Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘A música tem a
capacidade de transformar-nos, de mover-nos, co-mover-nos, carregar-nos junto
consigo, e nos fazer mudar de posição, de pensamento e de sentimento. Um
pesquisador que estudou esse fenômeno descreveu-o assim :
Uma
canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um
momento marcante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa ‘aquela’ música no
rádio, emoções como saudade, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem
alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns
casos, repensar sua existência. Mas muitas vezes essa experiência (não julgada)
acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez,
uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para as futuras
lembranças e sensações. (G. Junior, Cardinales bonitas, Revista FAPESP
120)
Por
que é assim? O nosso coração é feito de cordas e quando estas se
sintonizam com uma harmonia certa, todo o nosso ser se comove. O
coração humano foi feito para algo, alguém que está fora dele, além dele, e
nosso coração estará sempre procurando-o. Dizia Santo Agostinho : ‘o
nosso coração foi feito para ti Senhor e está inquieto enquanto não repousa em
ti’ (Confissões I, 1,1).Todos os seres humanos são assim, quer tenham
uma fé ou não. Há uma canção muito famosa Allelluyah de
Leonard Cohen que conta a história do rei Davi e diz que até Deus se comoveu
com os acordes que Davi compunha quando tocava sua lira, tornando-se para
sempre seu amigo :
There
was a secret chord / That David played / And it pleased the Lord. / It goes
like this / The fourth, the fifth / The minor fall / The major lift / The
baffled King / Composing hallelluyah
Havia um acorde secreto /Que David tocou / E que
agradou ao Senhor. / É assim / A quarta, a quinta / A nota menor cai / A nota
maior sobe / O rei perplexo e maravilhado / Compondo hallelluyah
É
preciso saber reconhecer com inteligência e atenção, com cuidado de si, esses
momentos maravilhosos. Neles reside não só uma profunda experiência de
felicidade, mas a descoberta da direção certa na vida, condizente com o nosso ‘eu’.
O
mundo de hoje nos confunde e nos subtrai esses momentos de verdade, nos
entregando espaços e tempos ilusórios, que podem nos excitar, mas não nos
maravilhar. É preciso saber reconhecer a diferença imensa que existe entre o
ser excitado por algo e o ficar maravilhado. A primeira é uma experiência
alienante, enquanto a segunda é conforme o nosso coração. Essa experiência é
como uma oração : nos coloca em contato com o infinito, com o fora do tempo,
com a verdade do tempo. E com o desejo verdadeiro que mora no nosso coração.
Há
uma história impressionante que aconteceu com uma das maiores pianistas russas
do século XX, Marija Judina. Sua história é muito tocante, viveu
sua vida vendo seus amigos artistas e escritores sendo presos e mortos pelo
regime. Mas ninguém teve a coragem de tocar nela até o fim da sua vida…
Conta-se
que uma das suas execuções mais famosas era o Concerto n. 23K 488 de Mozart do
qual ela tocava o segundo movimento interpretando-o como uma oração, um réquiem para
as vítimas dos campos de concentração de Stalin. Um dia Stalin escuta no radio
uma apresentação dela tocando esse concerto, e fica tão impressionando que pede
que se compre imediatamente o disco. Mas o disco não existia porque o concerto
tinha sido transmitido ao vivo (porque ela era proibida pelo regime de gravar).
Assim, sem ter coragem de explicar que a pianista não condizia com a ortodoxia
política do ditador e não era agraciada com muita publicidade e sucesso, os
comissários da rádio convocam com urgência Marija e a orquestra, o concerto é
gravado durante uma noite às pressas e o disco, confeccionado com poucos
exemplares e é entregue ao ilustre admirador. Stalin é generoso e manda uma
grande soma de dinheiro para a pianista. Ela lhe envia uma carta de resposta
dizendo : ‘Agradeço-lhe muito pela sua ajuda, Iosif Vissarionovič. Rezarei dia
e noite pelo senhor e pedirei a Deus que perdoe os seus graves pecados contra o
povo e a nação. Deus é misericordioso, o perdoará. O dinheiro o entregarei para
a restauração da minha paróquia’. Conta-se que o disco com o concerto dela
estava no gramofone de Stalin, quando o encontraram morto (cf. G.
Parravicini, Marija Judina, più della musica, ed. La casa di
Matriona, 2010, Milano, Italia, p. 81). Era exatamente a música que ela tocava
para as milhões de pessoas mortas pelas atrocidades dele…
O
que é um coração misericordioso?
Que
força divina tem uma oração de intercessão pelas pessoas que realizaram grandes
atrocidades na história?
Marija
Judina foi marginalizada pela cultura oficial na União Soviética, mesmo sendo
reconhecidamente um prodígio em termos de perfeição musical e técnica. O regime
a considerava um perigo e temia a sua fé, declarada e pública. Marija possuía
um temperamento indomável e uma total independência no seu modo de ver tudo.
