domingo, 12 de outubro de 2025

Grandes figuras da vida monástica - Viktor Josef Dammertz

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

 Viktor Josef Dammertz (1929-2020)

*Artigo de Dom Cyrill Schäffer, OSB

Mosteiro de Santa Ottilien, Alemanha

 

‘Josef Dammertz nasceu no dia 8 de junho 1929 em Schaephuysen, no Baixo Reno. A família materna era dos Países Baixos. O pai, Wilhelm Dammertz cresceu numa quinta de Schaephuysen, até que, depois do seu casamento com Engelina Schepens, retomou uma mercearia que seu sogro, já falecido, tinha começado. Tiveram dois filhos, Josef e Marga.

Muito engajado na ação católica de juventude Neudeutschland aonde aprofundou sua fé e a arte de servir, Josef no fim dos estudos anunciou a seus pais que queria ser padre.

Foi assim que no segundo semestre de 1950 entrou no Collegium Borromaeum, o seminário da Diocese de Münster. Continuou seus estudos em Innsbruck, morando no colégio jesuíta Caniisianum. Na universidade pôde escutar professores conhecidos como Andreas Jungmann e Karl Rahner. Já em Innsbruck tinha conhecido, no terceiro ano de estudos, o mosteiro missionário de Sankt Ottilien na Baviera, e sentiu-se atraído pelo espírito de Igreja universal e a vida religiosa que aí reinava.

Josef Dammertz entrou, assim, em Sankt Ottilien no dia 12 de setembro de 1953, aonde recebeu o nome de Viktor, em memória do mártir paleocristão Victor de Xanten. Depois da sua primeira profissão, continuou os estudos de teologia na faculdade beneditina de Santo Anselmo em Roma, aonde se licenciou. Depois de ter terminado o percurso romano foi ordenado sacerdote em 1957. Seu lema como abade primaz exprime claramente sua visão de um sacerdócio de serviço : ‘Sacerdote de Jesus Cristo a serviço dos homens’.

Foi-lhe pedido que fizesse Direito Canônico, pois o abade Dom Suso precisava de um secretário que tivesse conhecimentos de direito canônico.  Doutorou-se ‘summa cum laude’, com uma tese sobre o ‘Direito constitucional das congregações monásticas beneditinas na história e no presente’. No fundo, com esta tese e levando em conta suas capacidades intelectuais, poderia ter entrado numa carreira acadêmica, mas nunca se pensou seriamente nisso.

No 6º Capítulo Geral de Sankt Ottilien, em 1960, P. Viktor foi chamado a ser secretário da Congregação, e o Arquiabade Suso nomeou-o, ao mesmo tempo, seu secretário pessoal. Mesmo se o cargo de secretário abacial é mais secundário, P. Viktor pôde exercer uma influência de moderador sobre o seu superior e equilibrar as tensões entre o arquiabade e a comunidade. Como especialista da Congregação em Direito Canônico, P. Viktor teve um papel essencial na revisão das Constituições dos Beneditinos Missionários, adotadas em 1970. Sua colaboração de consultor foi igualmente apreciada por outras Congregações beneditinas e não beneditinas. Participou também, de modo mais ou menos intensivo, na elaboração do direito próprio pós-conciliar de várias congregações beneditinas.

O arquiabade Suso teve de renunciar aos 65 anos, por causa de um câncer, no começo de 1975. Quando P. Viktor foi eleito seu sucessor, no dia 8 de janeiro de 1975, não foi uma grande surpresa.

Como novo abade do mosteiro, P. Viktor continuou a cuidar de seu predecessor, que tinha aguentado até à eleição, mas que veio a falecer alguns dias mais tarde, no dia 12 de fevereiro.

O arquiabade Dammertz escolheu como lema : ‘Iter para tutum’. Esta frase programática tirada do hino ‘Ave maris stella’ expressa por um lado sua piedade marial, mas também a consciência de viver em tempos de mudanças tumultuosas, durante os quais é preciso uma estrela que guia.

