* Artigo de Bento XVI, Papa Emérito
1.
Vida
Na
catequese anterior falei de um grande mestre da fé, o Padre da Igreja São
Basílio. Agora gostaria de falar do seu amigo Gregório de Nazianzeno, também
ele, como Basílio, originário da Capadócia. Teólogo ilustre, orador e defensor
a fé cristã no século IV, foi célebre pela sua eloquência e teve também, como
poeta, uma alma requintada e sensível.
Gregório
nasceu de uma família nobre. A mãe consagrou-o a Deus desde o nascimento, que
aconteceu por volta de 330. Depois da primeira educação familiar, frequentou as
mais célebres escolas da sua época : primeiro foi a Cesareia da Capadócia, onde
estreitou amizade com Basílio, futuro bispo daquela cidade, e deteve-se em
seguida noutras metrópoles do mundo antigo, como Alexandria do Egito e
sobretudo Atenas, onde encontrou de novo Basílio (cf. Oratio 14-24: SC 384, 146-180). Reevocando a sua amizade, Gregório
escreverá mais tarde : ‘Então não só eu me sentia cheio de veneração pelo meu
grande Basílio devido à seriedade dos seus costumes e à maturidade e sabedoria
dos seus discursos, mas induzia a fazer o mesmo também a outros, que ainda não
o conheciam... Guiava-nos a mesma ansiedade de saber... Esta era a nossa
competição : não quem era o primeiro, mas quem permitisse ao outro de o ser.
Parecia que tínhamos uma só alma em dois corpos’. (Oratio 43, 16.20: SC 384, 154-156.164). São palavras que
representam um pouco o auto-retrato desta alma nobre. Mas também se pode
imaginar que este homem, que estava fortemente projetado para além dos valores
terrenos, tenha sofrido muito pelas coisas deste mundo.
Tendo
regressado a casa, Gregório recebeu o Batismo e orientou-se para uma vida
monástica : a solidão, a meditação filosófica e espiritual fascinavam-no. Ele
mesmo escreverá : ‘Nada me parece maior
do que isto : fazer calar os próprios sentidos, sair da carne do mundo,
recolher-se em si mesmo, não se ocupar mais das coisas humanas, a não ser das
que são estritamente necessárias; falar consigo mesmo e com Deus, levar uma
vida que transcende as coisas visíveis; levar na alma imagens divinas sempre
puras, sem misturar formas terrenas e errôneas; ser verdadeiramente um espelho
imaculado de Deus e das coisas divinas, e tornar-se tal cada vez mais, tirando
luz da luz...; gozar, na esperança presente, o bem futuro, e conversar com os
anjos; ter já deixado a terra, mesmo estando na terra, transportado para o alto
com o espírito’ (Oratio 2, 7: SC
247, 96).
Como
escreve na sua autobiografia (cf. Carmina
(histórica) 2, 1, 11 De vita sua
340-349: PG 37, 1053), recebeu a ordenação presbiteral com uma certa
resistência, porque sabia que depois teria que ser Pastor, ocupar-se dos
outros, das suas coisas, e portanto já não se podia recolher só na meditação.
Contudo, aceitou depois esta vocação e assumiu o ministério pastoral em total
obediência, aceitando, como com frequência lhe aconteceu na sua vida, ser guiado
pela Providencia aonde não queria ir (cf. Jo
21, 18). Em 371, o seu amigo Basílio, bispo de Cesareia, contra o desejo do
próprio Gregório, quis consagrá-lo bispo de Sasima, uma cidade extremamente
importante da Capadócia. Mas ele, devido a várias dificuldades, nunca tomou
posse dela e permaneceu na cidade de Nazianzo.
Por
volta de 379, Gregório foi chamado a Constantinopla, a capital, para guiar a
pequena comunidade católica fiel ao Concílio de Niceia e à fé trinitária. A
maioria aderia, ao contrário, ao arianismo, que era ‘politicamente correto’ e considerado pelos imperadores útil sob o
ponto de vista político. Deste modo, ele encontrou-se em condições de minoria,
circundado por hostilidades.
