segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Papa: arqueologia cristã, vocação e forma de amor pela Igreja e pela humanidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Benedetta Capelli


‘Escavar, tocar os achados, reencontrar a energia do tempo — mas no trabalho do arqueólogo cristão não há apenas matéria, há também humanidade : as mãos que forjaram os objetos encontrados, ‘as mentes que os conceberam, os corações que os amaram’. Essa é uma das características da arqueologia cristã destacada pelo Papa na Carta Apostólica sobre a importância da arqueologia, publicada no dia 11 de dezembro, por ocasião do centenário do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã.

Leia a Carta Apostólica na integra

Tornar o Mistério visível 

Matéria e mistério : são duas linhas que se cruzam na arqueologia cristã porque ‘o cristianismo — destaca Leão XIV — não nasceu de uma ideia, mas de uma carne’, de um ventre, um corpo, um túmulo. A fé cristã se apoia em ‘eventos concretos, rostos, gestos, palavras pronunciadas em uma língua, em uma época, em um ambiente. É isso que a arqueologia torna evidente, palpável’. O Papa recorda ainda que ‘Deus escolheu falar em uma língua humana, caminhar sobre uma terra, habitar lugares, casas, sinagogas, ruas’. Por isso, em um tempo que recorre à Inteligência Artificial e investiga galáxias, ainda faz sentido continuar a investigar. ‘Não se pode compreender plenamente a teologia cristã — escreve o Papa — sem a inteligência dos lugares e das marcas materiais que testemunham a fé dos primeiros séculos’.

Nada é insignificante

A arqueologia e a teologia se entrelaçam no trabalho do arqueólogo, que deve ter uma sensibilidade especial ao lidar com ‘materiais da fé’. ‘Escavando entre pedras, ruínas, objetos — explica o Pontífice — aprendemos que nada do que foi tocado pela fé é insignificante’. Cada pequena evidência merece atenção, não deve ser descartada. Assim, a arqueologia se torna ‘uma escola de sustentabilidade cultural e ecologia espiritual’, de ‘educação para o respeito pela matéria, pela memória, pela história’. Nada se joga fora, tudo se conserva e se decifra, porque por trás de cada achado há ‘o fôlego de uma época, o sentido de uma fé, o silêncio de uma oração. É um olhar — sublinha o Papa — que pode ensinar muito também à pastoral e à catequese de hoje’.

A arqueologia aliada da teologia

Com o suporte de instrumentos tecnológicos cada vez mais refinados, mesmo materiais considerados irrelevantes podem revelar sentidos profundos. ‘A arqueologia é também uma escola de esperança.’ Leão XIV recorda que, segundo a Constituição Apostólica Veritatis gaudium, a arqueologia, junto com a História da Igreja e a Patrologia, deve integrar as disciplinas fundamentais da formação teológica. A arqueologia não fala apenas de coisas, mas de pessoas; ajuda a compreender ‘como a revelação se encarnou na história, como o Evangelho encontrou palavras e formas dentro das culturas’. Assim, uma teologia que acolhe a arqueologia ‘escuta o corpo da Igreja, interroga suas feridas, lê seus sinais, deixa-se tocar por sua história’. É também uma forma de caridade : ‘um modo de fazer falar os silêncios da história, devolver dignidade a quem foi esquecido, trazer à luz a santidade anônima de tantos fiéis que construíram a Igreja’.

A missão evangelizadora

É também tarefa da arqueologia ajudar a Igreja a guardar viva a memória dos seus inícios, narrar a história da salvação também com imagens, formas e espaços. ‘Em um tempo que frequentemente perde as raízes, a arqueologia — afirma o Papa — torna-se instrumento precioso de uma evangelização que parte da verdade da história para abrir à esperança cristã e à novidade do Espírito.’ Ao olhar para o modo como o Evangelho foi acolhido no passado, a arqueologia impulsiona seu anúncio hoje, ajudando a alcançar os distantes e os jovens que buscam autenticidade. A arqueologia, destaca Leão XIV, é um ‘poderoso instrumento de diálogo; pode construir pontes entre mundos distantes, culturas diferentes, gerações; pode testemunhar que a fé cristã nunca foi uma realidade fechada, mas uma força dinâmica’.

