sábado, 2 de agosto de 2025

O chamado à santidade da vida

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Diego Leli, CMF 


‘Sede santos como o vosso Pai celestial é santo.’ (Mt 5,48)

‘Antes que eu te formasse dentro do seio de tua mãe,
Antes que tu nascesses, te conhecia e te consagrei.
Para ser meu profeta entre as nações eu te escolhi.
Irás onde enviar-te e o que te mando proclamarás!’
(Coral Palestrina) 

‘Antes que o mundo nos chamasse por nomes passageiros, Deus já sussurrava em nosso íntimo um nome eterno : ‘santo’. Antes que nascêssemos, Deus já nos conhecia e nos chamava pelo nome (cf. Jr 1,5). Esse chamado não é privilégio de poucos, mas o fundamento da existência de todos. Não se trata de um ideal inalcançável, reservado aos altares e vitrais das igrejas, mas de uma vocação profundamente humana, enraizada no dom da vida que recebemos e que se desdobra, dia após dia, como resposta amorosa ao Criador.

Ser humanos já é um chamado. Respirar já é uma resposta. Cada batida do coração é um eco silencioso do Pai que nos convida à plenitude : ‘Sede santos, como vosso Pai do Céu é santo’ (Mt 5,48). Essa é a primeira e mais radical vocação que habita cada pessoa, a vocação à santidade, à vida vivida como dom, entrega e missão. A santidade não começa com grandes gestos, mas com pequenos e fiéis ‘sins’ dados no cotidiano : na paciência de um educador, no cuidado de uma mãe, na escuta silenciosa de um consagrado, no olhar compassivo de quem serve.

Agosto é, na tradição da Igreja do Brasil, o mês em que celebramos de maneira especial as vocações : ao ministério ordenado, à vida consagrada, à família, aos leigos e leigas, mas, antes de cada uma dessas formas concretas de seguir Jesus há uma vocação primeira que nos atravessa a todos : a vida como espaço de santificação, o existir como caminho de comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs. A vida é dom, é milagre, é missão. É nesse chão da existência que floresce a voz de Deus, convocando-nos a descobrir a melodia única que Ele mesmo compôs em nosso interior.

Descobrir a própria vocação é como escutar, em meio ao ruído do mundo, um canto suave que nos chama pelo nome. É reconhecer que não somos obra inacabada do acaso, mas, sonho amado de Deus. Esse sonho se realiza não quando nos fechamos em expectativas humanas, mas quando nos abrimos à lógica do Evangelho : perder para ganhar, servir para viver o amor e amar até o fim. A vocação, qualquer que seja, nasce da escuta, amadurece no discernimento e frutifica na entrega.

Ser vocacionado é, antes de tudo, deixar-se alcançar. É permitir que Deus entre em nossa história e a transforme em bênção para os outros. A vocação não é um peso, mas uma centelha de sentido; não é um dever imposto, mas uma resposta amorosa que brota da liberdade. Essa liberdade, quando atravessada pelo Espírito, conduz-nos a lugares inimagináveis, ensina-nos a viver com inteireza e a amar com profundidade.

Neste mês vocacional, talvez a melhor pergunta não seja ‘O que devo fazer?’, mas ‘Quem sou eu aos olhos de Deus?’. A resposta a ela nos conduz à fonte da nossa identidade mais profunda. Somos filhos, somos chamados, somos enviados. Nesse caminho de escuta e resposta, Maria nos acompanha como mestra da vocação. Ela, que ouviu o chamado no silêncio de Nazaré e respondeu com um ‘sim’ que mudou a história, continua a nos ensinar que vocação se vive com humildade, coragem e disponibilidade.

Deixemo-nos tocar novamente pelo sussurro do Pai. Talvez Ele não venha em forma de grandes revelações, mas no brilho de um gesto simples, na inquietação do coração, na alegria que ressurge quando servimos. Neste mês de agosto, abramos os ouvidos e os corações. A vocação nos chama. A vida nos espera. A santidade nos abraça. E Maria caminha conosco, como estrela que guia e coração que acolhe.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/o-chamado-a-santidade-da-vida.html

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Acompanhar os refugiados do Sudão do Sul

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Irmã Paola Moggi

 

‘Nos campos de refugiados sobrelotados do Sudão, onde a violência e a escassez são desafios diários, as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus (SHS) oferecem um apoio crucial às pessoas deslocadas. A congregação sul-sudanesa, que vive em campos como Al Kashafa, presta cuidados espirituais, aconselhamento sobre traumas e ajuda prática a milhares de pessoas deslocadas por causa de décadas de conflito.

A presença das religiosas é vital no Estado do Nilo Branco, servindo os refugiados em Al Kashafa e nos campos vizinhos, como Gemeyia e Jorry. Elas organizam programas de catequese, visitam os doentes e oferecem conforto a quantos sofrem de fome, maus-tratos e das consequências emocionais do deslocamento. «O nosso principal serviço é ouvi-los», disse a irmã Georgina Victor Nyarat, que trabalha em Al Kashafa desde Dezembro de 2023 : «As pessoas estão realmente a sofrer.»

A congregação, fundada em 1954 pelo bispo Sisto Mazzoldi [1898--1987, missionário comboniano, primeiro bispo de Juba] no Sudão do Sul, viveu a guerra e o deslocamento em primeira mão. Depois de fugirem da primeira guerra civil no Sudão, em 1964, as religiosas procuraram refúgio no Uganda antes de regressarem ao Sudão do Sul, mas viram-se forçadas a fugir novamente quando a segunda guerra civil eclodiu no Sudão, em 1983. Desde então, permaneceram com o seu povo, atravessando fronteiras para continuar a missão.

Em 2016, após a escalada da violência no Sudão do Sul, o bispo Daniel Adwok Kur, de Cartum, convidou as religiosas a irem cuidar dos refugiados na região do Nilo Branco, no Sudão. Estabeleceram residência em Al Kashafa, um campo que alberga mais de 150 mil sul-sudaneses. A residência das religiosas, construída com telas de plástico, é uma estrutura humilde, mas a presença delas tem sido uma tábua de salvação para as pessoas deslocadas. 

Enfrentar a discriminação

As religiosas também são mediadoras num ambiente tenso no qual as comunidades de acolhimento muitas vezes maltratam os refugiados. A irmã Mary Achwany George, que trabalha em Al Kashafa desde 2016, referiu que os refugiados do Sudão do Sul enfrentam discriminações, incluindo restrições para recolher lenha e água. «Muitos recebem ameaças, inclusive sexuais, quando deixam o campo», disse ela. Apesar desses desafios, as religiosas oferecem refúgio e esperança através da oração e da solidariedade.

As religiosas também fornecem apoio crucial quando as porções alimentares se tornam escassas. O Programa Alimentar Mundial (PAM) oferece algum alívio, mas a escassez persiste, obrigando os refugiados a trabalhar como jornaleiros com pouca compensação. «O stress e a frustração podem tornar-se tão insuportáveis, especialmente para os jovens, que muitas vezes adoecem», diz a irmã Mary. 

Partilhar a fé e a esperança

No meio dessas dificuldades, a presença das Irmãs SHS ajuda os refugiados a aprofundar a fé e a resistir. «No início, as pessoas não estavam próximas da Igreja», recorda a irmã Georgina. «Agora gostam de rezar conosco». Todos os anos, o bispo Daniel Adwok visita os campos para administrar o sacramento da Confirmação e prestar cuidados pastorais.

