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sábado, 14 de dezembro de 2024

A Ética do Cuidado

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves

 

O cuidado com a vida surge da consciência de sua fragilidade, constituindo-se em um imperativo ético essencial para a preservação e promoção da existência humana. Sem o cuidado, a vida não se desdobra plenamente em seu potencial, tampouco alcança sua missão. O cuidado, portanto, não pode ser visto apenas como uma prática isolada, mas como parte de uma ética integral que se preocupa com a preservação da dignidade e da humanidade em sua totalidade.

Nesta realidade encontra-se a necessidade de se debater racionalmente sobre as formas mais eficazes de proteger e amparar a vida. A ética, como campo da filosofia, oferece as bases para essa discussão, que se desenvolve por meio de princípios racionais, mas que também perpassa a dimensão afetiva e espiritual. Assim, o cuidado pode ser compreendido não apenas como um ato, mas como uma virtude que deve orientar as ações humanas em direção ao bem comum.

A ética cristã, especialmente, desempenha um papel crucial na formação dos sistemas de vida no Ocidente, alicerçando-se em fontes como a Bíblia, a Tradição, e o magistério da Igreja. Ela é parte de uma construção histórica e comunitária, que tem como centro a pessoa de Jesus Cristo e seu evangelho. Este evangelho, ao mesmo tempo que oferece uma visão escatológica da vida, também oferece diretrizes práticas de conduta que se desdobram em formas concretas de comportamento moral e espiritual.

Nesse sentido, a ética cristã coloca a vida no centro de sua preocupação, inspirada no mandamento do amor, que exige que se cuide do próximo como de si mesmo (Mt 22,39). O amor ao próximo, expressão máxima do cuidado, não é apenas um sentimento, mas uma ação concreta que visa a salvaguarda da vida em todas as suas expressões. A partir dessa inspiração, a ética cristã propõe uma conduta de solidariedade, de justiça e de cuidado integral, em que a vida é defendida em todas as suas fases, desde a concepção até a morte natural.

A construção de uma conduta autêntica, que leve à humanização do ser, requer um compromisso ético com o cuidado, mas também com a transformação das estruturas sociais que geram injustiça, desigualdade e exclusão. A ética cristã não é uma ética de mera conformidade com regras morais abstratas, mas um compromisso dinâmico com a promoção da dignidade humana, refletida na ação em prol dos mais vulneráveis e marginalizados.

Diante dos desafios, somos chamados a participar do processo de reinvenção do cotidiano. Para tanto, é necessário ter cuidado com a vida, respeitar o próximo e, principalmente, as gerações.

Para tanto, só será possível uma real mudança se mudarmos a nossa conduta ética e moral, pois uma conduta moral duvidosa, sem apreço à vida, nos leva a deixar de vivenciar os melhores momentos e, acima de tudo, desrespeitar aqueles que sofrem com algum problema e não darmos a devida importância ao sofrimento das pessoas.  Por isso, ter esperança, ou esperançar, é ter iniciativa, é ir ao encontro, é buscar ouvir os que mais precisam.

É preciso, urgentemente, se fazer ouvir e articular o maior crescimento da consciência humana sobre o que é ser humano. A forma como se trata o tema ainda é um tabu. Durante séculos de nossa história, por razões religiosas, morais e culturais, falar do tema do suicídio era algo proibido e, principalmente, um pecado, por esta razão, ainda temos medo e/ou certa vergonha de comentar sobre o assunto.

De fato, ao falar desta realidade, estamos inseridos na sociedade que vive o problema de forma global e não se deixa abrir ao debate consciente. O tabu sobre a questão do suicídio perdeu a força diante dos inúmeros casos de problemas oriundos da pandemia. Hoje, frente à realidade, é urgente refletir sobre o bem-estar do próximo e não apenas o nosso. É a partir desta concepção que devemos observar a realidade sem receios e entender como tratar o outro, principalmente na escuta enquanto membro da sociedade e no período pandêmico que vivemos e estamos, ainda vivendo.