Memória viva e reconciliada

Outra força da arqueologia é fazer perceber o vigor de uma existência que atravessa os séculos, ultrapassa a matéria e possui relevância específica na teologia da Revelação. Ela ilumina textos com testemunhos materiais, interroga fontes, completa-as e abre novas questões. Assim, uma teologia fiel à Revelação ‘deve — para o Papa — permanecer aberta à complexidade da história’, feita de desafios, conflitos, momentos de luz e escuridão. Cada aprofundamento do mistério da Igreja é um retorno às origens : não um culto ao passado, mas ‘memória viva’, ‘capacidade de fazer o passado falar ao presente’, discernindo o que o Espírito Santo suscitou na história. Isso gera ‘uma memória reconciliada’, capaz de reconhecer pluralidade e unidade na diversidade, tornando-se ‘lugar de escuta, espaço de diálogo, instrumento de discernimento’.

Não um saber elitista

O Papa recorda que o Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã foi fundado em 1925 por Pio XI, no Jubileu da Paz; agora o centenário ocorre no Jubileu da Esperança — coincidência que abre horizontes para uma humanidade ferida por guerras. A fundação ocorreu em clima incerto, mas com coragem e visão. Ser fiel ao espírito fundador significa não fechar-se em um saber elitista, mas ‘compartilhar, divulgar, envolver’. Essencial, portanto, a comunhão com outras instituições dedicadas à arqueologia, como a Pontifícia Academia Romana de Arqueologia, a Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra e a Pontifícia Academia Cultorum Martyrum. Também com o Oriente cristão a arqueologia é terreno fecundo : catacumbas comuns, igrejas compartilhadas, práticas litúrgicas análogas, martirológios convergentes — patrimônios que devem ser valorizados conjuntamente.

Ministério de esperança

‘A Igreja é chamada a educar para a memória, e a arqueologia cristã é um dos seus instrumentos mais nobres. Não para refugiar-se no passado, mas para habitar o presente com consciência, construindo o futuro com raízes.’ A arqueologia, portanto, ‘é um ministério de esperança’, porque mostra que ‘a fé resistiu às perseguições, às crises, às mudanças’, renovando-se, reinventando-se, florescendo. ‘O Evangelho sempre teve uma força geradora’, e a esperança jamais falhou. Por fim, o Papa exorta à continuidade desse trabalho precioso, rigoroso, transmitido com paixão. ‘A arqueologia cristã é um serviço, uma vocação, uma forma de amor pela Igreja e pela humanidade. Sede fiéis ao sentido profundo do vosso compromisso : tornar visível o Verbo da vida, testemunhar que Deus se fez carne, que a salvação deixou marcas, que o Mistério se fez narrativa histórica.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-12/papa-leao-xiv-carta-apostolica-arqueologia-crista-11-12-2025.html

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

"Reconstruir a Casa do Senhor. Uma Igreja sem contraposições" – Segunda Pregação do Advento de 2025

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Isabella Piro



De que unidade devemos dar testemunho? E como oferecer ao mundo uma comunhão crível que não seja, genericamente, fraternidade? Estas foram as principais questões propostas na segunda de três meditações do Advento proferidas pelo Pe. Roberto Pasolini, pregador da Casa Pontifícia. O frade menor capuchinho propôs-as a Leão XIV e aos seus colaboradores da Cúria Romana na manhã desta sexta-feira, 12 de dezembro, na Sala Paulo VI. O tema escolhido para as três reflexões é: ""Aguardando e apressando a vinda do dia de Deus".


A Torre de Babel e o medo da dispersão

 

Após a primeira meditação de 5 de dezembro, dedicada à "Parusia do Senhor", nesta sexta-feira o Pe. Pasolini articulou sua reflexão em torno de três imagens: a Torre de Babel, o Pentecostes e a reconstrução do Templo de Jerusalém. A primeira imagem — a de uma cidade fortificada e uma torre imponente — é o emblema de uma família humana que, após o dilúvio, busca exorcizar "o medo da dispersão". Mas tal projeto esconde "uma lógica mortal", já que a unidade é buscada "não pela reconciliação das diferenças, mas pela uniformidade".

 

O pensamento único do totalitarismo do Século XX

 

"É o sonho de um mundo onde ninguém é diferente, ninguém corre risco, tudo é previsível", observou o padre Pasolini, tanto que a torre é construída não com pedras irregulares, mas com tijolos idênticos entre eles. O resultado é, sim, a unanimidade, mas uma unanimidade aparente e ilusória, porque "é alcançada ao custo da eliminação das vozes individuais".

A partir daí, o pensamento do pregador volta-se para os tempos modernos e contemporâneos, nomeadamente, para os totalitarismos do século XX que impuseram o "pensamento único", silenciando e perseguindo a dissidência. Mas "cada vez que a unidade é construída suprimindo as diferenças - acrescentou - o resultado não é a comunhão, mas a morte".