A irmã Mary realça a capacidade de resistência dos refugiados, que partilham o que possuem com os recém-chegados do Sudão. «Com o pouco que têm, os refugiados do Sudão do Sul também oferecem ajuda aos sudaneses deslocados que chegam aos campos. Eles dizem-nos : ‘Deus está lá, irmãs, e um dia voltaremos para casa’.»’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/1380/acompanhar-os-refugiados-do-sudao-do-sul/

terça-feira, 29 de julho de 2025

Tráfico, o novo relatório de Talitha Kum: ajuda para 400 mil mulheres e crianças

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Federico Piana - Vatican News

 

‘Não são números, são esperança. Por exemplo, anotem este número : 939.185. Representa os homens, mulheres e crianças em todo o mundo que ‘Talitha Kum’ — a rede internacional da vida consagrada contra o tráfico de pessoas, nascida em 2009 no seio da União Internacional das Superioras Gerais — conseguiu ajudar no ano passado. Ponham esses números em fila, um por um, e terão diante dos olhos um povo oprimido pela violência e pela injustiça que encontrou forças para continuar a existir. Nada a ver com estatísticas frias e anônimas.

Sobretudo mulheres e crianças

Graças a todos os dados contidos no Relatório Anual 2024, publicado na véspera do Dia Mundial contra o tráfico de seres humanos, que se celebra neste dia 30 de julho, descobrimos que ‘Talitha Kum’ conseguiu alcançar, graças aos seus programas de apoio e sensibilização, mais de 400 mil mulheres e crianças. Em particular, mais de 46 mil mulheres e meninas receberam cuidados diretos como vítimas sobreviventes, registrando um aumento de 19% em relação ao ano anterior. E, se o número de vítimas aumentou, também cresceram os serviços de apoio, como alojamento seguro, apoio psicológico especializado em trauma, assistência jurídica e cursos de formação profissional : um aumento médio de 26%, especialmente na Ásia e nas Américas. ‘Essas intervenções’, lê-se no relatório, ‘foram realizadas principalmente por freiras e apoiadores da nossa rede, cuja presença compassiva e contínua encarna a missão de Talitha Kum : caminhar ao lado dos sobreviventes com dignidade’.

O problema da justiça

Na Europa e na África, registrou-se uma queda de 26% nos serviços necessários para garantir o acesso adequado à justiça, enquanto a Ásia segue uma tendência contrária : aqui, alguns progressos foram alcançados graças a colaborações eficazes no âmbito jurídico e a atividades concretas de assistência jurídica. O relatório, no entanto, ressalta cada vez mais ‘a urgência de reforçar o acompanhamento jurídico e replicar as boas práticas nos contextos menos atendidos por esses serviços’.

Prevenção, arma eficaz

A prevenção continua a ser uma das armas mais eficazes para combater o fenômeno da trata de seres humanos. Só em 2024, os projetos destinados a formar, educar e informar alcançaram quase 700 mil pessoas, um aumento de 11% em relação a 2023. Um sucesso particularmente marcante nas Américas, na Ásia, no Oriente Médio e na África, fruto de uma verdadeira mobilização popular e de uma colaboração inter-religiosa assídua. O dossiê também destaca os esforços de sensibilização, a chamada ‘advocacy’, que alcançou mais de 78.000 pessoas em espaços públicos da Europa, Américas, Oceania e África : ‘Enraizada nas vozes dos sobreviventes e na experiência vivida pelas comunidades, a ação política da nossa rede continua a reforçar o seu papel nos processos de diálogo político e nos fóruns da sociedade civil’.

Apoio ampliado

Os conflitos que hoje sangram o mundo, como os de Mianmar, Ucrânia e Oriente Médio, estão tendo um impacto considerável na gestão das atividades da rede internacional de freiras contra o tráfico humano. ‘Essas crises’, afirma Talitha Kum, ‘causam o deslocamento de comunidades inteiras, aumentando os riscos para mulheres, crianças, migrantes e refugiados. Apesar desses desafios, ampliamos nosso apoio às vítimas e sobreviventes. Nossa ação de ‘advocacy’ se fortaleceu em todas as regiões do mundo’. De Gana à Coreia do Sul, do Brasil à Irlanda, o objetivo das irmãs contra o tráfico, apoiadas por um grupo consistente de organizações da sociedade civil, tem sido influenciar as políticas públicas, também graças à sabedoria dos sobreviventes e das comunidades locais, bem como envolvendo jovens líderes capazes de mobilizar outros para a ação concreta.

Visão global

Além disso, o relatório apresenta uma avaliação mais geral do fenômeno do tráfico de pessoas, que parece estar crescendo a cada ano : ‘é complexo e difícil de compreender totalmente, também devido à escassez de dados atualizados e confiáveis. Trata-se, no entanto, de uma realidade em constante evolução, intimamente ligada a tendências globais emergentes, desigualdades e vulnerabilidades’. De acordo com as estatísticas mais recentes do Escritório das Nações Unidas para o Controle de Drogas e Prevenção do Crime, ‘em 2022, foi registrado um aumento global de 25% no número de vítimas em relação a 2019. Os casos de trabalho forçado cresceram 47% e as vítimas menores de idade, 31%, com um aumento de 38% entre as meninas. Vinte e dois por cento das ONGs relatam que mais de um terço dos sobreviventes que elas apoiam foram vítimas de tráfico mais de uma vez’. Dados que confirmam que as mulheres e meninas continuam, infelizmente, ‘representando a maioria dos casos, enquanto em muitos países a maioria das vítimas de tráfico são menores’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-07/trafico-novo-relatorio-talitha-kum-ajuda-400-mil-mulheres.html

domingo, 27 de julho de 2025

Charles de Foucauld, profeta do nosso desafio monástico

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Michael-Davide Semeraro, OSB

Superior de Rhêmes Notre-Dame, Itália 

 

‘A canonização do Irmão Charles é uma oportunidade para voltar à fonte da experiência espiritual deste buscador de Deus. Pela sua forma única de viver o seguimento de Cristo, ele foi o profeta do Concílio Vaticano II, esse tempo de uma inteligência renovada do Evangelho. Na conclusão de sua última encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco escreve :

«Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres. Refiro-me ao Beato Charles de Foucauld».

Embora o Irmão Charles seja referido no Ordo como «padre», parece-me poder dizer que, na realidade, ele foi e permaneceu sempre um monge e um monge cisterciense. No momento em que a experiência do Irmão Charles já estava bastante madura, uma carta escrita de Tamanrasset, em 26 de março de 1908, ao seu cunhado Raymond de Blic, mostra-o consciente da sua evolução e do desafio que ela representa para as suas escolhas futuras : «Permaneço um monge - monge em terra de missão - um monge missionário, não somente missionário» [1].