É preciso cultivar o caminho ético, sem preconceitos e comentários maldosos. Que a nossa conduta moral seja pautada por regras que devem ser respeitadas por cada um. Para tanto, é preciso se comprometer com a cultura do encontro e do diálogo para que possamos nos comprometer com a vida de cada um e ser mais solidários com a dor e a realidade do outro.

Assim, dotados dessa responsabilidade é urgente pensar que os projetos de formação da educação para o humanismo solidário têm por foco principal a ação consciente de cada um na construção de uma Educação para o humanismo solidário e que haja uma verdadeira inclusão de todos nesta realidade. O tema do mês de setembro é uma forma de falar com respeito diante da realidade do suicídio.

Nesse contexto, precisamos observar o caminho que seguimos e os exemplos que podemos dar em nossa realidade. Entre eles temos que alimentar o desejo de uma sociedade mais humana e exercitar o amor ao próximo por meio de gestos de solidariedade.

Devemos seguir o exemplo de Jesus : sua ética, seu comportamento, seu caráter, seu modo de ser e de agir. Ele assumiu uma conduta autêntica em uma sociedade contrária a tudo que ele pregava. Ele veio transformar o mundo, a começar pela sociedade de sua época. Assim, tratar o próximo com respeito é fazer valer o amor criador de Deus e sua proposta para o ser humano : ’O que fizer ao menor dos meus irmãos, a mim o fazeis’. (Mt 25,40). Por isso, cuidar do outro, escutá-lo e fazer um processo de encontro é a base das nossas relações.

Por fim, o caminho para uma conduta mais autêntica passa pela integração entre o cuidado e a ética. A consciência da fragilidade da vida leva à necessidade de uma responsabilidade maior com o outro e com o meio em que vivemos. Assim, propõe-se uma ética do cuidado que não apenas responde às urgências imediatas, mas que se alicerça em valores perenes de respeito, empatia e justiça, construindo, assim, uma sociedade mais humana e compassiva.

Essa ética do cuidado, inspirada no cristianismo, se expande para abarcar todas as dimensões da existência humana, desde as relações interpessoais até as preocupações globais com a ecologia e a justiça social. É um chamado à conversão ética, na qual o ser humano é convidado a assumir um papel ativo na construção de um mundo mais justo e solidário, onde o cuidado pela vida, em todas as suas formas, seja o princípio norteador das ações individuais e coletivas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2024-12/etica-cuidado.html

quinta-feira, 14 de março de 2024

Crianças salvas na Polônia graças aos “Berços da vida”

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Tomasz Zielenkiewicz - Varsóvia


Há menos de uma semana, na noite de segunda-feira, 11 de março, as irmãs ursulinas encontraram uma menina abandonada em Łódź. Elas lhe deram o nome de Julia. Estava vestida normalmente e parecia saudável, e os médicos constataram que ela estava bem de saúde. No mesmo dia, um bebê de 11 meses foi encontrado na rua Szosa Bydgoska, na cidade de Toruń. Ele foi levado ao hospital para controles. Outro bebê foi encontrado no domingo em Wroclaw e uma menina de um mês e meio foi levada para a rua Rydygiera 22-28, no prédio da Congregação das Irmãs de Caridade de São Carlos Borromeu. Todos esses pequenos foram salvos graças aos ‘Berços da Vida’, locais especiais onde os bebês - mesmo aqueles com apenas alguns meses de idade - podem ser deixados de forma segura e anônima caso seus pais não possam ou não tenham condições de criá-los ou cuidar deles.

Visitas e cuidados

Os ‘Berços’ se abrem pelo lado de fora e são equipados com aquecimento e ventilação. Quando são abertos, as pessoas destinadas a cuidar da criança dão o alarme. Imediatamente, são iniciados os procedimentos médicos e administrativos para que a criança seja examinada e entregue para adoção. Atualmente, há 60 ‘Berços da vida’ na Polônia, administrados principalmente por congregações religiosas, como as irmãs pastoras do Centro Caritas Beata Maria Karłowska, em Toruń.