 

O consenso rápido das redes sociais e da IA

 

Também hoje, "na era das redes sociais e da inteligência artificial", os riscos da padronização não faltam, antes pelo contrário; surgem em novas formas, em que os algoritmos criam "bolhas de informação" unívocas, esquemas previsíveis que reduzem a complexidade humana em um padrão, plataformas que visam o consenso rápido, penalizando a "dissidência reflexiva".

Trata-se de uma tentação que "não poupa sequer a Igreja", explicou o capuchinho, recordando as muitas vezes ao longo da história em que a unidade da fé foi confundida com uniformidade, em detrimento do "ritmo lento da comunhão que não teme o confronto e não apaga as nuances".


A diferença é a gramática da existência

 

Um mundo construído sobre a utopia de cópias idênticas, continuou o sacerdote, "é a antítese da criação", porque "Deus cria separando, distinguindo, diferenciando" a luz das trevas, as águas da terra, o dia da noite. Nesse sentido, "a diferença é a própria gramática da existência", e rejeitá-la significa inverter "o impulso criador" em busca de uma falsa segurança que é, na verdade, "uma rejeição da liberdade".

 

Deus restaura a dignidade às singularidades

 

A confusão de línguas com que Deus responde à Torre de Babel, portanto, não é uma punição, mas sim "uma cura", enfatizou o pregador da Casa Pontifícia: o Senhor "restitui a dignidade às singularidades", dando novamente à humanidade "o bem mais precioso", ou seja, "a possibilidade de não sermos todos iguais". Porque "não existe comunhão sem diferença".

 

Pentecostes, emblema da comunhão

 

A segunda imagem é a de Pentecostes, o emblema da comunhão apesar da ausência de uniformidade. Os apóstolos falam a sua própria língua, e os ouvintes a compreendem na sua, porque "a diversidade permanece, mas não divide"; as diferenças não são eliminadas para criar unidade, mas transformadas "no tecido de uma comunhão mais ampla".

 

A renovação da Igreja, uma necessidade perene

 

O padre Pasolini ilustrou então a terceira imagem: o Templo de Jerusalém, destruído e reconstruído muitas vezes. Cada reconstrução, explicou ele, "nunca pode ser um caminho linear", porque a compô-la serão "entusiasmos e lágrimas, novos impulsos e arrependimentos profundos". Tudo isso é "um precioso compêndio" para compreender "a perene necessidade" de renovação da Igreja, bem encarnada por São Francisco de Assis.

A Igreja, de fato, é chamada a permitir-se ser continuamente reconstruída para revelar "a beleza do Evangelho", permanecendo fiel a si mesma e, ao mesmo tempo, continuando a "colocar-se a serviço do mundo".

 

Acolher a variedade, não apagá-la

 

Longe de ser "uma necessidade extraordinária", enfatizou o padre Pasolini, a renovação eclesial é "a atitude ordinária" da Igreja fiel ao mandato apostólico e, sobretudo, não é uniformidade, nem "uma obra pacífica". A Igreja que se renova, de fato, é aquela capaz de "acolher a diversidade" e capaz  de "um combate espiritual autêntico", livre dos "atalhos de puro conservadorismo e de inovação acrítica". Porque a comunhão nunca é "um sentimento homogêneo", nem uma recíproca eliminação, mas antes um lugar de "escuta recíproca". Só assim, de fato, "a Igreja pode verdadeiramente voltar a ser o lar de todos".

 

O Concílio Vaticano II e a "Primavera do Espírito"

 

Uma última reflexão do padre Pasolini foi dedicada ao Concílio Vaticano II: sessenta anos após, a grande assembleia , frequentemente descrita como a "primavera do Espírito", emerge quer "um declínio das práticas, dos números e das estruturas históricas da vida cristã" quanto um novo fermento do Espírito, evidenciado pela "centralidade da Palavra de Deus", por um laicato "mais livre e mais missionário", por "um caminho sinodal" que se tornou uma "forma necessária" e por um cristianismo que "floresce em muitas regiões do mundo".

 

Retornar ao coração do Evangelho

 

O declínio, explicou o pregador, torna-se decadência se a Igreja perde a "consciência da própria natureza sacramental e se percebe como uma organização social", reduzindo a fé à ética, a liturgia à performance e a vida cristã a moralismo.

Em vez disso, para além de posições ideológicas, como o tradicionalismo e o progressivo, o declínio pode se tornar "um tempo de graça" no momento em que a Igreja retorna "ao coração do Evangelho", distanciando-se de "estratégias" humanas, de "contraposições que dividem e tornam estéril cada diálogo", bem como de "soluções imediatas e fáceis".

