Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Ana Lydia Sawaya
‘É preciso cuidar do
tempo! Toda coisa é bela no seu tempo devido, diz o Eclesiastes (Coélet). A
vida é hevel, um sopro, afirma o texto hebraico deste livro
sapiencial, uma tradução melhor que vaidade das vaidades (Prologo,2)
do latim vanitas. Hevel – sopro, exprime algo que é
evanescente, que não se pode agarrar, nem muito menos governar. Hevel é
uma palavra muito usada na Bíblia. São um sopro (hevel) os filhos de
Adão, diz o salmo 62,10. O homem é como um sopro, os seus dias são
como sombra que passa, recorda-nos o salmo 144,4. Eu me desfaço,
não viverei ainda muito. Deixa-me, porque os meus dias são um sopro, lamenta
Jó (7,16).
Coélet usa o
termo hevel não no sentido moral ou metafísico, mas com uma
acepção muito concreta, como a descrever a percepção, o sentido físico, do
tempo que passa muito rápido debaixo do sol. Significa o tempo concreto da vida
: tudo passa como um sopro. Por isso, preste atenção!
Realista
Coélet não exprime
uma visão pessimista da vida. Os exegetas modernos referem que se trata da
constatação que na vida terrena, sob o sol, nada é completo, pleno e nem nos
sacia totalmente. Por isso, não se pode colocar no lugar de Deus, não se vê
tudo e não se compreende a totalidade da realidade. A condição do ser humano
aqui na terra é contingente. Coélet é um homem realista, com o pé no chão, que
não tem a pretensão de superar os confins da sua humanidade, mas busca refletir
sobre a sua existência terrena (capítulos 1 e 2).
O capítulo 3 nos
oferece uma esplêndida explicação sobre o tempo. Inicia com 7 palavras em
hebraico que querem significar a totalidade e por isso são o resumo do que
Coélet quer dizer. Descobrimos que o tempo ali é outro… Nós
conhecemos bem o tempo newtoniano (Δt), pois aprendemos a raciocinar de acordo
com o implacável e preciso horário do relógio. O relógio é um modo de dar ‘espaço’
ao tempo. O tempo se torna uma ‘coisa’, e assim parece tangível.
Modernidade
A. Heschel em seu
livro O Schabat diz que a modernidade privilegiou o espaço em
detrimento do tempo, mas ganhando ‘espaço’, o ser humano diminuiu a si mesmo
(Editora Perspectiva, 2018, pg. 9) :
A civilização técnica
é a conquista do espaço pelo homem. É um triunfo frequentemente alcançado pelo
sacrifício de um ingrediente essencial da existência, isto é, o tempo. Na
civilização técnica nós gastamos tempo para ganhar espaço. Intensificar nosso
poder no mundo do espaço é o nosso maior objetivo. No entanto, ter mais não
significa ser mais. O poder que alcançamos no mundo do espaço termina
abruptamente na fronteira do tempo. Mas o tempo é o coração da existência.
Aprofundando essa
constatação, afirma logo em seguida (pgs.11-12) :
Todos nós ficamos
enfeitiçados pelo esplendor do espaço, pela grandeza das coisas do espaço. […]
Realidade, para nós, é coisidade, e consiste de substâncias que ocupam espaço;
mesmo Deus é concebido pela maioria de nós como uma coisa. O resultado de nossa
coisificação é nossa cegueira à toda realidade que deixa de se identificar como
uma coisa, como um fato real. Isto é óbvio em nosso entendimento do tempo, o
qual sendo desprovido de coisa e de substância, nos parece como se não tivesse
realidade.
Diferença
Diz que não se trata
de desprezar a importância do espaço, do visível, do material, do tocável, mas
de denunciar a hipervalorização do espaço em detrimento do tempo (cf. pg. 13).
O espaço é mensurável, está sob nosso controle visual, pode ser abrangido pelo
nosso olhar. O tempo não. A única maneira de medi-lo é reduzi-lo ao espaço e ao
movimento que nele ocorre. Essa diferença se vê ao compararmos o espaço sagrado
(necessário e de grande ajuda) com a experiência do sagrado
que uma pessoa faz, que é uma experiência interior que se dá num tempo, em um
momento, mas que não ocupa um ‘espaço’.
Diferentemente do
conceito de eterno retorno de Nietzsche que vê o tempo como um fluxo caótico
sem objetivo, na Bíblia a temporalidade é valorizada em sua forma linear,
dentro de uma dimensão histórica (cf. Giuseppe Savagnone, Il tempo è
superiore allo spazio: indicazioni per la pastorale familiare,
Tredimensioni 15, 2018, pgs. 48-57). Uma história que caminha para um
cumprimento. Por isso, para o mundo bíblico o tempo não representa a
inconsistência do ser e seu dissolver-se em um fluxo perene, mas está
impregnado com um anseio de completude.