Uma prática antiga

A ideia de proteger os órfãos já era usada na Idade Média. O ‘Berço da vida’ mais antigo data de 1198 e está localizado em Roma, ao lado do Hospital de ‘Santo Spirito in Sassia’, fundado pelo Papa Inocêncio III. Na Polônia, o primeiro ‘Berço da vida’ foi estabelecido em 19 de março de 2006 em Cracóvia, construído por iniciativa da Caritas da Arquidiocese de Cracóvia e do cardeal Stanisław Dziwisz. Em 2023, nove crianças foram encontradas nos ‘Berços da vida’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-03/criancas-salvas-polonia-gracas-bercos-vida.html

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Quando o cuidador precisa de cuidados

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Igor Precinoti


A notícia de que um familiar (pai, avô, marido) acabou de sofrer um Derrame cerebral é assustadora. O tempo de internação, o período na UTI, os riscos de infecção ou a pneumonia são somente algumas das angústias sofridas por quem está aflito pela vida do seu ente querido. Mas, quando se recebe a informação de que este ente vai receber alta do hospital, a sensação de alívio vem acompanhada de outras aflições. Será que ele vai andar? O que é esse tubinho no nariz? Como ele vai tomar banho? 

É assim que começa uma nova etapa na vida de muitas pessoas, a vida de cuidador. Aquele indivíduo que fica responsável em cuidar de um ente querido que, por um motivo ou outro, torna-se vulnerável e dependente de cuidados. Independente se a origem da dependência foi Derrame Cerebral, Alzheimer, acidente automobilístico, os pacientes com sequelas, muitas vezes, precisam de ajuda para as atividades simples como, por exemplo, escovar os dentes e cabe a um cuidador oferecer este tipo de cuidado.

Os cuidadores normalmente passam mais de 20 horas por semana ajudando seus entes queridos. Embora esta função possa ser profundamente gratificante, ela pode gerar consequências na saúde e na qualidade de vida do cuidador. Um relatório da Family Caregiver Alliance (uma organização de apoio aos cuidadores na Califórnia-EUA) constatou que de 40% a 70% dos cuidadores apresentam sintomas de depressão. 

Este problema ainda chama atenção pelo fato de que 41% dos cuidadores experimentaram a depressão até 3 anos após a morte de seu cônjuge com doença de Alzheimer ou outra forma de demência. Além disso, vale a pena destacar que a depressão em cuidadores é maior em mulheres em relação a homens.

É importante destacar que cuidar do próximo e ser cuidador não é a causa da depressão, mas sim a maneira com que este cuidado acontece. Muitas pessoas, na tentativa de dar o melhor de si ou por falta de apoio humano (familiares, amigos) ou ainda por falta de recursos financeiros, acabam se sobrecarregando e deixando de lado as suas próprias necessidades físicas e emocionais. Este sacrifício pessoal gera sentimentos inadequados como raiva, tristeza, exaustão, além de um grande sentimento de culpa justamente por ter estes sentimentos.

Os principais problemas que os cuidadores sofrem decorrentes do cuidado com pessoas com alta dependência são :

Privação do sono – muitas vezes, um idoso com Alzheimer troca a noite pelo dia, fica agitado impedindo que o cuidador tenha uma noite de sono adequada 

Menos tempo para socializar – As demandas com o familiar deixam o cuidador sem tempo ou energia para encontros sociais. 

Conflitos – Muitas pessoas que estão precisando de cuidados podem ficar agitadas, nervosas ou não aceitar seu estado de debilidade física e, por isso, acabam agredindo ou tratando mal o cuidador. 

Problemas de trabalho e dinheiro – Não poucos cuidadores precisam conciliar os cuidados domiciliares com as demandas de trabalho e os custos dos cuidados podem ser altos. 