Na
pequena igreja de Anastasis pronunciou cinco Discursos teológicos (Orationes
27-31: SC 250, 70-343) precisamente para defender e tornar também inteligível a
fé trinitária, a habilidade do raciocínio, que faz compreender realmente que
esta é a lógica divina. E também o esplendor da forma os torna hoje fascinantes.
Gregório recebeu, devido a estes discursos, a designação de ‘teólogo’. Assim é chamado na Igreja
ortodoxa : o ‘teólogo’. E isto porque
para ele a teologia não é uma reflexão meramente humana, ou muito menos apenas
o fruto de especulações complicadas, mas deriva de uma vida de oração e de
santidade, de um diálogo assíduo com Deus. E precisamente assim mostra à nossa
razão a realidade de Deus, o mistério trinitário. No silencio contemplativo,
imbuído de admiração diante das maravilhas do mistério revelado, a alma acolhe
a beleza e a glória divina.
Enquanto
participava no segundo Concílio Ecumenico de 381, Gregório foi eleito bispo de
Constantinopla e assumiu a presidência do Concílio. Mas desencadeou-se
imediatamente contra ele uma grande oposição, e a situação tornou-se
insustentável. Para uma alma tão sensível estas inimizades eram insuportáveis.
Repetia-se o que Gregório tinha lamentado anteriormente com palavras ardentes :
‘Dividimos Cristo, nós que tanto amávamos
Deus e Cristo! Mentimos uns aos outros devido à Verdade, alimentamos
sentimentos de ódio devido ao Amor, dividimo-nos uns dos outros!’ (Oratio 6, 3: SC 405, 128). Chega-se
assim, num clima de tensão, à sua demissão. Na catedral apinhada, Gregório
pronunciou um discurso de despedida com grande afeto e dignidade (cf. Oratio 42: SC 384, 48-114). Concluía a
sua fervorosa intervenção com estas palavras : ‘Adeus, grande cidade, amada por Cristo... Meus filhos, suplico-vos
guardai o depósito (da fé) que vos foi confiado (cf. 1Tm 6, 20), recordai-vos dos
meus sofrimentos (cf. Cl 4, 18).
Que a graça do Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com todos vós’ (cf. Oratio 42, 27: SC 384, 112-114).
Regressou
a Nazianzo, e por cerca de dois anos dedicou-se ao cuidado pastoral daquela
comunidade cristã. Depois retirou-se definitivamente em solidão na vizinha
Arianzo, a sua terra natal, dedicando-se ao estudo e à vida ascética. Nesse
período compôs a maior parte da sua obra poética, sobretudo autobiográfica ; o De vita sua, uma releitura em versos do
próprio caminho humano e espiritual, um caminho exemplar de um cristão
sofredor, de um homem de grande interioridade num mundo cheio de conflitos. É
um homem que nos faz sentir a primazia de Deus e por isso fala também a nós, a
este nosso mundo : sem Deus o homem perde a sua grandeza, sem Deus não há
verdadeiro humanismo. Por isso, ouçamos esta voz e procuremos conhecer também
nós o rosto de Deus. Numa das suas poesias escrevera, dirigindo-se a Deus : ‘Sê benigno, Tu, o Além de tudo’ (Carmina (dogmática) 1, 1, 29: PG 37, 508).
E em 390, Deus acolheu nos Seus braços este servo fiel, que com inteligência
perspicaz O tinha defendido nos escritos, e com tanto amor O tinha cantado nas
suas poesias.
2.