Deste ponto de vista, podemos dizer que há um trabalho em curso para compreender melhor como a espiritualidade do Irmão Charles está enraizada na mais pura tradição monástica, entendida como este fluxo de água viva, este desejo de procurar Deus de acordo com o Evangelho que atravessa, em segredo, por vezes, a longa e complexa história. O Irmão Charles tem um apurado sentido da sua história pessoal, ligado não só ao tempo que passa, mas também aos lugares que percorre; ele observa assim nas suas meditações bíblicas : « Apliquemos este salmo a nós próprios : é a história da nossa alma. Deus tirou-nos do mundo com a sua própria mão » [2]. Como nota Raymond Pannikar, a vida de cada homem e mulher neste mundo não é apenas a sua biografia, mas também a sua geografia. Isto é especialmente verdade para o Irmão Charles, que escreveu de si mesmo a uma amiga, quase na mesma linha que Teresa de Lisieux, na sua autobiografia : «Monge, vivendo apenas para Deus, amando as almas com todo o ardor do meu coração em vista d’Ele» [3].

O escritor Norman Manea recentemente afirmou que na realidade somos todos igualmente o fruto da nossa bibliografia, e isto vale também para o Irmão Charles e seu itinerário de leitor que se tornou escritor.

Quando Charles de Foucauld se converteu a Deus, sob a sábia orientação do Abade Huvelin, sentiu espontaneamente a necessidade de se tornar um religioso e o disse, com surpreendente clareza, em uma carta escrita da Trapa, em 14 de agosto de 1901, a seu amigo Henri de Castries :

«Assim que acreditei que havia um Deus, compreendi que não podia fazer outra coisa senão viver somente para Ele : a minha vocação religiosa data da mesma hora que minha fé» [4].

Na lógica do Irmão Charles, é claro que se deve buscar a forma mais perfeita de vida religiosa e, de acordo com a sensibilidade espiritual da época e seu temperamento que o leva ao heroísmo, uma tal aspiração à radicalidade e à perfeição se identifica com a austeridade :

«Eu desejava ser um religioso, viver somente para Deus e fazer o que fosse mais perfeito, o que quer que isso fosse» [5].

Um retiro em Solesmes, seguido por outro em Soligny, finalmente o levou ao mosteiro trapista : «Pareceu-me que nada me apresentava esta vida melhor do que a Trapa» [6] [1]. As motivações são claras : «Buscar uma vida conforme à vossa, onde eu possa compartilhar completamente vossa abjeção, vossa pobreza, vosso humilde trabalho, vosso isolamento, vossa obscuridade» [7].

No mosteiro, primeiro em Notre-Dame des Neiges, depois em Akbes, parece realmente que o Irmão Charles tenha aprendido a ler dois livros : as Escrituras e seu próprio coração. Em uma época em que, mesmo nos mosteiros, as devoções eram preferidas à lectio divina, o Irmão Charles aprende a se imergir na escuta e na interpretação das Escrituras, das quais ele tirará todos os dias, e até o último dia de sua existência terrena, luz para seu caminho, seguindo esta regra fundamental retomada pela Dei Verbum : «A grande regra para interpretar as palavras de Jesus são seus exemplos. Ele mesmo é o comentário de suas palavras» [8].

Muitos dos elementos fundamentais da sensibilidade espiritual do Irmão Charles têm suas raízes na tradição monástica beneditina e, muito especialmente, na escola cisterciense. A preferência absoluta pelos mistérios da vida de Jesus, e a contemplação de sua encarnação como forma de segui-lo, são fruto da escuta dos textos dos padres cistercienses que eram lidos durante as vigílias e no refeitório. Muitos dos temas e ênfases que são frequentemente apresentados como intuições originais do irmão Charles, na realidade, fazem parte de uma tradição que o Irmão Marie-Albéric respirou profundamente na Trapa e que ele, em seguida, expressou em escolhas completamente pessoais. Assim ele escreveu, em 24 de abril de 1897, a Raymond de Blic : «Eu deixei a Trapa depois de ter recebido a dispensa completa de meus votos, para encontrar em outro tipo de vida o que eu havia buscado na Trapa sem encontrá-lo lá». Em seguida, o Irmão Charles afirma : «Eu amo e estimo a Trapa» [9].

Seria, portanto, muito interessante tentar encontrar os paralelos entre as intuições do Irmão Charles em sua meditação sobre a vida do Senhor Jesus - especialmente através das meditações dos Evangelhos em forma «escrita» que ele impôs a si mesmo - e os comentários de monges cistercienses como Bernardo de Claraval, Guerrico d’Igny, Isaac da Estrela, Guilherme de Saint-Thierry, Baudouin de Ford... Este é um grande desafio, pois esta pesquisa poderia conter muitas surpresas e talvez até conduzir a uma compreensão mais profunda do Irmão Charles, como parte de uma tradição fiel, mas viva, da qual ele tirou a força, a coragem e a serenidade das inovações que são exigidas dos monges e das monjas de nosso tempo.

Em uma declaração recente, o Abade Geral dos Trapistas nota que, ao longo do século passado, certas intuições profeticamente percebidas pelo Irmão Charles se tornaram comuns aos monges de hoje :

«As comunidades estão se tornando menos institucionais, vinculadas a relações pessoais mais do que formais, como vemos em comunidades e mosteiros menores» [10].

Na linha da mais pura tradição cisterciense, o sonho do Irmão Charles é redescobrir uma vida cristã na qual seja dada grande importância a essa intimidade. Esta por sua vez, gera caridade e benevolência, que culmina em «indulgência terna e compassiva para com os pecadores, da qual tanto precisamos, sendo tão propensos à severidade para com os outros» [11]. A raiz distante desta caridade, porém, permanece uma atitude de intimidade orante, uma paixão do desejo e da imitação, que, na linguagem da época, é descrita como amor puro.

O Irmão Charles optou por se colocar no caminho dos outros para poder encontrá-los, conhecê-los e amá-los. Ele busca um lugar fronteiriço, muito antes de falarmos de «situações de fronteiras». Uma nota do Irmão Charles é muito esclarecedora aqui :

«Quem ousaria dizer que a vida contemplativa é mais perfeita do que a vida ativa ou vice-versa, já que Jesus conduziu ambas? Uma só coisa é verdadeiramente perfeita : fazer a vontade de Deus» [12].

Certamente não é por acaso que Notre-Dame des Neiges conserva hoje a memória do Beato Charles de Foucauld, como se ele nunca tivesse deixado seu mosteiro ou como se tivesse voltado para lá depois de seu longo itinerário. Teria ele procurado outra coisa que não fosse permanecer «sob a guia do Evangelho» [13], como diz São Bento em sua Regra, colocando-se na escola dos outros para aprender de todos a inesgotável arte do amor?’

 

[1] Carta a R. de Blic, 26 de março de 1908.

[2] Meditação sobre o Antigo Testamento, Salmo 104.

[3] Carta a H. de Castries, 14 de agosto de 1901.

[4] Carta a H. de Castries, 14 de agosto de 1901.

[5] Ibidem.

[6] Ibid.

[7] Carta a Louis de Foucauld, 12 de abril de 1897.

[8] Meditação sobre o Evangelho, 199, Mc 6,7.

[9] Carta a R. de Blic, 24 de abril de 1897.

[10] Relação de Dom Eamon Fitzgerald ao Capítulo Geral da Ordem Cisterciense, de 14 de setembro de 2014, em Assis, Collectanea Cisterciensia, 76 (2014) 4, p. 339-348.

[11] Ch. de Foucauld, Carta a Massignon, 15 de julho de 1915.

[12] Ch. de Foucauld, Med. sobre o Evangelho, 194, vocação.

