* Artigo de Bento XVI, Papa Emérito
1. Vida
Nesta catequese queremos recordar um
dos grandes Padres da Igreja, São Basílio, definido pelos textos litúrgicos
bizantinos como um ‘luminar da Igreja’. Foi um grande bispo do século
IV, para quem tanto a Igreja do Oriente como a do Ocidente olham com admiração
pela santidade de vida, pela excelência da doutrina e pela síntese harmoniosa
de dotes especulativos e práticos. Nasceu por volta de 330 numa família de
santos, ‘verdadeira igreja doméstica’, que vivia num clima de profunda
fé. Completou os vários estudos com os melhores mestres de Atenas e de
Constantinopla. Insatisfeito com os seus sucessos mundanos, e percebendo que
tinha desperdiçado muito tempo nas vaidades, ele mesmo confessa : ‘Um dia,
como que acordando de um sono profundo, dirigi-me para a admirável luz da
verdade do Evangelho... e chorei sobre a minha vida miserável’ (cf. Ep. 223: PG 32, 824a). Atraído
por Cristo, começou a olhar para Ele e a ouvi-Lo somente a Ele (cf. Moralia 80, 1: PG 31, 860bc). Com
determinação, dedicou-se à vida monástica na oração, na meditação das Sagradas
Escrituras e dos escritos dos Padres da Igreja, e no exercício da caridade (cf. Epp. 2 e 22), seguindo também o
exemplo da irmã, Santa Macrina, que já vivia no ascetismo monástico. Depois foi
ordenado sacerdote e, por fim, em 370, bispo de Cesaréia da Capadócia, na atual
Turquia.
Mediante a pregação e os escritos,
desempenhou uma intensa atividade pastoral, teológica e literária. Com sábio
equilíbrio, soube unir o serviço às almas e a dedicação à prece e à meditação
na solidão. Valendo-se da sua experiência pessoal, favoreceu a fundação de
muitas ‘irmandades’ ou comunidades de cristãos consagrados a Deus, que
visitava frequentemente (cf. GREGÓRIO NAZIANZENO, Oratio 43, 29 in laudem Basilii:
PG 36, 536b). Com a palavra e com os escritos, muitos dos quais chegaram até
nos (cf. Regulae brevius
tractatae, Proemio: PG 31, 1080ab), exortava-os a viver e a progredir na
perfeição. Das suas obras hauriram também vários legisladores do monaquismo
antigo, entre os quais São Bento, que considerava Basílio como o seu mestre
(cf. Regula 73, 5). Na realidade, ele criou um
monaquismo muito particular : não fechado à comunidade da Igreja local, mas
aberto a ela. Os seus monges faziam parte da Igreja particular, eram o seu
núcleo animador que, precedendo os outros fiéis no seguimento de Cristo e não
só na fé, mostrava a firme adesão a Cristo, o amor a Ele, sobretudo nas obras
de caridade. Estes monges, que tinham escolas e hospitais, estavam ao serviço
dos pobres e tinham escolas e hospitais, estavam ao serviço dos pobres e
mostraram assim a integridade da vida cristã. O beato João Paulo II, falando do
monaquismo, escreveu : ‘Muitos consideram que aquela estrutura principal da
vida da Igreja que é o monaquismo foi definida, para todos os séculos,
principalmente por São Basílio; ou que, pelo menos, não foi definida na sua
natureza mais própria sem o seu contributo decisivo’ (Carta Apostólica Patres Ecclesiae, nr. 2).
Como bispo e Pastor da sua vasta
diocese, Basílio preocupou-se constantemente com as difíceis condições
materiais em que viviam os fiéis; denunciou com firmeza os males;
comprometeu-se a favor dos mais pobres e marginalizados; interveio também junto
dos governantes para aliviar os sofrimentos da população, sobretudo em momentos
de calamidade; vigiou pela liberdade da Igreja, opondo-se também aos poderosos
para defender o direto de professar a verdadeira fé (cf. GREGÓRIO NAZIANZENO, Oratio 43, 48-51 in laudem Basilii:
PG 36, 557c-561c). De Deus, que é amor e caridade, Basílio deu um válido
testemunho com a construção de vários albergues para os necessitados, (cf.