Assumindo suas funções, o arquiabade Viktor entrou numa grande rede de obrigações, e sobretudo de esperas. Tratava-se sobretudo de intervenções na diocese de Augsbourg quando das missas solenes, confirmações e manifestações de todo o tipo, no mosteiro e com seus numerosos anexos, como a escola, as paróquias, as cinco casas dependentes, as empresas e ateliers, e evidentemente, junto dos mosteiros da Congregação, que esperavam orientações da parte do Presidente da Congregação, sobretudo nas Igrejas jovens. O seu mandato de arquiabade só durou dois anos e oito meses, mas ele pôde contribuir para dar uma certa estabilidade à Congregação, no tempo pós-concílio. No seu próprio mosteiro ele pôde realizar a integração de um liceu (escola secundária) na rede escolar da diocese de Augsbourg, o que assegurou a perenidade da escola.

Em setembro 1977, o arquiabade participou do congresso dos abades da Confederação beneditina em Roma, aonde já era, há anos, secretário da Comissão Canónica, e tinha tido um papel determinante no refazer o direito próprio. Além da questão do futuro do Colégio de Santo Anselmo, o congresso também se debruçou sobre o novo direito religioso dos beneditinos. O arquiabade Viktor, como canonista, teve uma exposição inovadora sobre o assunto. Pouco depois, no dia 20 de setembro, o Abade Primaz Rembert Weakland surpreendeu os abades reunidos anunciando-lhes que acabava de ser nomeado arcebispo de Milwaukee, e que deixava as funções de Abade Primaz. Novas eleições foram imediatamente organizadas para encontrar um sucessor. A partir do dia 22 de setembro as vozes dos abades concentraram-se no arquiabade de Sankt Ottilien, que não somente estava à frente de um dos maiores mosteiros da ordem beneditina, mas tinha igualmente a competência em direito religioso, um assunto urgente. A comunidade de Sankt Ottilien foi avisada do que se passava em Roma. Mas quando o Prior Paulus Hörger enviou um fax em nome da comunidade ‘por favor, não aceite por nenhum pretexto’, o arquiabade já tinha respondido favoravelmente ao voto do Congresso dos abades e, deixava assim sua função de abade do mosteiro e de presidente da congregação de Sankt Ottilien.

Nos anos que se seguiram o Abade primaz Viktor conseguiu apaziguar as relações agitadas no seio do Colégio beneditino. Ele tinha a seu lado colaboradores altamente qualificados na pessoa do reitor Magnus Löhrer (1928-1999) e do Prior Gerhard Békès (1915-1999). Apesar do número de estudantes da Ordem ter baixado, a faculdade conheceu um período de prosperidade científica, graças a um certo número de professores de qualidade, que elaboraram juntos, entre outras, a obra de referência pós-conciliar ‘Mysterium Salutis’ (1965-1976).

O Abade Primaz deu muitas ajudas para a revisão necessária das Constituições da Congregação; participou na refundação do direito religioso e foi membro da Comissão para a interpretação autêntica do direito canónico. Depois de 14 anos passados à frente da Confederação Beneditina, foi reeleito duas vezes, o Abade Primaz Viktor visitou mais de 750 comunidades femininas e masculinas no mundo inteiro, em inúmeras viagens. Um dos pontos altos do seu mandato foi a organização do grande jubileu de São Bento em 1980, quando se celebraram os 1500 anos do nascimento do pai da Ordem Beneditina. Por esta ocasião 500 abades da família beneditina reuniram-se em Roma. Em Santo Anselmo, a biblioteca situada na antiga cripta da igreja abacial é a principal herança arquitetônica da atividade do Primaz.

Numa entrevista em 1992, expressou sua ideia do ministério dizendo que o abade Primaz deve promover nos mosteiros beneditinos a consciência que fazem parte de uma ‘grande comunidade mundial’. Face às forças centrífugas no seio da Ordem, o Abade Primaz tentou promover a unidade sem, no entanto, reduzir a diversidade legítima e vital no seio da Ordem. Seu serviço de mediação comportava também a construção de pontes entre as irmãs e as monjas da Ordem, que na conceção da época estavam separadas em mundos diferentes. No seus esforços de mediação o abade Primaz defendia o reconhecimento mútuo das opções beneditinas legítimas, que ele comparava a Marta e Maria. Sugeriu que os Secretariados separados para as monjas e para as irmãs, fossem reunidos, o que constituiu um passo importante no caminho atual ‘Communio Internationalis Benedictinarum’, a Comunhão Internacional das Beneditinas (CIB).