[13] São Bento, Regra, prólogo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/120

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Madre Marie-Chantal Modoux

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Madre Maria Chantal, OSB (1919-2020)

 

‘Madre Maria Chantal Modoux nasceu na Suíça, na região de Fribourg em 21 de Fevereiro de 1919. Filha de Léon Modoux e Marie-Jeanne Crausaz Modoux, foi a mais velha de 4 irmãs. Educadora nata formou-se no Magistério e trabalhou nesta área em várias famílias. Durante a 2ª Guerra viveu no Vaticano como professora de crianças de uma família de diplomatas, e depois na Espanha, em duas famílias. Vocação tardia, descobriu seu caminho monástico com a leitura de um livro de Dom Columba Marmion, abade do Mosteiro de Maredsous : ‘O Cristo Ideal do Monge’. Foi uma amiga, oblata do Mosteiro de Ligugé, que lhe passou esse livro. Ao fechá-lo disse : ‘É isto e mais nada!’. No seu processo de discernimento sobre aonde entrar, foi o Mosteiro de Nossa Senhora de Betânia, na Bélgica, que a cativou. Entrou no dia 16 de outubro de 1951, e no dia 4 de junho do ano seguinte começava o noviciado. Encontrou no grupo ‘dos véus brancos’ Ir. Anne Farcy, que mais tarde seria sua companheira na fundação do Brasil. Ir. Anne era, monasticamente, a mais velha do grupo, e era preciso obedecer-lhe. Durante o noviciado, nossa madre foi a enfermeira do grupo. No dia 21 de agosto de 1954 fez os primeiros votos e três anos depois, no dia 23 de agosto de 1957 fez a profissão perpétua. Nesse mesmo ano, em novembro, partiu para o Congo Belga, onde Betânia já tinha várias fundações. Integrou a comunidade de Kikula na região das Minas de Cobre, na cidade de Likasi. Em 1960 o Papa João XXIII fez um apelo aos contemplativos em favor da América Latina. A Madre, que se encontrava na Bélgica, falou numa reunião de comunidade que esperava que Betânia respondesse a esse apelo. Estava longe de saber que já pensavam nela para essa fundação no Brasil. Nossa Madre teria preferido um país de língua espanhola, língua que ela conhecia, mas a escolha foi o Brasil. Foram nomeadas 5 irmãs, sendo a Madre Chantal a responsável do grupo. As primeiras três saíram da Bélgica de navio cargueiro em novembro de 1963. Passaram no Rio de Janeiro, desembarcaram em Santos e no começo de 1964 chegaram a Curitiba, onde existia um Mosteiro de monges franceses vindos de Tournay, França. Existiam também os Padres MSC, vindos da Bélgica, que tinham uma paróquia no Pinheirinho. Era bispo de Curitiba Dom Manuel d’Elboux.

As irmãs, que não tinham onde morar, separaram-se, cada uma sendo acolhida numa casa de religiosas para também poderem aprender o português. Entretanto os padres MSC acharam um terreno para ser comprado e logo a construção começou. Um mosteiro muito simples em madeira, como as casas dos vizinhos. O Pinheirinho era uma zona rural, sem eletricidade, sem água, sem telefone. Para ir para o centro de Curitiba, que ficava a 3 Km, só havia um ônibus por dia. O Papa Paulo VI tinha falado de uma Igreja serva e pobre, e era isso que as fundadoras queriam. Quando os carpinteiros entregaram a chave do mosteiro, as irmãs partiram para Petrópolis, para fazerem o curso do Cenfi organizado pela Conferência Episcopal do Brasil para missionários estrangeiros. Tratava- se de aprender a língua, a história e a cultura do país. Foram seis meses duros, o método era o da repetição, aparentemente sem lógica, mas deu frutos e as irmãs criaram ainda laços com muitos outros religiosos (as) de várias nacionalidades. O mosteiro começou oficialmente no dia 1º de Novembro de 1965. A Madre Maria Chantal foi nomeada Prioresa, cargo que exerceu até ao ano 2000.

Os primeiros anos no mosteiro foram heróicos, faltava tudo, e sem eletricidade rezava-se o ofício antigo de 12 salmos, à noite, à luz de lâmpadas de querosene. Além disso, era preciso lavar a roupa e passar a ferro com carvão, a roupa da comunidade e a da sacristia dos padres MSC. Para conservar os alimentos era o único poço do terreno que servia de geladeira. Esse começo coincidiu com o tempo pós concílio, um período muito difícil para a vida religiosa e sacerdotal. Quantas pessoas a nossa Madre ajudou a sair da crise e a retomar o caminho certo. Ela tinha grande firmeza nos valores essenciais da vida religiosa. Era um tempo de ditadura militar, e as irmãs não podiam escrever, como gostariam, para a Bélgica, por causa da censura. Foram tempos de grande solidão. A Madre tinha o dom do acolhimento. Sua escuta e empatia, sua capacidade de memória fazia que as pessoas voltassem, sentindo-se valorizadas e únicas. Ela guardava os nomes das pessoas, suas fisionomias e sobretudo a conversa que tinha tido. A Madre cultivava esses laços com uma correspondência abundante. Ela escrevia muito, dormindo às vezes só 4 horas por noite. Ela não queria que esse correio a impedisse de estar presente nos atos comunitários. Muito cedo as pessoas descobriram o efeito de sua intercessão e, sobretudo de sua bênção. Suas tomadas de posição, às vezes audaciosas, sempre foram motivadas pela fidelidade ao Evangelho e pelo cuidado da pessoa humana e nunca ‘por política’.

Em 1988 a comunidade recebeu três pedidos de fundação de um mosteiro da parte de 3 bispos. A Madre Chantal e as irmãs escolheram o lugar mais necessitado, mais ‘fronteira’, a Prelazia de Itacoatiara, no Amazonas, a 4000 Km de Curitiba, onde foi fundado o Mosteiro da Água Viva em 1989.

Em uma visita canônica, no ano de 1998, ficou decidido que o nosso Mosteiro do Encontro deveria mudar de lugar. O Pinheirinho tinha se tornado um grande bairro de periferia, muito populoso, barulhento e violento. Com 80 anos de idade a Madre enfrentou a procura e compra de um novo terreno, não muito longe de Curitiba, nem muito longe dos irmãos trapistas, que tinham chegado em 1977. E a comunidade se mudou para o município de Mandirituba nas vésperas do Natal, no dia 23 de dezembro de 1999. A Dedicação da nova Igreja, em agosto de 2008, foi uma grande alegria para a nossa Madre, como um coroamento da fundação.