 

A Igreja, dom a ser protegido e serviço

 

Em última análise, concluiu o padre Pasolini, a Igreja não é algo a ser edificado segundo critérios humanos, mas é "um dom a ser recebido, protegido e servido" com gestos humildes, dia após dia, cada um com um fragmento de fidelidade e caridade. O pregador da Casa Pontifícia concluiu então sua reflexão com uma oração ao Senhor para que "o povo dos fiéis possa sempre progredir na construção da Jerusalém celeste".

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2025-12/segunda-pregacao-advento

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Francisco de Assis ensina: quem reza, serve!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Frei Augusto Luiz Gabriel, ofm


‘A oração sempre ocupou lugar central na vida cristã, não apenas como devoção, mas como fonte que sustenta e inspira todas as escolhas e ações do discípulo. Desde os antigos mestres espirituais, passando pela experiência de Santo Afonso de Ligório, aprendemos que rezar é reconhecer que ‘sem mim nada podeis fazer’ e pedir o dom do Espírito para viver segundo o Evangelho. São Francisco de Assis é testemunha luminosa dessa verdade : sua profunda vida de oração, feita de silêncio, louvor, escuta e entrega, tornou-se ação concreta, serviço humilde, cuidado dos pequenos e reconstrução da vida dos que sofrem. Por isso, a oração cristã não permanece apenas na interioridade; ela abre o coração, purifica a intenção e conduz ao compromisso real com o Reino de Deus.

Orar é elevar a mente e o coração a Deus, confiando inteiramente na sua graça. Não se trata de um gesto isolado de devoção, mas da fonte que orienta toda ação cristã. Desde os antigos mestres, como Hugo de São Vítor, e conforme a tradição bíblica do Livro da Sabedoria, entende-se que a oração é o caminho pelo qual se recebe a sabedoria e o Espírito : ‘Invoquei o Senhor, e veio a mim o espírito da sabedoria.’ Hugo recorda que, sem o auxílio divino, a iniciativa humana é insuficiente. A oração, portanto, é o acesso à filiação divina e nos torna capazes de pedir e viver o dom do Espírito. Santo Afonso reforça essa verdade a partir do mandato de Cristo : ‘Sem mim nada podeis fazer’. A oração não é um adorno religioso, mas a respiração da vida cristã. Quem reza com sinceridade e constância pede, antes de tudo, o dom do Espírito, e desse encontro nascem a fé, a esperança e a caridade autênticas.

A oração genuína, porém, não se limita ao interior : ela transforma e encaminha para o serviço. Enzo Bianchi e a tradição litúrgica lembram que a liturgia é ‘parusia antecipada’, sinal do Reino que já vem ao encontro do povo. O ministro, o celebrante e todo cristão só podem comunicar aquilo que carregam no coração : ‘Se você não estiver evangelizado, não poderá evangelizar; se a Palavra não mora em você, não poderá comunicá-la à assembleia.’ São Carlos Borromeu aconselhava os ministros : ‘Se você administra os sacramentos, medite no que está fazendo. Se celebra a missa, medite no que está oferecendo. Se recita os salmos, medite a quem e do que está falando.’ A regra é clara : a liturgia molda o coração para a caridade; a oração prepara e orienta a ação sacramental e pastoral. Orar e celebrar é preparar-se para servir e levar à vida aquilo que a Palavra e os sacramentos suscitam.

A vida de São Francisco de Assis ilumina essa união inseparável entre contemplação e serviço. Seu Cântico das Criaturas, sua oração diante do crucifixo e sua intimidade com Deus revelam uma espiritualidade que transforma tudo em compaixão e prática solidária. Na prece diante do crucifixo — ‘Altíssimo, glorioso Deus, ilumina as trevas do meu coração. Dá-me fé reta, esperança certa e caridade perfeita. Dá-me, Senhor, senso e discernimento para que eu cumpra o teu santo e verdadeiro mandamento’ — Francisco mostra a prioridade da vida cristã : pedir a graça para viver o Evangelho. Ele viu a criação como ‘um grande coro de onde brota contínua oração’ e fez da atenção aos pobres a consequência necessária dessa experiência contemplativa. Para ele, a oração que não gera partilha não é conforme ao Evangelho : a verdadeira espiritualidade conduz ao encontro dos pequenos, ao cuidado dos leprosos, à partilha do alimento, à presença junto aos marginalizados. A caridade é o fruto visível da alma que reza.

