Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘A sabedoria
judaico-cristã sempre nos exortou a confiar na justiça de Deus, mas se manteve
reticente quanto à justiça humana. Além das limitações inerentes à condição
humana, alguns povos têm sistemas jurídicos e legislações mais eficientes, que
conferem mais segurança aos cidadãos, enquanto outros têm sistemas menos
eficientes, que levam à insegurança social. Infelizmente, o Brasil, na
percepção da maioria de seus cidadãos, se aproxima muito mais do segundo caso
que do primeiro.
Em 2019, segundo o
Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (SINESP), a taxa média de
resolução de roubos (casos em que houve identificação e punição dos culpados)
foi cerca de 8%; para os casos de assassinato, 22%. Ainda para 2019, o tempo
médio de uma cobrança judicial, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), era de 8 anos. É
forçoso reconhecer que números como esses não transmitem segurança à população.
A situação tende a
ficar mais escandalosa quando se trata da aplicação da justiça contra as
ilegalidades cometidas pelos poderosos. Os que anteontem se pronunciavam contra
a corrupção, ontem foram condenados por corrupção e hoje estão sendo
inocentados. Empresários ricos e políticos cumprem pena em prisão domiciliar,
cercados de mordomias, enquanto jovens pobres se espremem em cadeias que são
mais escolas de criminalidade do que espaços de ressocialização. A truculência
se volta seletivamente contra quem está numa situação fragilizada, enquanto
quem está no poder se vale de supostos direitos para não ser condenado.
Enquanto o governo procura reduzir isenções fiscais e sonegação, partidos
políticos negociam no Congresso uma anistia milionária das próprias multas.
Não faltam motivos
para indignação – mas ela, por si só, não é uma postura plenamente cristã. Sem
compromisso, engajamento e esperança, a indignação nos deixa deprimidos,
ansiosos e/ou raivosos – posturas essas que não condizem com um modo de ser
cristãos. Ah! E não podemos esquecer da inteligência e do discernimento. O
Evangelho nos recomenda sermos cautelosos, astutos, como as serpentes e
simples, mansos, como as pombas (Mt 10, 16), mas frequentemente nos tornamos – por
conta da indignação raivosa – agressivos como serpentes e ingênuos como pombas.
Paciência e esperança
O Papa Francisco,
na Evangelii Gaudium (EG) lembra que o tempo no
qual se desenvolvem os processos é superior ao espaço limitado pelos
condicionamentos da conjuntura (cf. EG 222-225). Mesmo que as coisas não
aconteçam como gostaríamos hoje, elas irão mudar em função dos processos
virtuosos que começamos ou mantivemos hoje. Na Fratelli tutti (FT), por sua vez, lembrará que
nem sempre é possível obter grandes resultados, mas o amor e a fecundidade que
acompanham as sementes de bem plantadas hoje já são por si só uma primeira
recompensa que recebemos pelo nosso esforço (FT 193-197).
Lutar por um mundo
melhor e mais justo exige paciência, pois os frutos desejados nem sempre são
colhidos. Mas ver a árvore do bem crescer já traz satisfação e nos aproxima
mais do coração de Deus. A esperança cristã não é um pensamento positivo
ilusório, mas a confiança que brota da contemplação dessas pequenas plantas de
bem que vão nascendo e crescendo entre nós. Ainda nas palavras de Francisco, ‘Que
as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria
da esperança. Deus, que nos chama a uma generosa entrega e a oferecer-Lhe tudo,
também nos dá as forças e a luz de que necessitamos para prosseguir’ (Laudato si’, LS 244-245).
Olhar para as sementes da
esperança
Há alguns anos, os
brasileiros depositaram grande esperança na judicialização da política – e a
Lava Jato foi o símbolo mais clamoroso dessa esperança. Uma avaliação de seus
resultados, pelo menos na atualidade, depende da posição do avaliador no
espectro político. Contudo, por mais negativa que seja a avaliação, não é
possível negar que trouxe à luz casos concretos de corrupção estatal; assim
como, por mais positiva que seja tal avaliação, não é possível negar a
partidarização que sofreu e os retrocessos que aconteceram em suas decisões e
em sua forma de atuar.
O cristianismo não
crê numa justiça sustentada pelo punitivismo e pelo legalismo. A investigação
criteriosa e a aplicação de penas cabíveis são instrumentos indispensáveis à
justiça. Mas não bastam. Numa visão integral, precisam ser acompanhados de
ações restaurativas, que procuram eliminar ou minimizar as consequências do mal
cometido, bem como por processos que levem à construção de uma nova ordem
social, mais justa e fraterna.
Nesse sentido, cada
um de nós é chamado a lutar e a depositar suas esperanças no fortalecimento das
organizações sociais e de sua capacidade de acompanhar e monitorar as ações do
governo; na formação de novos quadros partidários, com políticos cada vez mais
comprometidos com o bem comum e menos envolvidos em negociatas e acordos
questionáveis; nos processos de aperfeiçoamentos das estruturas do Estado, que
caminham muito mais lentamente do que gostaríamos, mas não deixam de mudar ao
longo do tempo.
Não à impunidade e à
conivência
Não deve haver
complacência com a impunidade. O perdão, ainda que necessário para a boa
aplicação da justiça, pressupõe o arrependimento e o esforço para reparar os
males cometidos. Sem esse arrependimento e esse esforço pelo bem, o perdão
corre o risco de tornar-se ocasião de impunidade e injustiça (cf. FT 250-254).
Não podemos deixar de
nos indignarmos com o mal, sob o risco de nos tornarmos acomodados e
coniventes. ‘Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a
perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça!’, diz o Papa Francisco (EG 179).
Contudo, são os olhos
habituados pelo discernimento cristão, que veem os sinais de Seu amor mesmo em
meio às mazelas do mundo, que podem nos permitir ver a injustiça e lutar pelo
bem comum sem perder a alegria e a esperança.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2023/05/21/lutar-pela-justica-com-realismo-e-esperanca/
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