O lema da Madre era ‘A alegria do Senhor é a nossa força’ do livro de Neemias 8,10. E viveu sempre essa alegria. Ela era muito discreta sobre sua vida interior. Nunca falava de si mesma. Suas conferências à comunidade, suas aulas sobre o Seguimento de Jesus, revelavam sua profundidade espiritual. Seu olhar luminoso e seu sorriso tocavam as pessoas. Sua presença fiel no Ofício Divino, na lectio, nos trabalhos comuns, nos serviços da comunidade eram sinais do que ela vivia. Até aos 101 anos enxugava a louça e dobrava a roupa que vinha da lavanderia. Também assumia as sobremesas da comunidade e da hospedaria (até hoje lembradas pelos hóspedes). Na história da comunidade se conta com humor, num diário esquecido, que uma hóspede, na ausência da Madre, se queixava sobre o lanche do dia da Páscoa : ‘no tempo de Madre Chantal não era assim’. Quando deixou o cargo de Prioresa em 2000, era uma irmã na comunidade, pedindo a bênção, obediente à nova Prioresa, pedindo licenças do dia a dia, prestando contas quando saía. A Madre era muito ciosa da sua autonomia, mas a muita idade trouxe limites. Foi perdendo a audição e a visão, ela que lia muito e formou a nossa biblioteca. Sempre lúcida perguntava sobre as leituras do refeitório, e acompanhava as notícias do mundo e do país. Sirlene, nossa incomparável amiga, foi sua cuidadora atenta e discreta, que lhe dava muita segurança. Desde março passado, depois de uma queda, chegou o momento para a madre de precisar ser ajudada em tudo. Sempre tinha uma irmã com ela de dia e de noite e isso exigiu uma aceitação contínua de mais uma diminuição. Nunca se queixou, sempre agradeceu tudo. Sua última palavra foi ‘OBRIGADA’ Para as irmãs foi uma graça estar com ela. Mesmo as irmãs que estavam servindo outras comunidades da Congregação, voltaram à tempo e estavam presentes, o que muito alegrou nossa madre.

A Madre era uma mulher de fé; mas seus últimos meses foram um verdadeiro combate espiritual vivido numa certa noite escura. Perseverava na oração : ‘estou ali como diante de uma parede’, percebia-se uma certa angústia no rosto; às vezes dizia ‘como vai ser a morte?’ ‘o que é a vida eterna?’ ‘Será que amo bastante Jesus’? Queria que lhe lessem o Evangelho do dia várias vezes para ela memorizar o texto. A comunidade acompanhava-a com a oração.

A Madre amava profundamente sua família biológica e sua família monástica. Amava cada membro de nossas famílias e sabia os nomes de todos os nossos sobrinhos. Amava o meio onde estamos : os vizinhos, as crianças, o Brasil. Amava sobretudo a Igreja, acompanhava a CNBB, conhecia os bispos pelo nome, a CRB e evidentemente a Cimbra. Tudo lhe interessava. Foi uma grande monja, uma mulher profundamente habitada por uma Presença, com o espírito de uma criança que se maravilhava com tudo. Amava o louvor divino. Ela nos passou o amor pela vida monástica e a abertura ao mundo, vivida sobretudo pelo acolhimento e pela intercessão.

Toda a comunidade se juntou à sua volta na última noite. Cantamos o SUSCIPE da profissão e o Padre Jomar, nosso capelão, a ungiu com o óleo dos doentes. Seu último momento foi sem agonia, sua respiração parou, como uma vela que se consumiu amando até ao fim. Faleceu em sua cela como ela desejava, no dia 03 de setembro de 2020, festa de São Gregório Magno. O Padre Jomar a intitulou assim, minutos depois de sua partida ‘Madre Chantal Magna’!

Um casal amigo nos disse : ‘agora a Madre Chantal não é só vossa, na comunhão dos Santos, ela é de todos nós’.

Agradecemos de coração todas as mensagens recebidas e temos certeza, que lá do céu, nossa Madre Maria Chantal está muito mais presente em nossas vidas e intercede por cada um e cada uma.’ 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/120

terça-feira, 22 de julho de 2025

O mosteiro São Bento de Volmoed, o ecumenismo em ação

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Irmão Daniel Ludik, OHC

Priorado São Bento, Volmoed, África do Sul

 

‘Em 30 de agosto de 2019, três irmãos da Ordem da Santa Cruz, uma ordem beneditina anglicana, chegaram ao centro de retiro Volmoed perto de Hermanus, na província do promontório ocidental na África do Sul, após terem deixado o seu mosteiro perto de Makhanda (Grahamstown) na província do promontório oriental, com um caminhão cheio de bíblias, breviários, livros, ícones, estátuas, móveis e um cão. 

Uma breve história da ordem da Santa Cruz

A Ordem da Santa Cruz (OHC) foi fundada pelo padre James Otis Sargent Huntington em 1884 em Nova Iorque, como uma ordem de padres missionários que trabalhavam principalmente pela justiça social em favor dos migrantes desfavorecidos. A OHC rapidamente se concentrou na educação, notavelmente fundando escolas para as crianças pobres. Na América, a OHC fundou a escola S. Andrews em Sewanee, Tennessee, e a escola Kent em Kent, Connecticut. A OHC instalou-se igualmente na África desde o princípio do século XX, com uma fundação em Bolahun, na Libéria, onde a ordem criou a escola S. Mary. Este mosteiro teve infelizmente que fechar nos anos 1980 devido à guerra civil que assolou o país.

Desejosos de prosseguir com a sua presença na África, e a convite do arcebispo emérito Desmond Tutu, a OHC fundou o mosteiro Mariya uMama weThemba perto de Grahamstown na África do Sul em 1998. A comunidade monástica rapidamente lançou um programa paraescolar e um fundo de bolsas de estudo para as crianças dos trabalhadores agrícolas nos arredores do mosteiro. Entretanto, um dos maiores problemas identificados na educação na África do Sul é uma deficiente atenção aos estudos de base. Decidimos lançar uma escola primária que se encarregaria dos níveis (para as crianças dos 5 aos 8 anos). Assim a escola Holy Cross começou em 2010. 

A filiação beneditina

Com o tempo, e à medida que mudava a sociedade, a OHC tornou-se mais beneditina no seu espírito e no seu carisma. Com o encorajamento dos camaldulenses americanos, em relação de aliança com a OHC, esta tornou-se oficialmente beneditina quando do seu capítulo anual em 1984, cem anos após a sua fundação.

Enquanto beneditinos, fomos convidados a unirmo-nos à BECOSA (Benedictine Communities of Southern Africa) pouco após a nossa chegada à África do Sul. Este foi um recurso muito precioso para nós enquanto comunidade. É mal conhecida a existência de mosteiros na Igreja anglicana, pelo qual é muito importante e útil para nós fazer parte de uma família monástica alargada. Graças à BECOSA fomos iniciados no programa de formação dos mosteiros no qual participaram cinco monges da OHC a partir da África do Sul ao longo dos anos. Igualmente, por intermediação da BECOSA, participamos em diversos programas e cursos tornados possíveis pela generosidade da AIM. Isto poderia ser objeto de um artigo à parte; entretanto, é também uma boa ocasião de dizer «obrigado», uma vez mais! 

O centro de retiro Volmoed

O centro de retiro Volmoed nasceu no princípio dos anos 1980, no pior do apartheid na África do Sul, de uma visão comum de Bernhard Turkstra, então proprietário de um hotel, e de Barry Woods, padre anglicano, para criar um lugar abertamente cristão mas onde as pessoas de todas as raças e pertenças religiosas pudessem encontrar segurança e acolhimento em vista de uma cura e de uma reconciliação. Encontraram finalmente uma quinta chamada Volmoed (uma palavra africana que significa «cheio de coragem»), que era originalmente, no século XVIII, uma colônia de leprosos. Uma bela aventura de fé começou então nesse lugar maravilhoso que trouxe muitos frutos ao longo dos anos.

A comunidade residencial de Volmoed compõe-se de alguns casais de retirantes, todos muito ou pouco implicados na atividades cotidianas de Volmoed. O centro de retiro é gerido por uma equipe profissional cheia de dedicação sob a supervisão de um conselho de administração cujos membros não residem todos na propriedade. Para concluir, Volmoed está sob o patrocínio do bispo Desmond Tutu, grande amigo da ordem da Santa Cruz.