Praticar a fé significa, portanto, transformar a contemplação em gestos cotidianos : cultivar a Palavra, estudá-la, meditá-la, deixá-la moldar o coração; buscar a reconciliação com Deus e com os irmãos; ajudar os necessitados com partilha e presença; oferecer escuta; promover a comunhão. A Eucaristia, centro da vida cristã, recorda esse movimento : alimentar-se do Corpo do Senhor é assumir a responsabilidade de levar alimento e dignidade aos famintos. A espiritualidade franciscana sublinha que solidariedade é prática de amor : viver a destinação universal dos bens, a fraternidade e a partilha como escolhas diárias. ‘O que eu tenho, eu dou’ resume a decisão de não viver para si, mas para quem precisa.

Há, portanto, um caminho claro : a oração nos dá o Espírito; o Espírito fecunda a fé; a fé se traduz em obras de amor. Tal percurso exige humildade — ser sinal pobre de Cristo — e coerência litúrgica : a celebração não é espetáculo, mas gesto formativo que converte. Quem preside, canta ou reza os ofícios deve fazê-lo com atenção e reverência, consciente de que a liturgia possui força evangelizadora quando é vivida em adoração. Ao mesmo tempo, a prática cristã é profética : uma espiritualidade que não promove transformação social nem se compromete com a justiça permanece mutilada. A fé que salva é a que humaniza, denuncia injustiças, reconstrói e liberta.

Concluímos com o mesmo espírito de Francisco, que inspirou gerações : oração e ação são duas faces da mesma vocação. Como escreveu o Poverello pouco antes de morrer : ‘Irmãos, até agora pouco ou nada fizemos; vamos recomeçar!’ Recomeçar na oração, que desarma o ego e prepara o coração; recomeçar na caridade, que torna crível a Palavra de Deus. Orar e praticar é viver a fé como caminho de amor — nas pequenas ações, nas decisões corajosas, na partilha cotidiana — até que o mundo reconheça, em nós, o rosto misericordioso de Deus.

Paz e Bem!

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/francisco-de-assis-ensina-quem-reza-serve.html

domingo, 7 de dezembro de 2025

O terremoto das migrações

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS

 

Acompanhamos perplexos uma escalada mundial da violência. Violência intra e intercontinental que se reflete seja nos governos e formas de oposição, seja nos governos locais. Tampouco ficam imunes as mais diversas instâncias e instituições da sociedade. Semelhante avanço da violência vem mexendo de maneira convulsiva com os ‘formigueiros humanos’. Com efeito, o modus vivendi de comunidades originárias, de povos, nações e culturas vem sendo fortemente sacudido ao redor do planeta. Resultado disso é a dispersão dos migrantes, tais como aves de arribação. A chamada transição paradigmática, de que tanto se tem falado, move as placas tectônicas da política econômica em termos nacionais, regionais e internacionais. É inegável que esse movimento subterrâneo provoca terremotos e tsunamis que, novamente, devastam os ‘formigueiros humanos’, colocando em fuga as formigas, aos milhares e milhões.

O modo de vida e a identidade de grupos inteiros são abalados desde a raiz, o que compromete as bases, os valores e os fundamentos tradicionalmente positivos. Migrantes isolados e/ou com suas famílias cruzam e atravessam fronteiras. Com grande dificuldade, atravessam mares, desertos e florestas para bater às portas de territórios diferentes. Chegam, em geral, cansados e abatidos, feridos e fragmentados. Pessoas e famílias se desfiguram e se desintegram pelo caminho, às vezes para não mais se encontrarem na tão sonhada e ansiada reunificação. As ‘formigas’ dificilmente têm a possibilidade de retornar ao formigueiro (abandonado às pressas no caso dos refugiados), para recriar o modus vivendi de seus antepassados. Milhões e milhões de pessoas vagueiam de cá para lá e de lá para cá, na vã tentativa de encontrar um refúgio seguro. Um solo a que se possa dar o nome de pátria parece cada vez mais distante.

Os abalos sísmicos, porém, tendem a desencadear tragédias climáticas sempre mais extremas e catastróficas. Novos formigueiros são abalados e desmantelados. Novas correntes migratórias se põem em marcha. Cresce progressivamente o número de pessoas sem raiz, sem rumo e sem horizonte. Os processos migratórios não se deixam classificar atualmente por uma origem e destino mais ou menos predeterminados, como ocorreu nas chamadas migrações históricas. Enquanto a origem segue sendo a terra natal, evidentemente, o destino se revela cada vez mais incerto, inseguro e inquietante. Nos dias de hoje, prevalecem, ao invés, a indignação e a impotência. Por toda parte. Multiplicam-se os adjetivos e expressões precedidos pelo prefixo negativo ‘in’, equivalente a um ‘não’. Resta uma certa esperança de que quando esse prefixo se acumula, dos subterrâneos emerge dialeticamente um ‘sim’, de acordo com o pensamento filosófico de Hegel.