BASÍLIO, Ep. 94: PG 32,
488bc), quase uma cidade da misericórdia, que dele recebeu o nome de Basilíada
(cf. Sozomento, Historia
Eccl. 6, 34: PG 67, 1397a). Ela está nas origens das modernas instituições
hospitalares de internamento e de cuidado dos doentes. Consciente de que ‘a
liturgia é o ápice para o qual tence a ação da Igreja, e ao mesmo tempo a fonte
da qual jorra toda a sua virtude’ (Sacrosanctum concilium, nr. 10),
Basílio, embora sempre preocupado em realizar a caridade que é a prova da fé,
foi também um sábio ‘reformador liturgico’ (cf. GREGÓRIO NAZIANZENO, Oratio 43, 34 in laudem Basilii:
PG 36, 541c). Com efeito, deixou-nos uma grande oração eucarística (ou
anáfora), que dele recebe o nome, e deu um ordenamento fundamental à oração e à
salmodia : pelo seu impulso o povo amou e conheceu os Salmos, e recitava-os
também de noite (cf. BASÍLIO, In
Psalmum, 1-2: PG 29, 212a-213c). E assim vemos como a liturgia, a adoração,
a oração com a Igreja e a caridade caminham juntas, condicionando-se
reciprocamente.
Com zelo e coragem, Basílio soube
opor-se aos hereges, que negavam que Jesus Cristo fosse Deus como o Pai (cf.
BASÍLIO, Ep. 9, 3: PG 32,
272a; Ep. 52, 1-3: PG 32,
392b-396a; Adv. Eunomium,
1, 20: PG 29, 556c). Analogamente, contra aqueles que não aceitavam a divindade
do Espírito Santo, ele afirmou que também o Espírito é Deus e ‘deve ser com
o Pai e com o Filho igualmente numerado e glorificado’ (cf. De Spiritu Sancto: SC 17bis,
348). Por isso, Basílio é um dos grandes Padres que formularam a doutrina sobre
a Trindade: o único Deus, precisamente porque é amor, é um Deus em
tres Pessoas , que formam a unidade mais
profunda que existe, a unidade divina.
No seu amor a Cristo e ao Seu
Evangelho, o grande Santo da Capadócia comprometeu-se também em recompor as
divisões dentro da Igreja (cf. Epp.
70 e 243), empenhando-se para que todos se convertessem a Cristo e à Sua
Palavra (cf. De iudicio 4: PG 31, 660b-661a), força
unificadora à qual todos os crentes devem obedecer (cf. ibidem, 1-3: PG 31, 653a-656c).
Em conclusão, Basílio entregou-se completamente no serviço fiel à Igreja e no
exercício multiforme do ministério episcopal. Segundo o programa por ele mesmo
traçado, tornou-se ‘apóstolo e ministro de Cristo, dispensador dos mistérios
de Deus, arauto do reino, modelo e regra de piedade, olho do corpo da Igreja,
pastor das ovelhas de Cristo, médico piedoso, pai e sustento, cooperador de
Deus, agricultor de Deus, construtor o templo de Deus’ (cf. Moralia 80, 11-20: PG 31, 864b-868b).
Este é o programa que o santo bispo
entrega aos anunciadores da Palavra, ontem e hoje, um programa que ele mesmo se
comprometeu generosamente a por em
prática. Em 379,
Basílio, não ainda cinquentenário, consumido pelos cansaços e pela ascese, retornou
para Deus, ‘na esperança da vida eterna através de Nosso Senhor Jesus Cristo’
(De Baptismo 1, 2, 9). Ele
foi um homem que viveu verdadeiramente com o olhar fixo em
Cristo. Foi um
homem do amor ao próximo. Cheio da esperança e da alegria da fé, Basílio
mostra-nos como ser realmente cristãos.
