Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘A visão da Igreja de Santa Hildegarda de Bingen’,
por Giovani Gasparro
*Artigo de Brennan Pursel
Tradução : Equipe Christo Nihil Praeponere
‘Santa Hildegarda de Bingen (1098–1179) é uma
maravilha do passado, um fenômeno histórico por direito próprio, e um
questionamento direto a todos que se preocupam em aprender sobre ela e com ela
hoje, no século XXI. Em suma, a vida e os escritos dela colocam uma dura
pergunta : teria Deus falado por meio dessa mulher, não apenas para os
contemporâneos dela, mas a toda a humanidade, em todas as épocas, ou ela não
passou de uma mulher muito doente?
Hildegarda passou quase toda a vida no vale do
Reno, perto de onde o rio Meno nele deságua. O vale central da Renânia é uma
das regiões mais férteis da Alemanha; possui um clima suave e temperado, onde
pessoas viveram em comunidades por milênios. Desde suas origens, o Reno forma
uma via rápida natural nas terras alpinas até sua foz no Canal da Mancha e no
Mar do Norte. O paradoxo da vida de Hildegarda é que ela foi uma alma
solitária e contemplativa que viveu numa importante via, por assim dizer, onde
ela se tornou o centro das atenções.
Hildegarda, um dos dez filhos de um casal da
nobreza local, provavelmente teve uma primeira infância bastante privilegiada e
normal, exceto por sofrer de uma doença que a deixava acamada. Durante esses
períodos de fraqueza e dor, ela começou a ver imagens incomuns, talvez a partir
dos cinco anos de idade. Quando falou com as pessoas sobre suas visões,
mandaram-na ficar calada. Quando tinha sete anos, seus pais decidiram que ela
deveria entrar para vida religiosa, e assim a entregaram aos cuidados de Juta
(Judite), uma anacoreta, enclausurada numa cela de pedra adjacente a um
mosteiro beneditino. Lá Hildegarda viveu, estudou, trabalhou e rezou por trinta
anos. Um número cada vez maior de moças foi viver com elas, até que Juta se
tornou a superiora de um pequeno convento beneditino. Quando Juta morreu em
1136 (Hildegarda tinha 38 anos), a comunidade de mulheres religiosas a escolheu
por unanimidade para liderá-las. Pouco se sabe dessas três décadas da vida
de Hildegarda, com a exceção de que seus ataques de enfermidade e as visões continuaram.
Ela só falou com Juta sobre as visões, mas esta informou a um monge, Volmar,
cuja posição era supervisionar as religiosas e ministrar-lhes os sacramentos.
A vida de Hildegarda mudou radicalmente aos 42
anos. A essa altura, ela já tivera a sua visão mais poderosa, não apenas uma
visão de luzes e imagens, mas de inspiração, de compreensão, uma infusão de
conhecimento sobre o significado da Escritura e de todo o conteúdo da fé.
Também recebeu a ordem de escrever o que havia aprendido. Sentindo-se aquém da
tarefa, Hildegarda ficou gravemente doente. Volmar mandou que ela escrevesse, e
o abade do mosteiro adjacente concordou. Sua doença arrefeceu, e ela começou a
escrever o que vira em latim (que não aprendera muito bem), trabalhando com
Volmar, que a ajudou durante os trinta anos seguintes. Sua primeira e maior
obra, Scivias, discorre em três livros sobre Deus e toda a Criação,
a Redenção, a Igreja, o demônio e, finalmente, sobre toda a história da
salvação. O primeiro a ler trechos da obra foi o abade; depois, o arcebispo de
Mainz; depois, São Bernardo de Claraval e o próprio Papa, Eugênio (1145–1153),
que leu os escritos dela em voz alta aos participantes de um sínodo na cidade de
Trier, na Alemanha. A notícia se espalhara. Uma verdadeira profetisa vivia
no Reno. Ainda que limitada, chegara ao fim a solidão de Hildegarda.