Plenitude
Papa Francisco dirá,
por isso, que o tempo é superior ao espaço (Evangelii Gaudium, 222-225)
e afirma que ‘dar prioridade ao tempo significa ocupar-se de iniciar processos
mais do que possuir espaços’ (EG 223). Relembra-nos as palavras do
Beato Pedro Fabro : ‘O tempo é o mensageiro de Deus’ (EG 171). Por
isso, a plenitude da vida de uma pessoa e do mundo todo só pode ser alcançada através
de uma gradualidade e de um respeito aos processos que constroem os povos, e
precisam ser vividos pouco a pouco e dentro da dimensão da paciência. ‘O espaço
cristaliza os processos, o tempo, ao contrário, nos projeta para o futuro e nos
impulsiona a caminhar com esperança’ (Lumen Fidei 57).
De um modo muito
belo, A. Heschel explica que o mundo bíblico é um mundo que privilegia o tempo
e visa a sua santificação antes de tudo (pgs. 14-15) :
Para Israel, os
acontecimentos singulares do tempo histórico foram espiritualmente mais
significativos do que os processos repetitivos no ciclo da natureza (para as
festividades anuais), muito embora o sustento físico dependesse dessa última.
Enquanto as divindades de outros povos estavam associadas aos lugares ou coisas,
o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos : o Redentor da escravidão, o
Revelador da Torá, manifestando-se a Si Mesmo em acontecimentos da história,
mais do que em coisas ou lugares. Assim, a fé no incorpóreo, no inimaginável,
nasceu.
Prioridade
Mas voltemos ao
capítulo 3 de Coélet : que tempo é esse? Começa-se a perceber
a dimensão que perdemos ao desconsiderar a prioridade do tempo, pelo fato que
seja no texto hebraico como no grego, há duas palavras para tempo que o
qualificam de forma diferente. Há no grego o tempo cronológico (kronos)
e o tempo oportuno (kairòs) e que no hebraico são expressos pela
palavra zeman e et respectivamente. Se
voltarmos outra vez ao texto na língua original, diz Coélet :
Há
um momento (zeman) para tudo e um tempo (oportuno – et) para todo propósito
debaixo do sol. Tempo (et) de nascer, e tempo (et) de morrer; tempo (et) de
plantar, e tempo (et) de arrancar a planta. Tempo (et) de matar e tempo (et) de
curar; tempo (et) de destruir, e tempo (et) de construir […] (cf. Ecl. 3,2-8)
Eternidade
Para cada tempo que
se pode medir (zeman) há um tempo (et) adequado, oportuno. São 14
antíteses que englobam todas as circunstâncias às quais somos chamados a aderir
e a viver plenamente. Coélet mostra que cada realidade foi feita por Deus com o
seu contraste e complementariedade, tudo é dual e tem o seu oposto; esta é a
harmonia. No versículo 11 diz : tudo o que ele fez é apropriado ao seu
tempo (et). Também colocou no coração do homem o conjunto do tempo (em
hebraico olam que significa eternidade, universo), sem
que o homem possa atinar com a obra que Deus realiza desde o princípio até o
fim.
Não obstante Deus ter
feito cada coisa bela e no momento oportuno (pois o instante para Deus é et e
não apenas zeman), e embora o coração do ser humano possua essa
sombra de eternidade, não conseguimos ter a visão do todo.
Vivamos, porém,
o et com alegria, diz Coélet (v. 12) : …não há felicidade
para o homem a não ser a de alegrar-se e fazer o bem durante a vida.
O Talmud dirá que nos será cobrado por Deus todas as vezes que
tivemos oportunidade de gozar de uma boa comida e uma boa bebida e não soubemos
gozar delas bem.
Lembremo-nos,
portanto, que cada instante de tempo possui a eternidade e que nós habitamos
neste instante eterno porque fomos criados por Deus à sua imagem.
Não
sejas o de hoje.
Não
suspires por ontens…
Não
queiras ser de amanhã.
Faze-te
sem limites no tempo.
Vê
a tua vida em todas as origens.
Em
todas as existências.
Em
todas as mortes.
E
sabe que serás assim para sempre.
Não
queiras marcar a tua passagem.
Ela
prossegue :
É a
passagem que se continua.
É a
tua eternidade…
É a
eternidade.
És
tu.
(Cecília
Meireles, Cânticos, II)’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2023/04/16/e-preciso-cuidar-do-tempo/
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