2. Pensamento
Hoje desejo simplesmente
relacionar-me com a última catequese, que tinha como tema a vida e os escritos
de São Basílio, bispo na atual Turquia, na Ásia Menor, no século IV. A existência
deste grande santo e suas obras são ricas de temas de reflexão e de
ensinamentos válidos também para nós hoje.
Antes de tudo a chamada ao mistério
de Deus, que permanece a referência mais significativa e vital para o homem. O
padre é o ‘princípio de tudo e a causa de ser do que existe, a raiz dos
vivos’ (Hom. 15, 2 de fide: PG 31, 465c), e sobretudo é o ó Pai de
Nosso Senhor Jesus Cristo’ (Anaphora sancti Basilii). Remontando a Deus
através das criaturas, nós ‘tomamos consciência da Sua bondade e da
Sua sabedoria’ (BASÍLIO, Contra
Eunomium 1, 14: PG 29, 544b).
O Filho é a ‘imagem da bondade do Pai e sigilo de forma igual a Ele’
(cf. Anaphora sancti Basilii).
Com a Sua obediência e com a Sua paixão, o Verbo encarnado realizou a missão do
Redentor do homem (cf. BASÍLIO, In
Psalmum 48, 8: PG 29, 452ab;
cf. também De Baptismo 1, 2: SC 357, 158).
Por fim, ele fala amplamente do
Espírito Santo, ao qual dedicou um livro inteiro. Revela-nos que o Espírito
anima a Igreja, a enche dos seus dons, a torna santa. A luz maravilhosa do
mistério divino reflete-se sobre o homem, imagem de Deus, e eleva a sua
dignidade. Olhando para Cristo, compreende-se plenamente a dignidade do
homemBasílio exclama : ‘(Homem), conscientiza-te da tua grandeza considerando o preço
derramado por ti : olha para o preço do eu resgate, e compreende a tua
dignidade!’ (In Psalmum 48,
8: PG 29, 452b). Em particular, o cristão, vivendo em conformidade com o
Evangelho, reconhece que os homens são todos irmãos entre eles; que a vida é
uma administração dos bens recebidos de Deus, pelos quais cada um é responsável
perante os outros, e quem é rico deve ser como um ‘executor das ordens de
Deus benfeitor’ (Hom. 6 de
avaritia: PG 32, 1181-1196). Todos nós devemos ajudar e cooperar como os
membros de um corpo (Ep 203,
3).
E ele, nas suas homilias, usou também
palavras corajosas, fortes sobre este ponto. De fato, quem segundo o mandamento
de Deus deseja amar o próximo como a si mesmo, ‘não deve possuir nada mais
de quanto possui o seu próximo’(Hom. in divites: PG 31, 281b).
Em tempos de carestias e de calamidades,
com palavras apaixonadas o santo bispo exortava os fiéis a ‘não se mostrarem
mais cruéis que as feras..., apropriando-se do que é comum, e possuindo
sozinhos o que é de todos’ (Hom. tempo famis: PG 31, 325a). O
pensamento profundo de Basílio sobressai bem nesta frase sugestiva : ‘Todos
os necessitados olham para as nossas mãos, como nós próprios olhamos para as de
Deus, quando estamos em necessidade’. É muito apropriado o elogio
feito por Gregório de Nazianzeno, que depois da morte de Basílio disse : ‘Basílio
persuadiu-nos de que nós, sendo homens, não devemos desprezar os homens, nem
ultrajar Cristo, cabeça comum de todos, com a nossa desumanidade para com os
homens; antes, nas desgraças dos outros, devemos beneficiar nós próprios, e
fazer empréstimo a Deus da nossa misericórdia, porque temos necessidade de
misericórdia’. (GREGÓRIO NAZIANZENO, Oratio 43, 63: PG 36, 580b). São palavras
muito atuais. Vemos como São Basílio é realmente um dos padres da Doutrina
Social da Igreja.