Novas vocações afluíram ao convento dela. Talvez
para separar as ovelhas dos bodes, ela transferiu sua comunidade para um vale
inabitado e arborizado às margens do Reno, e começou a construir o novo
convento. Mas o movimento não parou por aí. Em poucos anos, ela teve de fundar
outro convento, desta vez na margem oposta do rio. Como abadessa, ela visitava
aquele mosteiro uma ou duas vezes por semana. As pessoas afluíam para
ouvi-la falar, para receber sua bênção e para obter tratamentos para suas
enfermidades. Tempos depois, ela publicou um grande tratado sobre muitas
doenças e o modo de curá-las de alma das pessoas, para pedir explicações da
Escritura, explicações teológicas dos mistérios divinos e conhecimento sobre o
futuro. Ela foi convocada para se reunir com o sacro imperador romano e fazer
previsões para ele, que depois as confirmou. Ela falava e escrevia sobre o que
lhe chegava, fossem notícias boas ou ruins. Sua voz interior lhe disse muitas
coisas de que se queixar. Ela não guardava nada para si quando se tratava de
dilacerar clérigos e prelados corruptos por causa de seus abusos da Igreja, da
venda de ofícios e por levarem vidas de pompa, luxo e repletas de prazeres
sexuais. Quando um prior escreveu para ela, pedindo que rezasse por ele
porque estava fazendo o mesmo por ela e porque queria um bom desfecho para seus
negócios, ela o repreendeu sem rodeios por seu egoísmo e sua visão pagã de
oração. Não temos como saber o número de pessoas que ficavam perplexas com ela.
Além das centenas de cartas, ela escreveu outro
livro sobre a vida moral e seus méritos, uma obra visionária como Scivias,
sobre como temos de viver para participar da paz e da glória celestes. Outro
livro é dedicado à descrição das obras divinas. Além do tratado médico, ela
escreveu livros para explicar como a natureza funciona de acordo com os
preceitos misteriosos de Deus. Ela recebeu a revelação da ordem divina em todas
as coisas e se esforçou por transmitir essa ordem a outras pessoas. Também
compôs setenta canções e uma peça musical de moralidade sobre as virtudes. Seu
estilo, em prosa e em verso, é sempre vívido, persuasivo e repleto de imagens
proféticas; é o oposto da escrita acadêmica árida e técnica. Contudo, não
é fácil diferenciar precisamente entre o que ela recebeu numa visão, o que
aprendeu em outros livros e na tradição local e oral, e o que ela observava e
pensava por si.
Obviamente, tal proeminência (destituída de
quaisquer credenciais formais ou poder bruto que lhe servisse de apoio) fez com
que ela se metesse em alguns problemas. Foi necessário muito esforço para
convencer o abade (sob cuja autoridade ela vivera com Juta) a permitir que ela
transferisse suas monjas e seus dotes para a nova localidade no Reno. Suas
exortações aos clérigos e leigos poderosos e pecaminosos aumentaram a sua lista
de potenciais detratores e inimigos. Algumas pessoas disseram que ela era uma
impostora egoísta, ou simplesmente louca. O conflito com seu bispo para impedir
que sua protegida, a irmã Richardis, fosse liderar outro convento foi uma causa
perdida, já que afinal o Papa interveio para a apoiar o bispo. O caso não fez
com que ninguém mostrasse suas melhores qualidades. Por volta do fim de sua
vida, Hildegarda permitiu que um homem excomungado fosse enterrado no solo
sagrado de seu convento; ela disse que ele se havia reconciliado
verdadeiramente com Deus logo antes de morrer. O bispo discordou e pôs seu
convento sob interdito, negando a Hildegarda e suas freiras o acesso aos
sacramentos, mas ela o cansou com orações e súplicas. Em poucos meses, o
interdito foi suspenso, e o túmulo permaneceu intacto. Porém, esses
conflitos foram antes a exceção do que a regra.