Falta de apoio familiar – É comum os cuidadores se sentirem sós. Muitas vezes, os cuidados são direcionados a um único familiar ou, ainda, a escolha do cuidador entre os membros da família não leva em consideração as necessidades e vontades do familiar (por exemplo : ‘ele não tem filhos, então tem mais tempo para os cuidados’, ‘ela é a única mulher entre os filhos, portanto, tem mais jeito para cuidar’, ‘Ele mora sozinho, então tem mais espaço em casa’)

Falta de atenção à própria saúde – O cuidador, muitas vezes, deixa sua própria saúde em segundo plano. A preocupação constante em levar seu familiar ao médico, ao laboratório para fazer exames e a atenção em não se esquecer dos horários das medicações do ente querido fazem com que ele acabe deixando de lado suas próprias necessidades, se esquecendo de tomar seus próprios remédios, de fazer seus exames de rotina etc. 

Se você é um cuidador, fique atento aos primeiros sintais de depressão, como fadiga crônica, pensamentos negativos, insônia, choro fácil, ideações suicidas e, caso já esteja tendo alguns destes sintomas, procure ajuda de um profissional (médico ou psicólogo). E para evitar este problema vale a pena tomar as seguintes medidas :

– Dividir tarefas com outros membros da família

– Garantir um tempo para um sono adequado (Caso necessário, revesse os cuidados noturnos com outro familiar).

– Não seja orgulhoso nem tenha vergonha e aceite ajuda. Muitas vezes, o cuidador nega ajuda de voluntários ou de membros distantes da família

– Não tenha remorso ao reservar tempos de lazer. Muitos cuidadores não se sentem no direito de ter momentos de alegria quando seu ente querido está doente ou ‘preso na cama’.

Em suma, o cuidador tem uma missão repleta de desafios físicos e emocionais. Embora seja uma demonstração de amor e dedicação aos entes queridos, o papel de cuidador também pode ter um impacto significativo na saúde mental e na qualidade de vida daqueles que assumem essa responsabilidade. Com medidas de apoio, solidariedade familiar e conscientização sobre os desafios enfrentados pelos cuidadores, pode ser criado um ambiente mais saudável e sustentável para aqueles que dedicam suas vidas ao cuidado dos outros.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/10/20/quando-o-cuidador-precisa-de-cuidados/

quinta-feira, 29 de junho de 2023

É preciso cuidar do tempo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Ana Lydia Sawaya


É preciso cuidar do tempo! Toda coisa é bela no seu tempo devido, diz o Eclesiastes (Coélet). A vida é hevel, um sopro, afirma o texto hebraico deste livro sapiencial, uma tradução melhor que vaidade das vaidades (Prologo,2) do latim vanitas. Hevel – sopro, exprime algo que é evanescente, que não se pode agarrar, nem muito menos governar. Hevel é uma palavra muito usada na Bíblia. São um sopro (hevel) os filhos de Adão, diz o salmo 62,10. O homem é como um sopro, os seus dias são como sombra que passa, recorda-nos o salmo 144,4. Eu me desfaço, não viverei ainda muito. Deixa-me, porque os meus dias são um sopro, lamenta Jó (7,16).

Coélet usa o termo hevel não no sentido moral ou metafísico, mas com uma acepção muito concreta, como a descrever a percepção, o sentido físico, do tempo que passa muito rápido debaixo do sol. Significa o tempo concreto da vida : tudo passa como um sopro. Por isso, preste atenção!

Realista

Coélet não exprime uma visão pessimista da vida. Os exegetas modernos referem que se trata da constatação que na vida terrena, sob o sol, nada é completo, pleno e nem nos sacia totalmente. Por isso, não se pode colocar no lugar de Deus, não se vê tudo e não se compreende a totalidade da realidade. A condição do ser humano aqui na terra é contingente. Coélet é um homem realista, com o pé no chão, que não tem a pretensão de superar os confins da sua humanidade, mas busca refletir sobre a sua existência terrena (capítulos 1 e 2).

O capítulo 3 nos oferece uma esplêndida explicação sobre o tempo. Inicia com 7 palavras em hebraico que querem significar a totalidade e por isso são o resumo do que Coélet quer dizer. Descobrimos que o tempo ali é outro… Nós conhecemos bem o tempo newtoniano (Δt), pois aprendemos a raciocinar de acordo com o implacável e preciso horário do relógio. O relógio é um modo de dar ‘espaço’ ao tempo. O tempo se torna uma ‘coisa’, e assim parece tangível. 