Do ponto de vista das forças de esquerda, esse novo ‘sim’ consiste em um tremendo e gigantesco ‘não’. O efeito positivo do que podemos chamar mundo moderno ou modernidade reveste-se de uma marca registrada cunhada pela razão, a ciência e a tecnologia, bem como pelo progresso e pela democracia. Neste momento de mudança de época (não apenas época de mudanças), o que resulta da dialética hegeliana representa um ‘sim’ com sabor amargo de ‘não’. Consiste numa tentativa da extrema direita de usar os canais, instrumentos e mecanismos democráticos para instalar um autoritarismo populista que parecia morto e definitivamente enterrado. Não seria exagero falar de um imperialismo da economia globalizada. Imperialismo de mercado e de poder, contemporaneamente centrífugo e centrípeto. Centrífugo quanto à dispersão das unidades de produção e ao consumo generalizado, centrípeto no que diz respeito à tomada de decisões e à formação de megafusões e conglomerados hegemônicos para as fatias mais rentáveis do processo de produção, como petróleo, telecomunicações, aviação, metais preciosos, entre outras.

De tal maneira que, enquanto as nações mais poderosas ensaiam atritos, rivalidades e até mesmo conflitos bélicos (tendo o cuidado de exportar a guerra aberta para os países periféricos), globalmente o mercado se apresenta muito bem articulado. Exemplo : ao mesmo tempo que, do ponto de vista político, se verifica uma disputa cerrada pela hegemonia política e econômica planetária, desde o ponto de vista econômico, Estados Unidos e China seguem com seus acordos comerciais através desses oligopólios de empresas transnacionais. Numa expressão apocalíptica, semelhante ao imperialismo de mercado total, se converte em uma espécie de dragão de sete cabeças (coincidência com o G7?), onde qualquer uma delas pode assumir o controle global. O combate a essa besta fera passa, simultaneamente, por ações locais e por articulações globais. O desafio gigantesco é justamente equilibrar umas e outras.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://migramundo.com/o-terremoto-das-migracoes/

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

‘A Parusia do Senhor’ – Primeira Pregação do Advento de 2025

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Benedetta Capelli


‘‘Não andarilhos sem rumo’, mas ‘sentinelas que, na noite do mundo, mantêm humildemente a sua fé’ para ver a luz ‘capaz de iluminar todo homem’. Padre Roberto Pasolini, pregador da Casa Pontifícia, acompanha-nos numa viagem em que o tempo do Advento se torna uma oportunidade para sermos ‘peregrinos rumo a uma pátria’, em um caminho marcado pela esperança e que tem como horizonte a salvação.

A primeira de três meditações previstas sobre o tema ‘Aguardando e apressando a vinda do dia de Deus’, centra-se na Parusia do Senhor e introduz em um tempo singular : a conclusão do Jubileu da Esperança. ‘O Advento’, sublinha o capuchinho, ‘é o tempo em que a Igreja reacende a esperança, contemplando não só a primeira vinda do Senhor, mas sobretudo o seu regresso no fim dos tempos.’ É o momento em que somos chamados a ‘aguardar e, ao mesmo tempo, apressar a vinda do Senhor com vigilância serena e diligente’.

Perceber a graça de Deus

‘Parusia’ é um termo usado quatro vezes pelo evangelista Mateus no capítulo 24 com um duplo significado : ‘presença’ e ‘vinda’. Jesus compara a expectativa de sua vinda aos dias de Noé antes do dilúvio universal. Eram dias em que a vida seguia normalmente e em que Noé sozinho construiu a arca, o instrumento da salvação. Sua história levanta questões essenciais para a compreensão do que o homem moderno precisa reconhecer. Diante de novos e complexos desafios, ‘a Igreja é chamada a permanecer um sacramento de salvação em uma era de mudanças’.

‘A paz - enfatiza o Padre Pasolini - permanece uma miragem em muitas regiões até que antigas injustiças e memórias feridas sejam curadas, enquanto na cultura ocidental o senso de transcendência é enfraquecido, esmagado pelo ídolo da eficiência, da riqueza e da tecnologia. O advento da inteligência artificial amplifica a tentação de uma humanidade sem limites e sem transcendência.’