Pensamento
Ao
longo dos retratos dos grandes Padres e Doutores da Igreja que procuro oferecer
nestas catequeses, ... gostaria ainda de completar o retrato deste grande
mestre. Procuraremos reunir alguns dos seus ensinamentos. Refletindo sobre a
missão que Deus lhe tinha confiado, São Gregório Nazianzeno concluía : ‘Fui criado para me elevar até Deus com as
minhas ações!’ (Oratio 14, 6 de pauperum amore: PG: 35, 865). De
fato, ele colocou ao serviço de Deus e da Igreja o seu talento de escritor e de
orador. Compôs numerosos discursos, várias homilias e panegíricos), muitas
cartas e obras poéticas (quase 18.000 versos) : uma atividade verdadeiramente
prodigiosa. Tinha compreendido que era essa a missão que Deus lhe confiara : ‘Servo da Palavra, eu adiro ao ministério da
Palavra; que eu nunca consinta o descuido deste bem. Eu aprecio esta vocação e
desejo-a, ela proporciona-me mais alegria do que todas as outras coisas juntas’
(Oratio 6, 5: SC 405, 134; cf. também
Oratio 4, 10).
O
Nazianzeno era um homem calmo e na sua vida procurou fazer sempre obra de paz
na Igreja do seu tempo, dilacerada por discórdias e heresias. Com audácia
evangélica esforçou-se por superar a própria timidez para proclamar a verdade
da fé. Sentia profundamente o anseio de se aproximar de Deus, de se unir a Ele.
É o que ele mesmo expressa numa poesia, na qual escreve : entre as ‘grandes flutuações do mar da vida, aqui e
além por ventos impetuosos, .../uma só coisa me era querida, unicamente a minha
riqueza,/conforto e olvido das canseiras, /a luz da Trindade Santa’. (Carmina (histórica) 2, 1, 15: PG 37,
1250 ss.).
Gregório
fez resplandecer a luz da Trindade, defendendo a fé proclamada no Concílio de
Niceia : um só Deus em três Pessoas iguais e distintas Pai, Filho e Espírito
Santo ‘tríplice luz que num único/
esplendor se reúne’ (Hino vespertino
: Carmina (histórica) 2, 1, 32: PG 37, 512). Portanto, afirma sempre
Gregório num seguimento de São Paulo (1Cor 8,6), ‘para mim existe um Deus, o Pai, do qual tudo provém; um Senhor, Jesus
Cristo, por meio do qual tudo existe; e um Espírito Santo, no qual tudo existe’
(Oratio 39, 12: SC 358, 172).
Gregório
pôs em grande relevo a humanidade plena de Cristo : para redimir o homem na sua
totalidade de corpo, alma e espírito, Cristo assumiu todas as componentes da
natureza humana, porque de outro modo o homem não teria sido salvo. Contra a
heresia de Apolinário, o qual defendia que Jesus não tinha assumido uma alma
racional, Gregório enfrenta o problema à luz do mistério da salvação : ‘O que não foi assumido, não foi curado’
(Ep. 101, 32: SC 208, 50), e se
Cristo não tivesse sido ‘dotado de
intelecto racional, como teria podido ser homem?’ (Ep. 101, 34: SC 208,50). Era precisamente o nosso intelecto, a
nossa razão que tinha e tem necessidade da relação, do encontro com Deus em
Cristo. Tornando-se homem, Cristo deu-nos a possibilidade de nos tornarmos por
nossa vez como Ele. O Nazianzeno exorta : ‘Procuremos
ser como Cristo, porque também Cristo se tornou como nós : tornar-nos deuses
por meio d’Ele, dado que Ele mesmo, através de nós, se tornou homem. Assumiu
sobre si o pior, para nos doar o melhor’ (Oratio 1, 5: SC 247, 78).
Maria,
que deu a Cristo a natureza humana, é verdadeira Mãe de Deus (Theotókos : cf. Ep. 101, 16: SC 208, 42), e em vista da sua altíssima missão foi ‘pré-purificada’ (Oratio 38, 13: SC 358, 132, quase um distante prelúdio do dogma da
Imaculada Conceição). Maria é proposta como modelo aos cristãos, sobretudo às
virgens, e como socorro a ser invocada nas necessidades (cf. Oratio 24, 11: SC 282, 60-64).