No Congresso dos Abades de 1992, o abade de Collegeville, Jerome Theisen (1930-1995) foi eleito para lhe suceder. Terminado o seu mandato em 20 de setembro 1992, o P. Dammertz tinha previsto retirar-se tranquilamente para o seu mosteiro, embora já se tivesse falado de uma nomeação para a Congregação para os Religiosos no Vaticano. Durante um retiro privado antes do Natal de 1992, o Núncio apostólico telefonou-lhe para lhe anunciar que o Papa João Paulo II o tinha nomeado 78º bispo de Augsbourg.

Na sua residência oficial, o palácio episcopal situado na frente da Catedral de Augsbourg, o bispo Viktor fez uma pequena comunidade doméstica com seu secretário Dr. Christian Hartl, sua irmã Marga e duas irmãs franciscanas de Maria Stern, com as quais celebrava a liturgia das Horas e a eucaristia. Ele próprio fala dessa casa como de um pequeno convento, e achava bom continuar um pouco a vida comunitária monástica no episcopado.

Entre os acontecimentos marcantes do seu mandato, convém citar alguns, importantes para o próprio bispo Viktor. Entre eles a assinatura da ‘Declaração comum sobre a doutrina da justificação’, no dia 31 de outubro 1999 em Augsbourg, o grande dia da fé por ocasião do ano santo 2000 no Rosenaustadion de Augsbourg e a canonização de Crescentia von Kaufbeuron em Roma, no dia 25 de novembro 2001, e, justo no fim do seu mandato, o ‘ano das vocações’, que proclamou em dezembro 2003 durante o qual devia-se rezar pelas vocações eclesiais, mas sobretudo descobrir cada caminho de vida como uma vocação e um dom. Como vemos nestes acontecimentos tão diversos o bispo Viktor podia e queria tocar diferentes registos, que englobavam tanto a piedade popular como os novos desenvolvimentos teológicos e eclesiásticos mundiais.

No dia dos seus 75 anos, 8 de junho 2004, o Papa João Paulo II aceitou seu pedido de demissão como bispo de Augsbourg, e o bispo emérito pôde se retirar para um lugar, que já era para ele um lugar de repouso familiar depois das férias : o convento das beneditinas e a Aldeia das crianças Santo Albano, aonde servia as irmãs como diretor espiritual. Sua irmã Marga, que já estava a seu lado como bispo, acompanhou-o. Muitos amigos e companheiros de caminhada visitaram-no nesse lugar, até que em janeiro 2015 uma fraqueza crescente, por causa da idade, o levou a mudar para a enfermaria de Sankt Ottilien. Lá, na grande sala de estar, podia-se visitá-lo, junto a uma pilha de livros e de revistas.

Um súbito declínio das forças não lhe permitiu estar presente na ordenação episcopal de seu segundo sucessor, e depois de alguns dias de fraqueza crescente, despediu-se em plena consciência. O funeral na catedral de Augsbourg foi presidido pelo cardeal Reinhard Marx, e seu sucessor Bertram Meier fez a homilia. O seu corpo repousa na cripta da catedral.

Depois desta resenha biográfica, é bom agora examinar mais de perto a marca beneditina do bispo religioso. Quando de uma primeira entrevista ao novo bispo, perguntaram-lhe, de forma um pouco provocadora, se o mundo monástico fechado era uma preparação útil para as muitas responsabilidades de um bispo. Ele reconheceu que o espaço monástico era, de fato, muito diferente da pastoral diocesana. Mas havia a vantagens ligadas à experiência. Entre as vantagens o bispo citava a importância do aprofundamento espiritual para o futuro da Igreja, e a apreciação da diversidade na unidade, pois isso exige aceitação mútua e diálogo. No final do seu mandato, o bispo Viktor sublinhou estas vantagens ainda de um modo mais marcante :

‘A vida monástica segundo a Regra de São Bento marcou-me profundamente, e os valores e atitudes fundamentais que me foram transmitidos me ajudaram como bispo. A imagem que São Bento dá do abade pode facilmente ser adaptada ao bispo. A procura de um equilíbrio entre ora et labora, entre oração e trabalho é também um desafio permanente para o bispo (…) A virtude da sábia moderação, que São Bento chama de discretio, e que considera a mãe de todas as virtudes (RB 64, 19) ajuda o bispo a não procurar soluções para os problemas com posições extremas’.

