso da trajetória humana. 


 Nessa perspectiva, o bispo de Piacenza, Itália, Giovanni Batista Scalabrini, foi capaz de ser um homem do seu tempo. Nasceu em 1837 e faleceu em 1905, tendo se revelado um protagonista do século XIX com os olhos voltados para o século XX. Historiadores do porte de Peter Gay e Eric Hobsbawn cunharam esse período como o século das revoluções e do movimento. Movimento aqui em duplo sentido: o das máquinas e o das pessoas. Estas se moviam não somente do campo para a cidade, mas também do velho continente europeu para as novas terras da América, da Austrália e da Nova Zelândia. Quanto às máquinas, basta pensar na velocidade sem precedentes do trem, do navio e do automóvel, inicialmente movidos a vapor. Tempos modernos, com “sede de inovações” e em permanente “agitação febril”, como se lê na abertura da Rerum Novarum, carta encíclica do Papa Leão XIII (1891) que inaugura a Doutrina Social da Igreja. 

 Em termos mais concretos, podemos ver isso na figura do próprio Scalabrini, que vê os migrantes não apenas como vítimas da história, mas também como sujeitos, protagonistas e profetas de novos tempos. Vale lembrar, de passagem, que sua preocupação com os emigrantes é contemporânea da preocupação da Igreja para com as condições de trabalho dos operários. Se Leão XIII se volta para estes últimos, Scalabrini está atento àqueles que sequer conseguiram trabalho na terra natal e são forçados a cruzar os mares. Em outras palavras, a solicitude com a “questão social” na Igreja é irmã gêmea da solicitude para com os desterrados e sem pátria ou, se quisermos, da Pastoral dos Migrantes.  

 Nessa perspectiva, podemos destacar quatro dimensões da ação pastoral de Scalabrini, homem de Deus, da Igreja e do povo migrante: a) deixar-se interpelar pelos embates e combates da história, especialmente em momentos de transformações estruturais; b) compadecer-se de suas vítimas, com atenção particular àquelas deixadas à margem, como na parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37); c) tomar posição firme e profética em seu favor, assumindo todas as consequências: e d) superando assim o natural egocentrismo e isolamento a que somos tentados, por nossa condição humana. 

 Primeiramente, da mesma forma que os fundadores e fundadoras de outras Congregações Religiosas, Scalabrini se impõe como um verdadeiro termômetro que mede a temperatura do seu tempo. Seus escritos, suas obras e seu comportamento mostram uma pessoa atenta a tudo que o cerca, que se deixa interpelar pelas condições de vida dos “mais necessitados” (i più bisognosi). Interpelação única, mas em quatro dimensões: saber escutar o rumor vivo e ativo dos fatos históricos; abrir-se ao grito silencioso e silenciado dos que caem à beira da estrada e da vida; entrar em diálogo com outras pessoas igualmente sensíveis ao sofrimento alheio; e, como centro de tudo, cultivar uma intensa intimidade com Deus no silêncio da oração, da meditação e da contemplação. Tanto que o século do movimento, com milhões de trabalhadores que se deslocam em todas as direções, também o move e remove. Scalabrini, de fato, não limita seu zelo de pastor à circunscrição da diocese, mas seu coração enxerga muito mais longe, inclusive do outro lado do oceano, onde os emigrantes, sem o “sorriso da pátria e o conforto da fé”, “nascem e morrem como bestas humanas”.

Depois, diante das incongruências, injustiças e contradições de tempos tão tumultuados, Scalabrini se comove com a imagem das vítimas dessa agitação histórica. No seu relato sobre a “Estação de Milão”, ícone para quem trabalha no campo da mobilidade humana, transparece uma compaixão que mergulha suas raízes nas entranhas mais íntimas de sua alma, arrancando-lhes palavras molhadas de lágrimas. “Eram migrantes!” – escreve, fortemente interpelado. E acrescenta: “Parti comovido. Uma onda de pensamentos mistos dava-me um nó no coração”. Faz lembrar os sentimentos de Jesus diante das “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). Profundamente sensível àqueles que buscam “a pátria que lhes dará o pão”, sofre com os que partem, com os que ficam e com os que se tornam vulneráveis à cobiça e à falta de escrúpulo dos “mercadores de carne humana”. 

Mas não lhe basta o impacto, a sensibilidade e a compaixão para com os trabalhadores e as famílias em fuga. O chamado “pai e apóstolo dos migrantes” se questiona: “Diante de um estado de coisas tão lastimável, eu me faço com frequência a pergunta: como poder remediar?”. E o incansável pastor dá um terceiro passo: parte para a ação solidária. Empreende viagens aos Estados Unidos, ao Brasil e à Argentina, em busca de suas “ovelhas perdidas”. Mas também não basta a ação individual ou personalista. Além do esforço pessoal, funda os diferentes Institutos para levar adiante a sua intuição, a sua obra e o que hoje chamamos de “carisma Scalabriniano”. O trabalho não pode depender de uma única pessoa, necessita de uma estrutura mínima frente à intensidade e diversidade do fenômeno migratório atual, bem como frente aos desafios de uma sociedade cada vez mais complexa. 

 Por fim, o binômio gueto/comunidade serve para ilustrar a superação de nossa tendência ao isolamento em tempos de “mares bravios”. Enquanto o gueto se encerra sobre si mesmo e se isola como caramujo, rompe todo contato com o mundo exterior como a avestruz, promove uma hostilidade recíproca e com isso se empobrece – a comunidade tende a abrir-se ao dinamismo do diálogo, aceita o intercâmbio de ideias e valores, interage com o “outro, diferente, estranho”, enriquecendo-se e enriquecendo o ambiente em que convive. Na diocese, na Igreja e na história, em tempos de revolução e turbulência, Scalabrini se revelou capaz de superar a tendência humana à fuga do mundo e à auto-suficiência, abrindo-se aos desafios cada vez mais exigentes do mundo contemporâneo. 

 Retomando as quatro dimensões e aplicando-as à chamada sociedade pós-moderna, impõe-se hoje mais do que nunca uma leitura atenta e sempre atualizada dos “sinais dos tempos”, expressão usada pelo Papa Bento XVI para designar o fenômeno das migrações, e retomada pelo Papa Francisco na mensagem para a Jornada do Migrante de 2014, com o título Migrantes e refugiados: em direção a um mundo melhor. Título que, de início, sem esquecer “o trabalho escravo, hoje moeda corrente”, sublinha que “aquilo que anima tantos migrantes e refugiados é o binômio fé e esperança”. Além disso, na mesma linha de Scalabrini, o Pontífice convida-nos a superar a “desconfiança, o fechamento e a exclusão”, em vista de um “espírito de profunda solidariedade e compaixão”. Nem precisaria insistir que se trata de uma forma de sair do gueto em direção à convivência comunitária, como nos dois retratos da Igreja primitiva (At 2,42-47; 4,32-37). 

 Tomando como modelo a Família de Nazaré, que também foi submetida “à experiência e ao rechaço” da condição de deslocamento forçado, o Papa Francisco, em sintonia com o Documento de Aparecida, conclusivo da V Assembleia dos bispos da América Latina e Caribe, não deixa de lembrar que “as migrações podem fazer nascer possibilidades de uma nova evangelização, abrir espaços ao crescimento de uma nova humanidade, preanunciada no Mistério Pascal: uma humanidade onde cada terra estrangeira é pátria e cada pátria é terra estrangeira”.



Fonte :
* Artigo na íntegra da Web Rádio Migrantes


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