O mistério de um Deus que tem confiança na humanidade

Perceber não basta, é preciso reconhecer ‘a direção para a qual o Reino de Deus continua a se mover dentro da história’, retornando à capacidade profética do Batismo. Perceber a graça de Deus, ‘esse dom da salvação universal que a Igreja humildemente celebra e oferece, para que a vida humana seja libertada do fardo do pecado e do medo da morte’. Uma graça à qual os ministros da Igreja não podem se habituar, correndo o risco de se familiarizarem tanto com Deus a ponto de o tomarem como óbvio. Assim, tomamos consciência do mistério de um Deus que ‘continua diante de sua criação com confiança inabalável, aguardando dias melhores’.

Apagar o mal

O pregador da Casa Pontifícia recorda que, para redescobrir o rosto de Deus que acompanha ‘sua criação ferida’, devemos recorrer à história do dilúvio universal, quando o Senhor vê o mal no coração humano. Esse mal não pode ser vencido pela mudança, pela evolução, porque à humanidade não serve somente realizar-se, mas também de salvar-se. ‘O mal não deve ser simplesmente perdoado : deve ser apagado, para que a vida possa finalmente florescer em sua verdade e beleza.’ Apagar, na cultura do cancelamento em que a humanidade de hoje está imersa, não é apenas destruir tudo, eliminar o que parece pesado nos outros. ‘Todos os dias cancelamos muitas coisas, sem nos sentirmos culpados ou causar qualquer dano. Apagamos - recorda Pasolini - mensagens, arquivos inúteis, erros em documentos, manchas, vestígios, dívidas. De fato, muitos desses gestos são necessários para permitir que nossos relacionamentos amadureçam e tornem o mundo habitável.’ Apagar significa abrir-nos a Deus, partindo de nossa própria fragilidade, e permitir que Ele nos cure.

A vida floresce quando Deus volta a estar no centro

O Senhor nunca se cansa de encontrar ‘um homem sábio, alguém que busca a Deus’, assim como fez com Noé, que por sua vez sentiu a graça do Senhor. No homem na arca, Deus encontra a possibilidade de apagar e recomeçar. ‘Somente quando o homem retorna para viver diante da verdadeira face de Deus é que a história pode realmente mudar’, enfatiza o monge capuchinho. ‘A história do dilúvio nos lembra que a vida floresce somente quando reconstruímos os céus, na medida em que colocamos Deus de volta no centro.’ O dilúvio se torna ‘uma passagem de recriação através de um momento de descrição’. ‘É uma mudança temporária nas regras do jogo, para salvar o próprio jogo que Deus havia inaugurado com confiança.’

Decidir não ferir 

O dilúvio é, portanto, ‘uma renovação paradoxal da vida’. Deus não se esquece da humanidade e coloca seu arco nas nuvens como sinal de aliança. O Senhor depõe suas armas com uma solene declaração de não violência. ‘Pode parecer - acrescenta o padre Pasolini - uma metáfora ousada, quase inadequada para falar de Deus e da forma como a sua graça se manifesta. No entanto, a humanidade, após milênios de história e evolução, ainda está longe de saber como imitá-lo.’

A Terra, de fato, está dilacerada ‘por conflitos atrozes e intermináveis, que não dão trégua a tantas pessoas fracas e indefesas.’ A decisão daqueles que, apesar de terem a capacidade, escolhem voluntariamente não ferir é reconfortante, porque compreendem que só acolhendo os outros é que a aliança ‘pode ser duradoura, verdadeira e livre.’

O tempo do bem

‘Vigiai pois, porque não sabeis o dia em que o seu Senhor virá’ : esta é a recomendação final de Jesus. Não saber o dia e a hora deste evento criou muita expectativa no passado, sublinha o pregador, mas hoje as coisas parecem ter invertido. ‘A espera diminuiu ao ponto de, por vezes, dar lugar a uma subtil resignação quanto ao seu cumprimento.’ Hoje, prevalece ‘uma vigilância cansada, tentada pelo desânimo’.