Mudanças em Volmoed

O que trouxe então os monges a Volmoed? Pouco após a sua criação, a escola Holy Cross cresceu regularmente uma classe por ano. Tornava-se evidente que a escola devia continuar a expandir-se, para além da fase de fundação, para se tornar uma escola primária inteiramente à parte. Devido à disposição dos edifícios da propriedade, a opção menos cara e a mais sensata seria converter todo o recinto próximo dos monges em salas de aulas suplementares.

No início, os monges instalaram-se numa parte da hospedaria do mosteiro, mas esta solução depressa se revelou insustentável. Começamos então a procurar um outro alojamento e, devido a contatos anteriores com a comunidade Volmoed, pedimos-lhes ajuda para encontrar possibilidades no promontório ocidental.

Uma parte da ética de Volmoed é ser uma presença orante a todo o momento. Foi o que ofereceu o padre Barry Woods à sua morte no princípio de 2019. Assim, quando nos informamos sobre as possibilidades de instalação no promontório ocidental, a equipe de Volmoed convidou-nos a viver junto como uma presença orante. Foi assim que o priorado de São Bento em Volmoed viu o dia. Como era de se esperar, passar de um mosteiro totalmente autônomo a um espaço ecumênico existente e funcionando bem, oferece um conjunto particular de desafios e oportunidades. 

A vida em Volmoed

Falei de Volmoed como de um lugar de cura e reconciliação, o que é pois em si um ministério muito dinâmico. Volmoed mantem relações com diversas organizações e comunidades locais e internacionais que se consagram à consolidação da paz e à reconciliação. Uma dentre elas é a Community of the Cross of Nails, na catedral de Coventry.

Através do programa de formação de liderança de jovens de Volmoed (VYLTP: The Volmoed Youth Leadership Training Programme), existe igualmente uma relação viva com a comunidade de Taizé na França. O VYLTP é um programa residencial de nove semanas, no fim do qual um ou dois jovens que se revelaram aptos são escolhidos e enviados a Taizé por três anos a fim de trabalhar no quadro do seu programa de voluntariado.

Para o culto, Volmoed dispõe de um complexo de capelas com uma grande capela principal, uma capela-santuário menor e, no nível inferior, várias outras salas. Estas salas e o santuário estão à nossa disposição. As partes do nível inferior servem-nos de escritório e de pequena sala de capítulo.

Seguimos o nosso horário monástico cotidiano e reunimo-nos frequentemente com membros da comunidade Volmoed e/ou convidados. A nossa eucaristia dominical é frequentemente seguida por um certo número de pessoas que não se sentem particularmente ligadas a uma paróquia ou a uma congregação local.

Há várias décadas, Volmoed propõe um serviço de comunhão ecumênica às quintas-feiras de manhã que se revelou muito popular junto da comunidade da vila de Hermanus em sentido amplo («Acolhimento de pessoas com necessidades complexas»). A comunidade monástica foi convidada a dirigir o serviço na última quinta-feira do mês, e aproveitamos esta ocasião para apresentar à assembleia diferentes tipos de cantos (via YouTube) que ajudaram a acomodar as pessoas conduzindo-as a uma maior calma, em atenção ao grande número de pessoas presentes e não somente de monges! Estas eucaristias de quinta-feira permitiram-nos igualmente fazer conhecer melhor vários participantes do domingo.

Há muitas outras organizações e pessoas neste domínio que encontramos ou que esperamos encontrar e com as quais podemos atar relações e ministérios. Infelizmente, a maior parte do tempo que passamos aqui em Volmoed, na África do Sul, mas também no resto do mundo, foi bloqueada ou submetida a outras restrições devido à pandemia COVID-19. Esperamos continuar a desenvolver estas relações na medida do possível.

Enquanto comunidade monástica, agradecemos a Deus o estarmos em condições de oferecer uma direção espiritual, sobretudo nestes tempos difíceis. Este ministério começou quase imediatamente após a nossa chegada e permitiu, assim esperamos, uma evolução para certas pessoas. Muita gente se esforça verdadeiramente por estar presente quando entes queridos morrem, ou por poder estar com os doentes e/ou com os que se encontram sós. Dito isto, as formas de comunicação on-line têm-se revelado inestimáveis neste ministério, sobretudo para aqueles que se encontram demasiado longe para nos virem ver pessoalmente.

Como diz São Tiago, «vós não sabeis sequer o que será a vossa vida amanhã», nestes tempos incertos, há muitas coisas que não sabemos; no entanto, em Cristo, sabemos o que é a nossa vida e damos graças por cada dia.’ 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/120

sábado, 19 de julho de 2025

Abertura ao mundo - Desafios para os cristãos e para os consagrados num mundo agitado[1]

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Italo de Sandre

 

«O Senhor disse : ‘Eu vi, eu vi a miséria do meu povo no Egito. Ouvi o seu grito diante dos seus opressores; sim, eu conheço as suas angústias’.» (Êxodo 3, 7)

 1.Ver e ouvir para conhecer : os cristãos deviam saber que aí estão os primeiros passos de toda a obra de misericórdia e que, mutatis mutandis, é também o que se encontra no coração do trabalho das ciências sociais. Um primeiro problema, uma questão nem sempre resolvida na Igreja de hoje, estar verdadeiramente disponível e agindo para ver, escutar, conhecer a realidade da vida das pessoas e das sociedades, e não somente o que está bem e o que queremos que seja; e isto, sem ter medo de ser posto em questão. A observação sociológica não propõe uma ideologia da sociedade (como certos meios católicos, mesmo de primeiro plano, dizem ou deixam entender), mas procura contribuir para «ver» as coisas o melhor possível na sua complexidade, recorrendo a métodos fiáveis (repetíveis) e válidos (capazes de representar a realidade estudada) de modo transparente, submetido a um controle e às críticas. É neste espírito que, para dar um exemplo, nos anos 1990, os institutos religiosos masculinos e femininos do nordeste da Itália lançavam simultaneamente com o Observatório sócio-religioso da Conferência episcopal de Três Venécias, um «Observatório da vida consagrada», que publicou, entre outros, uma investigação sobre «Os jovens e a vida consagrada. Uma outra via», num volume coletivo. As representações que os jovens se faziam dos religiosos e dos padres eram já sem encanto, em tensão com os aspectos mais institucionais da vida dos consagrados, sobretudo dos padres («Eles têm a resposta antes que se lhe tenha posto as questões»). Mas mesmo este período de atenção e de abertura no mundo dos religiosos rapidamente é encerrado. Um outro exemplo. Recentemente, para preparar o congresso eclesial da Aquileia (nordeste de Itália), em 2012, os bispos das Três Venécias pediram ao Observatório sócio-religioso da Conferência episcopal das Três Venécias (OSReT [2]) um importante e complexo inquérito sócio-religioso, cujos resultados, muito interessantes tanto quanto as críticas, foram apresentados e discutidos de modo comprometido por numerosos responsáveis da pastoral diocesana, mas os bispos não acharam bem publicá-lo numa obra, nem o levaram em consideração  nas suas conclusões finais. Muitos católicos, bispos, religiosos, leigos estimam «saberem já» e que não tem mais necessidade de outras «complicações sociológicas». Nos nossos dias, pelo contrário, um Papa como o cardeal Bergoglio quis que antes e entre as sessões do sínodo sobre o casamento e a família se escutasse todas as Igrejas e todos aqueles que quisessem contribuir com o seu próprio testemunho de vida. É uma decisão inédita, importante, mais talvez como método do que pelo seu conteúdo, que corresponde aos resultados produzidos. Quem sabe quando e quem quererá retomar esta decisão e dar assim todo o seu valor à experiência de fé e de vida que é feita na consciência dos fiéis. Complexidades das experiências que não se pode descartar sem fazer violência tanto às pessoas como à inteligência da realidade. Pessoalmente, estimo que mesmo as comunidades monásticas deveriam constituir, nos seus diversos países, pequenos grupos de investigadores e de monges, de monjas (ou, mais geralmente, de religiosos e religiosas) para conhecer e compreender a sua realidade em curso de mudanças.