O fato de ela ter sido uma mulher vivendo no século
XII não representou um obstáculo sério à sua missão de disseminar a palavra da
revelação de Deus até o fim de sua vida. Começando com cerca de sessenta anos,
ela realizou quatro longas viagens pela área rural local, pregando tanto para o
clero como para os leigos, com a aprovação de ninguém menos que o Papa. Suas
canções eram cantadas em locais tão distantes quanto Paris, e a palavra de sua
sabedoria se espalhou por toda a cristandade. Depois de sua morte na idade
venerável de 81 anos, iniciou-se imediatamente um culto dedicado a ela. Embora
não haja nenhum registro de sua canonização oficial nos séculos XII e XIII, ela
foi listada entre os santos do Martirológio Romano ainda no
século XVI. Foi só recentemente que o Papa Bento XVI a inscreveu no catálogo
dos santos (uma ação chamada de ‘canonização equivalente’), no dia 10 de maio de
2012; e em 7 de outubro do mesmo ano deu a ela o título de Doutor da
Igreja, um reconhecimento concedido a somente 33 pessoas até então, três delas
mulheres.
Suas canções eram cantadas em locais tão distantes
quanto Paris, e a palavra de sua sabedoria se espalhou por toda a cristandade.
Mas, por estarmos no século XXI, muitas pessoas
simplesmente não aceitam que Deus tenha comunicado nada, muito menos a verdade,
por meio de Hildegarda. Alguns historiadores diagnosticaram seus sofrimentos
contínuos como enxaquecas, mas todos falharam completamente em explicar a
origem de suas visões em termos médicos. Não podemos negar que alguns de seus
sintomas se assemelham aos da enxaqueca, mas o poder e a riqueza de suas
visões, bem como a profundidade da compreensão que ela mesma tinha delas, têm
uma fonte muito diferente.
Ela não é uma desconhecida na Alemanha
contemporânea, mas a maioria das pessoas conhece seu nome pelo motivo errado.
Há uma linha de produtos e um site de internet que levam seu nome e vendem
elixires feitos de plantas, poções, cremes, pós, rochas e corantes, todos
comercializados para a felicidade, o sentimento de liberdade e a independência
das pessoas. Porém, a prioridade de Hildegarda era a santificação e a
salvação dos outros. Alega-se que os produtos são baseados nos escritos dela,
mas eles estão mais alinhados com o comercialismo da Nova Era. Mais séria e
mais digna é a associação (Bund der Freunde Hildegards) que publica um
periódico trimestral e possui uma rede de médicos, quiropráticos e
pesquisadores da área médica, os quais realizam um verdadeiro esforço para
aplicar seus remédios e metodologias aos problemas que as pessoas enfrentam
hoje. Mas esse grupo quase não entende a mensagem religiosa de Hildegarda.
Num nível mais popular, cineastas alemães lançaram um longa-metragem sobre ela
em 2009 : Vision: From the Life of Hildegard von Bingen (‘Visão:
Da Vida de Hildegarda de Bingen’). O filme a apresenta como religiosa,
abadessa, escritora, compositora e médica, terminando com seus preparativos
para uma viagem de pregação. Infelizmente, porém, a produção se concentra nos
esforços dela para ser reconhecida pelos homens da Igreja, bem como para
conseguir a independência em relação ao controle deles. O roteiro conta a
história da luta de uma mulher pobre e oprimida do século XII para se tornar
plenamente ela mesma diante de uma hierarquia eclesiástica medíocre, invejosa,
sexista e masculina.
Hildegard foi e é muito mais que isso. Dizendo de
modo bem simples, ela foi uma grande santa. Sofreu e lutou terrivelmente. Amou
a Deus acima de todas as coisas e sacrificou tudo para agradá-lo. Perseverou
até o fim. Inspirou inúmeras pessoas. Disse a elas que deveriam parar de pecar
e abraçar a santidade. Para chegar a conhecê-la, leia os seus escritos. Algumas
imagens lhe parecerão exóticas ou bizarras, mas a sabedoria de seus preceitos
morais e insights religiosos merece um sério exame e um grande
respeito.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://padrepauloricardo.org/blog/santa-hildegarda-uma-visionaria-para-todas-as-eras