O tempo de espera é o tempo de semear o bem e aguardar a vinda de Jesus Cristo. Cuidado com duas grandes tentações que afetam a humanidade e a Igreja : ‘esquecer a necessidade da salvação e pensar que podemos recuperar o consenso cuidando da aparência externa da nossa imagem e diminuindo a radicalidade do Evangelho’. Devemos — enfatiza o capuchinho — retornar ‘à alegria — e também ao esforço — de seguir, sem domesticar a palavra de Cristo’. Somente como ‘sentinelas nas fronteiras do mundo’, como escreveu o monge Thomas Merton, podemos aguardar o retorno de Cristo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2025-12/predicatore-casa-pontificia-avvento-pasolini-parusia-attesa.html

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Gaza, denúncia de uma psicóloga: as crianças perderam tudo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Federico Piana


‘As bombas israelenses não apenas destruíram sua casa, mataram sua mãe e sua irmã e feriram gravemente seu pai. Elas também roubaram sua infância. E a palavra. Nazek El Kord cruza o olhar com esta menina palestina de apenas cinco anos devastada pela dor e percebe imediatamente que está diante de um fantasma : apesar de ter se recuperado dos profundos ferimentos causados pelos estilhaços que lhe dilaceraram as pernas e as mãos, sua língua permanecia como paralisada.

Pequenos fantasmas

Nazek, em Gaza, já tinha visto muitos pequenos fantasmas assim. Ela, que é psicóloga clínica infantil e trabalha no Centro Médico Princesa Basma, instalado no Hospital Ahli Arab, se pudesse, contaria cada um deles, mas seria um trabalho imenso, porque significaria fazer uma lista exata de todas as crianças da cidade e da Faixa que permaneceram vivas. Ou que, infelizmente, não conseguiram fugir.

Memórias assustadoras

Com a pequena fantasma, que não fala, Nazek tentou brincar duas vezes por semana durante seis meses, de forma sistemática e terapêutica. ‘No final, lentamente, ela voltou a ter mais autoconfiança e começou a falar novamente. O seu mutismo histérico agora é apenas uma lembrança’. Embora agora haja uma trégua e os bombardeamentos tenham terminado, as crianças de Gaza não se sentem nada seguras, continuam a viver imersas nos piores pesadelos que se materializaram nas suas mentes desde o início do conflito. Nazek, todos os dias, fala com elas, ouve-as, cuida delas. Como pode. ‘Elas ainda têm ataques de pânico, lembranças assustadoras de perdas e destruição. Sentem-se ansiosas, reagem com força a ruídos altos ou movimentos repentinos, como se o perigo ainda estivesse à espreita’, conta à mídia vaticana. No fundo, para as crianças palestinas, a trégua não existe, é apenas uma invenção dos adultos que ‘brincam’ com a tragédia sem sentido da guerra. Pelo contrário, como Nazek repete várias vezes, a suspensão dos bombardeios representa para elas uma breve pausa entre dois medos : o medo do que aconteceu até agora e o medo do que ainda pode acontecer. ‘Mentalmente, as crianças tentam compreender todos os acontecimentos que estão vivendo. Fazem perguntas sérias sobre a morte, a justiça, o futuro. A maioria delas está convencida de que a trégua não durará muito e que em breve a violência recomeçará’.

Traumas prolongados

O medo e o estresse, que se manifestam com ansiedade, tristeza e dificuldade em controlar as próprias emoções, estão provocando a interrupção do crescimento emocional. Em essência, as crianças de Gaza deixaram de ser crianças, mas ainda não se tornaram adultas, estão perdidas em um limbo sombrio dominado por doenças mentais crescentes que devem ser tratadas o mais rápido possível. ‘Após mais de dois anos de conflito — é a amarga acusação de Nazek — quase todas as crianças de Gaza precisam de intervenções psicossociais direcionadas e prolongadas para lidar com os traumas, reconstruir a capacidade de recuperação e apoiar um desenvolvimento emocional saudável. Existem alguns esforços internacionais nesse sentido, mas não são suficientes para atender às necessidades generalizadas e urgentes’.

Para salvar esses pequenos fantasmas, como a menina sem voz que comoveu o coração de Nazek, psicólogos, psiquiatras profissionais, familiares e escolas deveriam poder trabalhar juntos, elaborando caminhos de cura compartilhados. Levando em conta, acrescenta Nazek, acima de tudo, uma coisa fundamental : ‘Quando está emocionalmente presente, muitas vezes é justamente a família a fonte mais forte de cura. Mesmo que agora os pais estejam em dificuldades, se forem ajudados e apoiados, podem oferecer amor, rotina e estabilidade, todos elementos que ajudam a criança a se sentir segura’. Nazek e seus colegas médicos palestinos estão se empenhando ao máximo para alcançar esse objetivo. Mas sem a ajuda da comunidade internacional, é como tentar esvaziar o mar com uma colher : ‘Com base na minha experiência de trabalho em hospitais, existe uma lacuna significativa na oferta de cuidados mentais especializados. E muitas crianças não conseguem receber apoio psicológico adequado’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2025-12/gaza-denuncia-psicologa-criancas-perderam-tudo.html