2. Desde há algum tempo, diversos estudos demonstraram que entre mãe/pai e filhos sobrevêm um importante desmoronamento intergeracional dos valores nos quais se crê (por exemplo : a verdade dos Evangelhos, Cristo) e práticas, sobretudo no domínio moral em geral, e em particular no da afetividade-sexualidade. A imagem da Igreja era já muito problemática por causa das suas mensagens de austeridade, e não é de se duvidar que a simpatia pessoal da qual é alvo o Papa Francisco seja também devida como simpatia e uma confiança generalizada para com a Igreja-instituição. A religiosidade procura vias que impliquem uma presença reduzida da Igreja («um pouco de Igreja»), mas – no momento – não «sem Igreja». Observe-se a afluência a certos santuários ou lugares de culto particulares, frequentados não somente por pessoas inativas e pouco instruídas, segundo os velhos cânones da piedade popular, mas por pessoas ativas e instruídas que procuram uma via pessoal de relação de fé-confiança em meios diversamente acolhedores.

A atitude das mulheres não difere muito mais da dos homens. E mesmo, entre as mulheres, quanto mais aumenta o nível de instrução mais aumentam as tomadas de posição críticas para com o catolicismo e a Igreja. O que implica que a transmissão tradicional da fé pelas mulheres não pode mais ser considerada como garantida. A presença ativa, mais madura e mais crítica das mulheres, consagradas e leigas, exige uma reflexão dialógica e uma implicação profunda e comum. Do mesmo modo, o sentido tradicional do «serviço» deve ser inteligentemente revisitado em toda a sua amplitude, para mulheres e homens. 

3. A centralidade do sujeito como indivíduo, pelo menos no Ocidente, conduziu as pessoas a sentirem-se e a pretenderem-se autônomas face-a-face com as instituições, sociais, civis e religiosas (mas não econômicas, o mercado incitando os consumidores de mil e uma formas). As tecnologias da comunicação fizeram explodir este fenômeno. O amadurecimento das pessoas opera-se através de um percurso mais longo e incerto, favorecido por um prolongamento dos percursos escolares, e tornado menos diretivo por numerosas ocasiões e infinitas aspirações tornadas possíveis. Cada vez mais, as vocações à vida consagrada emergem elas mesmas numa idade em que a pessoa já adquiriu uma personalidade madura, menos (ou mais dificilmente) diretamente adaptável ao estilo dos institutos em que ela entra, tornando mais complexa a identificação e a organização da vida comum. A unidade da vida pessoal, mesmo para um monge ou uma monja, não é assim tão simples, nem se encontra pela observação de papeis e de gestos.

Esta autonomia da pessoa, sentida e pretendida, colocou o corpo no centro. O corpo, não mais considerado como qualquer coisa de negativo, a esconder, desvalorizado em relação ao «espírito», está pelo contrário estreitamente ligado ao espírito-razão num sentido ativo e positivo. A sociedade de consumo atrai a fazer experiências, a experimentar os cinco sentidos nas ocasiões mais variadas. Assim, não se compra mais uma coisa somente para possui-la, para utilizá-la, mas quer-se poder viver com ela uma experiência emocional, física, individual ou com outras pessoas.

Os corpos-espíritos têm uma sexualidade e papeis de gênero que são transformadas em parte (e não é justo focar tudo sobre a homossexualidade, como fizeram recentemente na Itália ideologias opostas). As desigualdades tradicionais homem-mulher não são mais aceitas, em nenhum meio de vida como em sociedade. As discussões e confrontos (mesmo certas manifestações políticas de rua), que emergem no enquadramento do debate levantado pelo recente sínodo, mostraram que mesmo no seio da hierarquia e entre os «fiéis» católicos, existem diferenças por vezes radicais na maneira de pensar, de governar, de viver o seu corpo e o seu gênero. Corpos-gêneros que concernem também os consagrados, mulheres e homens, padres e religiosos, cuja escolha de uma vida virginal, celibatária não foi tematizada pelo sínodo (ou talvez não se quis fazê-lo). Dado que, na vida concreta, eles estão em interação com leigos homens e mulheres, cuja percepção do corpo e do gênero se constrói diferentemente, isto provoca problemas na elaboração das relações e da educação na Igreja e na sociedade. Nas relações entre institutos religiosos e sociedade, entre mulheres-homens consagrados e mulheres-homens leigos, o modo como cada um se exprime como pessoa abrange dimensões não-verbais e nas quais a corporeidade é em todo o caso central, como riqueza ou fraqueza na vida, na comunicação e no estar acompanhado, na ajuda dada e/ou a necessidade de ser ajudado. 

4. Em toda a sociedade, os estilos de vida (maneiras de estar, de pensar, de crer, de agir, de ser em relação) tornam-se uma realidade central, constituem um medium fundamental de comunicação verbal e não-verbal dos valores pessoais através das práticas da vida. A importância dos estilos de vida provém da personalização daquilo em que se crê e do que se pensa na vida cotidiana. É preciso ter em conta o fato de que, na realidade atual, aqueles que que se dizem católicos adotam efetivamente entre eles estilos de vida extremamente diversificados, e mesmo opostos (de fato, um bom número dos que se dizem católicos não observam nem a moral social nem a moral ensinada pela Igreja em matéria afetiva e sexual; têm opções políticas diferentes, etc.). O que torna necessários, sobretudo no domínio religioso, um olhar realista e um discernimento dialógico sério sobre a vida cotidiana, a fim de se responsabilizar mutuamente e não somente de repreender «os outros», tendo bem em conta o fato de que o declínio crescente da religiosidade da Igreja se faz acompanhar de uma busca de sentido frequentemente confusa mas bem presente, em todo o caso entre os jovens. Certos teólogos definiram de modo simplista estes jovens como : «as primeiras gerações de descrentes», «pequenos ateus» em crescimento, o que levou involuntariamente um grande número deles, mesmo entre os padres e os religiosos, a dizer que nada mais há a fazer. Esta perspectiva não ilumina suficientemente o problema da existência de uma nova espiritualidade (não necessariamente anti-religiosa) que vale a pena viver e exprimir; uma espiritualidade a estudar, a compreender e com a qual é preciso dialogar. Um grande número de pessoas já deixaram a Igreja porque ela as ignorava neste percurso. 