Modernidade

A. Heschel em seu livro O Schabat diz que a modernidade privilegiou o espaço em detrimento do tempo, mas ganhando ‘espaço’, o ser humano diminuiu a si mesmo (Editora Perspectiva, 2018, pg. 9) : 

A civilização técnica é a conquista do espaço pelo homem. É um triunfo frequentemente alcançado pelo sacrifício de um ingrediente essencial da existência, isto é, o tempo. Na civilização técnica nós gastamos tempo para ganhar espaço. Intensificar nosso poder no mundo do espaço é o nosso maior objetivo. No entanto, ter mais não significa ser mais. O poder que alcançamos no mundo do espaço termina abruptamente na fronteira do tempo. Mas o tempo é o coração da existência.

Aprofundando essa constatação, afirma logo em seguida (pgs.11-12) :

Todos nós ficamos enfeitiçados pelo esplendor do espaço, pela grandeza das coisas do espaço. […] Realidade, para nós, é coisidade, e consiste de substâncias que ocupam espaço; mesmo Deus é concebido pela maioria de nós como uma coisa. O resultado de nossa coisificação é nossa cegueira à toda realidade que deixa de se identificar como uma coisa, como um fato real. Isto é óbvio em nosso entendimento do tempo, o qual sendo desprovido de coisa e de substância, nos parece como se não tivesse realidade.

Diferença

Diz que não se trata de desprezar a importância do espaço, do visível, do material, do tocável, mas de denunciar a hipervalorização do espaço em detrimento do tempo (cf. pg. 13). O espaço é mensurável, está sob nosso controle visual, pode ser abrangido pelo nosso olhar. O tempo não. A única maneira de medi-lo é reduzi-lo ao espaço e ao movimento que nele ocorre. Essa diferença se vê ao compararmos o espaço sagrado (necessário e de grande ajuda) com a experiência do sagrado que uma pessoa faz, que é uma experiência interior que se dá num tempo, em um momento, mas que não ocupa um ‘espaço’. 

Diferentemente do conceito de eterno retorno de Nietzsche que vê o tempo como um fluxo caótico sem objetivo, na Bíblia a temporalidade é valorizada em sua forma linear, dentro de uma dimensão histórica (cf. Giuseppe Savagnone, Il tempo è superiore allo spazio: indicazioni per la pastorale familiare, Tredimensioni 15, 2018, pgs. 48-57). Uma história que caminha para um cumprimento. Por isso, para o mundo bíblico o tempo não representa a inconsistência do ser e seu dissolver-se em um fluxo perene, mas está impregnado com um anseio de completude. 

Plenitude

Papa Francisco dirá, por isso, que o tempo é superior ao espaço (Evangelii Gaudium, 222-225) e afirma que ‘dar prioridade ao tempo significa ocupar-se de iniciar processos mais do que possuir espaços’ (EG 223). Relembra-nos as palavras do Beato Pedro Fabro : ‘O tempo é o mensageiro de Deus’ (EG 171). Por isso, a plenitude da vida de uma pessoa e do mundo todo só pode ser alcançada através de uma gradualidade e de um respeito aos processos que constroem os povos, e precisam ser vividos pouco a pouco e dentro da dimensão da paciência. ‘O espaço cristaliza os processos, o tempo, ao contrário, nos projeta para o futuro e nos impulsiona a caminhar com esperança’ (Lumen Fidei 57). 

De um modo muito belo, A. Heschel explica que o mundo bíblico é um mundo que privilegia o tempo e visa a sua santificação antes de tudo (pgs. 14-15) :

Para Israel, os acontecimentos singulares do tempo histórico foram espiritualmente mais significativos do que os processos repetitivos no ciclo da natureza (para as festividades anuais), muito embora o sustento físico dependesse dessa última. Enquanto as divindades de outros povos estavam associadas aos lugares ou coisas, o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos : o Redentor da escravidão, o Revelador da Torá, manifestando-se a Si Mesmo em acontecimentos da história, mais do que em coisas ou lugares. Assim, a fé no incorpóreo, no inimaginável, nasceu.