Gregório
recorda-nos que, como pessoas humanas, devemos ser solidários uns com os
outros. Escreve : ‘Todos nós somos uma só
coisa no Senhor’ (cf. Rm 12, 5),
ricos e pobres, escravos e livres, sadios e doentes; e única é a cabeça da qual
tudo provém : Jesus Cristo. E como fazem os membros de um só corpo, cada um se
ocupe do outro, e todos de todos. Depois, referindo-se aos doentes e às pessoas
em dificuldade, conclui : ‘Esta é a única
salvação para a nossa carne e para a nossa alma : a caridade para com eles’
(Oratio 14, 8 de pauperum amore: PG 35, 868ab).
Gregório
ressalta que o homem deve imitar a bondade e o amor de Deus, e portanto
recomenda : ‘Se és sadio e rico, alivia a
necessidade de quem é doente e pobre; se não caíste, socorre quem caiu e vive
no sofrimento; se és feliz, conforta quem está triste; se tens sorte, ajuda
quem está aflito pela desventura. Dá a Deus uma prova de reconhecimento, porque
és um dos que podem beneficiar, e não dos que têm necessidade de ser
beneficiados... Sê rico não só de bens, ou melhor, unicamente dela. Supera a
fama do teu próximo desaventurado, imitando a misericórdia de Deus’ (Oratio 14, 26 de pauperum amore: PG 35, 892bc).
Gregório
ensina-nos antes de tudo a importância e a necessidade da oração. Ele afirma
que ‘é necessário recordar-se de Deus com
mais frequência de quanto se respira’ (Oratio
27, 4: PG 250, 78), porque a oração é o encontro da sede de Deus com a nossa
sede. Deus tem sede de que nós tenhamos sede d’Ele (cf. Oratio 40, 27: SC 38, 260). Na oração devemos dirigir o nosso
coração para Deus, a fim de nos entregarmos a Ele como oferenda para purificar
e transformar. Na oração vemos tudo à luz de Cristo, deixamos cair as nossas
máscaras, imergimo-nos na verdade e na escuta de Deus, alimentando o fogo do
amor.
Numa
poesia que é ao mesmo tempo meditação sobre a finalidade da vida e vocação
implícita para Deus, Gregório escreve : ‘Tens
uma tarefa, ó minha alma/ Uma grande tarefa, se quiseres./ Perscruta seriamente
a ti mesma, / o teu ser, o teu destino;/ de onde vens e onde deverás pousar;/
procura conhecer se é vida a que vives/ ou se há algo mais./ Tens uma tarefa, ó
minha alma,/ portanto purifica a tua vida:/ considera, por favor, Deus e os
Seus mistérios,/ indaga o que há antes deste universo/ e o que ele é para ti,/
de onde veio, e qual será o seu destino./ Eis a tua tarefa,/ ó minha alma,/
purifica, portanto a tua vida’ (Carmina
(historica) 2, 1, 78: PG 37, 1425-1426). Continuamente o Santo Bispo pede
ajuda a Cristo, para se erguer e retomar o caminho : ‘Fui desiludido, ó meu Cristo,/ pelo meu demasiado presumir:/ das alturas
caí muito em baixo./ Mas eleva-me de novo agora, porque vejo/ que por mim
próprio me enganei;/ se ainda confiar demais em mim mesmo,/ cairei de novo, e a
queda será fatal’ (Carmina (historica)
2, 1, 67: PG 37, 1408). Portanto, Gregório sentiu a necessidade de se aproximar
de Deus para superar o cansaço do próprio eu. Experimentou o impulso da alma, a
vivacidade de um espírito sensível e a instabilidade da felicidade efêmera.
Para ele, no drama de uma vida sobre a qual pesava a consciência da própria
debilidade e da própria miséria, a experiência do amor de Deus sempre teve a
supremacia.
Tens
uma tarefa, alma, diz-nos São Gregório, a tarefa de encontrar a verdadeira luz,
de encontrar a verdadeira altura da tua vida. E a tua vida é encontrar-te com
Deus, que tem sede da nossa sede.
(8 de agosto de 2007)
(22 de agosto de 2007)
Festa litúrgica : 02 de Janeiro, tal qual São Basílio
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.
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