Além disso, Basílio recorda-nos que
para manter vivo em nós o amor a Deus e aos homens é necessária a Eucaristia,
alimento adequado para os batizados, capaz de alimentar as novas energias
derivantes do Batismo (cf. De
Baptismo 1, 3: SC 357, 192).
É motivo de imensa alegria poder participar na Eucaristia (Moralia 21, 3: PG 31, 741a), instituída ‘para
conservar incessantemente a recordação daquele que morreu e ressuscitou por
nós’ (Moralia 80, 22: PG
31, 869b). A Eucaristia, imenso dom de Deus, tutela em cada um de nós a
recordação do selo batismal e permite vier em plenitude e fidelidade a graça do
Batismo. Por isto, o santo bispo recomenda a comunhão frequente, também
quotidiana : ‘Comungar até todos os dias recebendo o santo corpo e sangue de
Cristo é bom e útil; porque Ele mesmo diz claramente : ‘Quem come a Minha carne
e bebe o Meu sangue terá a vida eterna’. (Jo 6, 54). Portanto, quem duvidará de que
comungar continuamente da vida não seja viver em plenitude?’ (Ep. 93: PG
32, 484b). A Eucaristia, em síntese, é-nos necessária para acolhermos em nós a
verdadeira vida, a vida eterna (cf. Moralia 21, 1: PG 31, 737c).
Por fim, Basílio interessou-se
naturalmente também daquela porção eleita do povo de Deus que são os jovens, o
futuro da sociedade. A eles dirigiu um discurso sobre o modo de tirar proveito
da cultura pagã desse tempo. Com muito equilíbrio e abertura, ele reconhece que
na literatura clássica, grega e latina, se encontram exemplos de virtude. Estes
exemplos de vida reta podem ser úteis para o jovem cristão em busca da verdade,
do modo reto de viver (cf. Ad
Adolescentes 3). Por isso, é
preciso tirar dos textos dos autores clássicos tudo o que é conveniente e
conforme a verdade: assim, com atitude crítica e aberta – de fato trata-se de
um verdadeiro e próprio ‘discernimento’ –, os jovens crescem em
liberdade. Com a
célebre imagem das abelhas, Basílio recomenda : ‘Como as abelhas sabem tirar
das flores o mel, diferenciando-se dos outros animais que se limitam a gozar do
perfume e da cor das flores, assim também destes escritos (...) se pode obter
algum proveito para o espírito. Devemos utilizar estes livros seguindo em tudo
o exemplo das abelhas. Elas não vão indistintamente a todas as flores, nem
sequer procuram tirar tudo das flores nas quais pousam, mas tiram só o que
serve para a elaboração do mel, e deixam o resto. E nós, se formos sábios,
tiraremos daqueles escritos o que se adapta a nós e é conforme à verdade, e
deixaremos o resto’ (Ad Adolescentes 4). Basílio, sobretudo, recomenda aos
jovens que crescam nas virtudes, no reto modo de viver : ‘Enquanto os outros
bens (...) passam deste para aquele como no jogo dos dados, só a virtude é um
bem inalienável e permanece durante a vida e depois da morte’ (Ad
Adolescentes 5).
Queridos irmãos e irmãs, parece-me
que se pode dizer que este Padre de outrora fala também a nós e nos diz coisas
importantes. Antes de tudo, esta participação atenta, crítica e criativa para a
cultura de hoje. Depois, a responsabilidade social : este é um tempo no qual,
num mundo globalizado, também os povos geograficamente distantes são realmente
o nosso próximo. Portanto, a amizade com Cristo, o Deus com rosto humano. E,
por fim, o conhecimento e o reconhecimento a Deus Criador, Pai de todos nós :
só abertos a este Deus, Pai comum, podemos construir um mundo justo e um mundo
fraterno.
(4 de julho de 2007)
(1 de agosto de 2007)
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.
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