Prioridade

Mas voltemos ao capítulo 3 de Coélet : que tempo é esse? Começa-se a perceber a dimensão que perdemos ao desconsiderar a prioridade do tempo, pelo fato que seja no texto hebraico como no grego, há duas palavras para tempo que o qualificam de forma diferente. Há no grego o tempo cronológico (kronos) e o tempo oportuno (kairòs) e que no hebraico são expressos pela palavra zeman e et respectivamente. Se voltarmos outra vez ao texto na língua original, diz Coélet : 

Há um momento (zeman) para tudo e um tempo (oportuno – et) para todo propósito debaixo do sol. Tempo (et) de nascer, e tempo (et) de morrer; tempo (et) de plantar, e tempo (et) de arrancar a planta. Tempo (et) de matar e tempo (et) de curar; tempo (et) de destruir, e tempo (et) de construir […] (cf. Ecl. 3,2-8)

Eternidade

Para cada tempo que se pode medir (zeman) há um tempo (et) adequado, oportuno. São 14 antíteses que englobam todas as circunstâncias às quais somos chamados a aderir e a viver plenamente. Coélet mostra que cada realidade foi feita por Deus com o seu contraste e complementariedade, tudo é dual e tem o seu oposto; esta é a harmonia. No versículo 11 diz : tudo o que ele fez é apropriado ao seu tempo (et). Também colocou no coração do homem o conjunto do tempo (em hebraico olam que significa eternidade, universo), sem que o homem possa atinar com a obra que Deus realiza desde o princípio até o fim.

Não obstante Deus ter feito cada coisa bela e no momento oportuno (pois o instante para Deus é et e não apenas zeman), e embora o coração do ser humano possua essa sombra de eternidade, não conseguimos ter a visão do todo. 

Vivamos, porém, o et com alegria, diz Coélet (v. 12) : …não há felicidade para o homem a não ser a de alegrar-se e fazer o bem durante a vida. O Talmud dirá que nos será cobrado por Deus todas as vezes que tivemos oportunidade de gozar de uma boa comida e uma boa bebida e não soubemos gozar delas bem.

Lembremo-nos, portanto, que cada instante de tempo possui a eternidade e que nós habitamos neste instante eterno porque fomos criados por Deus à sua imagem. 

Não sejas o de hoje.

Não suspires por ontens…

Não queiras ser de amanhã.

Faze-te sem limites no tempo.

Vê a tua vida em todas as origens.

Em todas as existências.

Em todas as mortes.

E sabe que serás assim para sempre.

Não queiras marcar a tua passagem.

Ela prossegue :

É a passagem que se continua.

É a tua eternidade…

É a eternidade.

És tu.

(Cecília Meireles, Cânticos, II)

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/04/16/e-preciso-cuidar-do-tempo/


domingo, 21 de agosto de 2022

Quatro possíveis faces da Teologia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

As teologias, como toda e qualquer ciência humana, têm várias faces. Ao longo da história diversas delas já foram mostradas. No Ocidente, então, fortemente influenciado pela cultura greco-romana e pela teologia de matriz judaico-cristã, fica, talvez, mais fácil de percebê-las.

A primeira seria a face do moralismo, tão difundido em meios fundamentalistas, sejam católicos, sejam protestantes. Essa face, por sua vez, dado o seu aspecto carrancudo, é aquela que constantemente é responsável por fazer com que as pessoas, principalmente as mais jovens, afastem-se das igrejas, por não verem sentido em uma lista de regras impostas sem o menor pudor, como algo vindo do céu e escrito em pedras a ser observado para todo sempre. Da mesma forma, essa face é aquela que é vista como a condenadora dos que estão do ‘lado de fora’, ‘longe dos caminhos do Senhor’, por simplesmente não estarem dispostas a seguir o que é dito pela instituição.