5. Quando me recordo das reflexões que fazíamos nos anos 1990, acho atual o convite paradoxal dirigido aos institutos religiosos femininos  e masculinos, não somente de «sair», como o Papa Francisco os incita a fazer, mas também e mesmo em primeiro a abrir, de um modo apropriado mas concreto, não somente os «museus», mas também as portas dos espaços da sua vida cotidiana, para que um maior número conheça os estilos de vida, humana e cristã e não somente identitária, das comunidades consagradas (o back office, e não somente o front office; o interior da casa e não somente a fachada), que elas apreciem a humanidade, a proximidade. Proximidade também nessa transparência de que devem ser testemunhas. Proximidade igualmente entre institutos religiosos, entre mosteiros, entre comunidades que deveriam partilhar antes de tudo as suas experiências e o seu testemunho de vida, tanto contemplativa como ativa. Talvez haja aí formas de cooperação desejáveis, se não necessárias. Estas eram impensáveis no passado, devido a um cuidado de salvaguardar a identidade de cada instituto, que primava pelo testemunho da escolha da vida religiosa e monástica, se não e só da vida cristã (como não pode ser de outra forma em certas sociedades).

Esta necessidade é ainda reenforçada (pelo menos no Ocidente) pela diminuição ou a extinção das vocações, pelo envelhecimento e a redução numérica de muitas comunidades, que conduzem à retroação  previsível da parábola do tempo para algumas comunidades ou famílias religiosas, e em todo o caso a uma vida reduzida no seu seio. 

6. A propósito da Igreja em geral, pode-se retomar por um instante o tema aflorado do «serviço». Mais uma vez as palavras e os atos do Papa – que não raro são fortemente criticados – parecem hoje orientar-nos para um serviço verídico e efetivo mais do que um reforço da autoridade : vir concretamente em ajuda aos que são fracos, pobres, marginais, aos que conhecem o sofrimento e também àqueles que saíram de um quadro de vida «regular». «A autoridade», no sentido institucional, religioso, moral, é habitualmente compreendido como uma forma legítima do poder de ordenar, de obrigar os outros a fazer o que pessoalmente a autoridade estima como justo e bom de realizar, ações comuns e estruturas que funcionem exclusivamente de cima para baixo, por meio de ordens, regras, deveres. Na realidade, uma tal forma de poder não é a única; ela tem tendência a ser rígida e a não ser submissa com pouco ou nenhum controle. De um ponto de vista sociológico, parece que se recorre naturalmente ao expediente retórico que consiste em associar a priori a um tal modelo vertical o termo de «serviço», e que pode não ser percebido como tal pelos outros. De fato, nos nossos dias, a partir de todas as observações feitas até agora, uma tal legitimação é posta em causa, evidente na esfera civil, menos gritante mas também muito presente no mundo religioso, como as investigações o demonstraram. Ora, quando a autoridade não é nem reconhecida como legítima (e não usufrui mais do consentimento-confiança) nem apreciada, o que ela faz é interpretado e eventualmente acolhido com um outro olhar. O fato de ela «servir», de realizar atos e pronunciar palavras que «servem» a vida das pessoas e das comunidades, será de fato interpretado pelas pessoas interessadas. A autoridade deve ser reconhecida com uma nova frescura, numa relação que não é mais de alto para baixo, de comando-obediência, como no passado, mas numa relação de respeito e de não-humilhação, de escuta recíproca e de diálogo sobre as necessidades e as expectativas, as possibilidades e os limites. Entre o autoritarismo e a autoridade, é atual, por exemplo, a competência que será valorizada (os leigos conhecem bem domínios tanto ou mais «competentes» que os religiosos), a empatia, a convicção de que a capacidade de trabalhar e de caminhar em conjunto é uma riqueza. O serviço deveria ser melhor reconhecível como tal, dar razão da sua própria validade, sem o vestuário da não autenticidade. 

7. Tudo o que dissemos até aqui subentende uma linha vermelha, uma maneira de pensar as coisas e as pessoas que é bom qualificar de «pensamento complexo». Ao longo do século XX as ciências cultivaram um sentido metódico, sistemático da complexidade do conhecimento e da vida, e chegou-se à maturidade neste domínio essencialmente no momento em que se procurou analisar com novos instrumentos precisamente as sociedades, as pessoas, o nosso mundo e o universo como sistema. O próprio Papa Francisco – mesmo que numa linguagem teológica e pastoral – exprimiu-o implicitamente à sua maneira na sua primeira exortação apostólica, onde nos dá contínuos exemplos nos seus discursos pronunciados nos Estados Unidos, na África, na sua Laudato sì, nas suas exortações pós-sinodais, nas conferências de imprensa dialogadas que dá durante as suas viagens, e cada vez mais. Falar de complexidade significa não ser redutor, simplista, e não fazer resumos, do gênero do que apenas se retem aquilo que nos convem. Isto significa saber refletir sobre as implicações de toda a ação levada a cabo. Isto quer dizer : querer mostrar como a ordem e a desordem, o bem e o mal, o justo e o injusto são imbricados entre si; que é preciso saber olhar as coisas com realismo, e designar aquilo sobre o qual é preciso exercer um discernimento para poder de seguida projetar e fazer juntos algo de melhor; que saibamos reconhecer também os limites e os conflitos a fim de construir pontes. Compreender que o todo é mais do que as partes que o constituem, mas que – quando, por exemplo, se trata de pessoas, de famílias, de sociedades – paradoxalmente o todo é ainda menos do que a soma das suas partes, porque cada pessoa e cada família vale por si mesma, para lá dos valores do grupo em que inserem. Um todo (por exemplo, uma família, uma comunidade religiosa, uma Igreja) tem o seu próprio DNA, o seu próprio «código-fonte», que está também presente em cada uma das partes do todo (tal é a concepção cristã da pessoa). A complexidade atual das experiências religiosas é o fruto – como tentamos dizer – de mutações ligadas e de um enorme alcance : a centralidade absoluta : a) do sujeito, da autonomia das escolhas que formam as pessoas; b) das inovações tecnológicas para uso dos indivíduos como massas que têm também direta e indiretamente levado; c) à inédita mobilidade de milhares e milhares de pessoas, e logo; d) à existência simultânea de uma grande pluralidade de experiências e de instituições religiosas, e sempre mais submetidas à aceitação ou à recusa da parte dos indivíduos.

Se se preferir manter uma visão redutora, ter-se-à a impressão de estar em segurança, mas inevitavelmente se se fechará; não se escutará, mas também não se será escutado.’

  

[1] Intervenção no Capítulo Geral da Congregação Subiaco-Monte Cassino de setembro 2016. Italo de Sandre é professor de sociologia na universidade de Pádua. Ensina «sociologia e religião» na faculdade de teologia da Trivenécia e no Instituto de liturgia pastoral de Pádua. Faz parte do comitê científico do ORSeT, Observatório sócio-religioso da Trivenécia. Nos últimos anos, as suas investigações têm sido sobretudo orientadas pelos problemas fundamentais da ação social, em particular as implicações analíticas dos processos de solidariedade e de comunicação, e as transformações dos códigos simbólicos no enquadramento de um pluralismo cultural, moral e religioso crescente.

[2] OSReT: Osservatorio Socio-Reliogioso Triveneto. Centro de investigação fundado em 1989 sob forma de associação entre as dioceses das Três Venécias, e órgão da Conferência episcopal. Cf.: https://www.osret.it/it/pagina.php/100. [Nota do editor] 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/120