Estas
características não eram simplesmente oriundas do seu caráter, mas nasciam de
um núcleo interior que ela mesmo reconhecia como ineliminável, irredutível e
sempre presente em cada ser humano. Gostava de repetir, ao falar de si mesma, ‘Vivo
em um anelo de simpatia mundial’, e ainda, ‘Tenho uma consciência muito clara
dos meus pecados e das minhas fraquezas, mas eu me atrevo a pensar’.
Dizia
que a grandeza do ser humano não está nos seus dotes, mas no ‘impulso para
ousar’ que nasce com cada pessoa, no seu coração que é sede de infinito, e
morre, somente, depois dela. Repetia, citando Dostoevskij, que ‘seria
necessário cortar a língua de Cícero, cavar os olhos de Copérnico, lapidar
Shakespeare…’ Dava-se conta que ela tinha recebido um grande dom e por isso
estava sempre disposta a compartilhá-lo generosamente com todos. Muitas vezes
foi à fronte para tocar para os soldados durante a guerra…
Quando
seus dedos tocavam o teclado do piano, afirmavam seus ouvintes, era-se
transportado para um outro mundo, transfigurado, que purificava a realidade das
misérias e miudezas, infundindo nelas sentido e esperança, dando-lhes beleza. O
fascínio que Marija causava nos seus ouvintes vinha do fato, diziam, que os
seus não eram apenas concertos, mas um testemunho, uma ‘apresentação sacra’,
uma ‘catarse purificadora’.
Marija
Judina buscou a vida inteira a beleza, jogando-se na realidade com
inteireza e apaixonadamente; com interesse e simpatia por tudo e por todos que
encontrava. A beleza, como padre Vsevolod Špiller disse em seu
funeral, não era para ela uma categoria estética, mas a energia da gloria de
Deus que transfigura o mundo… abrindo caminho para o outro mundo, para uma
realidade maior, onde habita a graça de Deus.
Essa
sua urgência se traduziu também na busca pela nova música contemporânea e pelos
compositores da sua época, como ela mesma explicou uma vez : a novidade
nasce cada dia, quando se espera pelo milagre inaudito que vem de Deus, do mundo,
de outra pessoa, para nos surpreender.
Marija
nasce em 9 setembro de 1899 em Nevel’ próximo à Bielorrússia. Era judia e seu
pai um médico reconhecido. A família vivia em um território onde, desde
Catarina a Grande, era permitido que os judeus vivessem em paz, até serem
expulsos e ter suas casas queimadas (inclusive a dela) pelos nazistas em
1941.
Descobre
cedo sua arte e sua vocação e a necessidade de se entregar sem reservas. É
enviada pela família, ainda muito jovem, ao conservatório, e tem uma trajetória
brilhante e excepcional. Frequenta grupos onde se discute filosofia, arte,
religião, e tem muitos amigos entre intelectuais, artistas e religiosos como
Pavel Florenskij, Aleksandr Men, Dmitrij Šostakovič, Boris Pasternak. Muitos
dos quais vê serem presos e mortos, uma constância ao longo de toda a sua vida…
Descobre
o cristianismo, se converte e torna-se ortodoxa. Escreverá no seu diário : Cada
pessoa deve justificar o seu próprio caminho pessoal. A minha fé na
excepcionalidade e sublimidade da arte o justifica. No fundo, nós todos –
homens – chegaremos no mesmo ponto, à vida do espírito, a um outro plano do
ser, mas chegaremos por estradas diversas, uns através da arte, outros através
do altruísmo, outros ainda, talvez, através do amor. Cada um a seu modo : as
estradas são tantas quantos são os homens. É nesta multiforme variedade, que
conduz à unidade absoluta, onde reside toda a beleza e a profundidade da vida
humana. E nisto está também a dor (12/11/1916).
Recebe
grandes prêmios como pianista, mas vai progressivamente sendo marginalizada
pelas suas posições abertamente contra o regime soviético. É impedida de tocar
em grandes salas de concerto, assim como de gravar recitais. Tudo o que ganhava
distribuía a quem tinha mais necessidade do que ela. Termina sua vida quase sem
nada. Quem era afinal Marija Judina? Um mistério para todos os que a conheceram
e também para nós. Alguém que tinha o extraordinário fascínio de estar na
terra, mas já ser cidadã do céu. Parravicini diz em seu livro que o seu era um coração
misericordioso semelhante àquele descrito pelos Padres da Igreja : um
coração que queima por toda a criação, e se derrete, e não pode suportar
escutar ou ver o mínimo sofrimento em qualquer criatura, e em cada instante
oferece orações e chora por elas, por causa da grande misericórdia que a
comove, à semelhança de Deus (Isaac o Sírio). Como será que Deus escutou
suas orações pela sua grande Rússia e por seu terrível ditador Stalin, um dos
mais cruéis da história?… O segredo de um coração misericordioso pertence a
Deus.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2023/06/25/as-cordas-do-coracao-uma-historia-musical/
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