Com base na imagem beneditina do abade, Viktor-Joseph pôde estabelecer um pequeno espelho episcopal beneditino, e até viu que a direção de uma paróquia não se afastava assim tanto da de um mosteiro, nas questões fundamentais.

A linha de conduta do bispo, sempre centrada na mediação, criou um certo número de descontentes, que achavam que faltava energia e decisão. Mas no conjunto, o porta voz do Conselho presbiteral de Augsbourg resume assim : ‘A vida segundo a sábia Regra de São Bento do bispo Viktor, é para nós um exemplo e um encorajamento, particularmente no que diz respeito à espiritualidade e ao estilo de direção.’

Gostaria, na continuação, de retomar esta apreciação, pondo-a em questão : alguém com um cargo beneditino, no séc. XX e XXI, segue efetivamente as diretrizes da Regra de São Bento? Onde começa o vasto espaço de uma reapropriação criativa e pessoal?

O bispo Viktor falava do seu ministério assim :

Uma das tarefas mais importantes de um abade, é preservar, promover e recriar, sem cessar a unidade da comunidade, apesar de todas as oposições. Isto não é menos verdadeiro para um bispo diocesano numa Igreja, que sofre cada vez mais polarizações. Os diferentes grupos acusam-se rapidamente uns aos outros de não serem mais ‘católicos’, ou de formar uma seita. O papel do bispo é excluir excessos dos dois lados, mas quanto ao resto, é manter juntos na unidade eclesial os grupos que derivam, e esforçar-se por ser, sem cessar, um mediador’.

Podem-se deduzir duas coisas desta declaração. Por um lado, para descrever a direção eclesial o bispo Viktor recorre à imagem beneditina do abade no cap. 2 da Regra, segundo a qual o responsável de uma comunidade deve ‘servir aos temperamentos de muitos’ (RB 2,31). Por outro lado, alarga a consideração sábia da diversidade humana com a aspiração fundamental pela unidade e pela mediação, quer seja nas comunidades monásticas, ou na Igreja local e universal. Mesmo que isso corresponda à atitude beneditina, um tal serviço pela paz não se encontra explicitamente na regra de São Bento.

Um outro traço marcante do bispo Viktor Joseph, que se elogia regularmente, era a sua capacidade de ‘trabalhar em equipe’. As pessoas implicadas sublinham sua capacidade de escuta, a paciência e o tempo que dava aos outros. Podiam assim explicar seu ponto de vista e sentir a estima, mesmo em casos de divergências persistentes. É conhecido que a regra beneditina começa com um convite à escuta. Recomenda que o monge escute as palavras do mestre, quer dizer as palavras do Cristo e se abra a elas (RB Prol. 1). Em continuação deste princípio de base, o abade é convidado a ‘escutar o conselho dos irmãos’ RB 3, 2. Depois diz-se, contudo, que é ele quem decide o que é justo. Deve-se ver, assim, que a regra de São Bento contem certos traços de uma tomada de decisão democrática, mas que o modelo fica essencialmente uma monarquia. As restrições atuais do poder abacial por meio do Capítulo e por meio do Conselho são desenvolvimentos ulteriores. As representações da procura da verdade por meio do diálogo, que nos parecem evidentes, não correspondem aos reflexos do monaquismo primitivo.

Estas breves reflexões não visam contestar a inegável marca beneditina do estilo de vida e da direção do bispo Viktor Joseph, que, aliás, ele mesmo sublinhou. Querem, no entanto, convidar a usar de forma refletida a fórmula muitas vezes usada de ‘espiritualidade beneditina’. A Regra de São Bento oferece possibilidades de interpretação quase ilimitadas. Os meios tradicionalistas e integristas referem-se a ela, tanto quanto os cristãos liberais e abertos ao diálogo. No caso do bispo Viktor, trata-se antes de mais de um modo muito pessoal de pôr em prática o carisma beneditino, que vinha do seu caráter, de sua experiência de vida e de sabedoria. Talvez tenha mais a ver com Viktor Dammertz do que com São Bento. Talvez mais de acordo com a tradição beneditina, o bispo Viktor gostava de caracterizar esta tradição com a expressão ‘diversidade na unidade’. As duas são importantes, a diversidade e a unidade, mas como sublinha Viktor Dammertz, pondo a diversidade na frente : a diversidade tem uma pequena prioridade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/122

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