Outra face muito conhecida da teologia cristã é a que traz um ar de superioridade e desdenho com relação ao que lhe é diferente. Essa teologia, que se considera melhor, maior e mais perfeita do que as outras religiões e outras formas de pensar, também se revela constantemente no dia a dia das pessoas. Essa, por apresentar um rosto mais amigável, atrai para si diversas pessoas que, não raras as vezes, querem se sentir merecedoras, exclusivas e certas de que estão no caminho que deveriam estar.

Contudo, um olhar atento mostra que essa face da teologia é tão excludente quanto a primeira da qual falamos, só que ao invés de gritar como um senhor carrancudo contra as crianças que brincam à sua porta, essa fica na espera de que a bola com a qual brincam atinja seu quintal para, então, esvaziá-la e acabar com toda a alegria e diversidade que tanto lhe incomoda.

Por fim, podemos perceber a face da indiferença. Aquela que se mostra quando diversas instituições, preocupadas somente com o céu e um mundo porvir, mostram-se como indiferentes frente a tudo o que acontece na sociedade. É a face que afirma : ‘nós não somos deste mundo e, portanto, não devemos nos incomodar com ele’, fruto de uma teologia desencarnada, que não aprendeu nada com o exemplo de Jesus de Nazaré. Em busca de um lugar no céu, esquece-se de que é no chão do mundo que o Reino de Deus vai tomando forma. Em outras palavras, tal face da teologia abandona justamente aquilo que lhe dá fundamento.

Essas três faces da teologia, infelizmente, talvez sejam as mais percebidas em nossa sociedade contemporânea.

Uma outra face, porém, precisa aparecer mais e sobressair a essas outras. Essa face é a do cuidado. Cuidado que, por definição, pressupõe a empatia, pressupõe o ouvir atento, a disposição de caminhar junto, o amor recíproco, a renúncia ao poder.

Toda vez que tal face não se mostra, o que se percebe é uma teologia cristã que se afasta dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, causando mais mal do que bem àqueles e àquelas que convivem com esse tipo de igreja.

Resgatar a face do cuidado com o outro e com a natureza é tarefa fundamental para uma teologia que deseja ser uma voz digna de ser ouvida no mundo contemporâneo. Sem isso, seremos como loucos que se imaginam falando para multidões e sendo ovacionados, quando na realidade estamos somente em mais um delírio em nosso quarto pequeno e afastado de tudo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586196

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Apesar da imprevisibilidade da vida, Deus cuida de nós

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Esse versículo, talvez mais conhecido no meio evangélico do Brasil pela tradução de João Ferreira de Almeida que diz : ‘qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?’, faz parte de outra parte muito conhecida da Bíblia, já consolidada como Sermão do Monte.

Nesse longo trecho, que em Mateus segue do capítulo 5 até o capítulo 7, ao contrário do que muito se ouve, não se trata de uma síntese do ensinamento de Jesus, antes, como nos mostra a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), Mateus apresenta tal sermão como uma didakhé, ou seja, ‘um ensino que supõe a proclamação anterior do Reino’.

Esse pequeno versículo, por sua vez, lendo no conjunto do sermão, traz um grande ensinamento para nossos dias. Num primeiro momento, quem trata a Bíblia como uma grande caixa de promessas, da qual se tira somente alguns versículos motivacionais para o dia a dia, ao pegar tal versículo pode pensar que o que Jesus está falando seja sobre uma espécie de fatalismo. Ou seja, a ideia de que já se tem tudo determinado e, por esse motivo, não devemos nos preocupar com nada, visto que não podemos alterar a ordem das coisas, ou aquilo que já foi pré-determinado por Deus em algum passado distante. Nesse sentido, uma vez que não se pode fazer nada contra a ordem de Deus, então se torna inútil se preocupar com a existência etc.

No entanto, lido no contexto do texto, percebe-se que a fala de Jesus aborda a questão da confiança em Deus, a quem se dirige a oração citada no início do capítulo 6. Em outras palavras, por termos um Pai/Mãe amoroso/a que caminha conosco, não devemos andar ansiosos diante das circunstâncias da vida.

Ao mesmo tempo, a fala de Jesus, ainda que tão distante temporalmente de nós, convida-nos a refletir sobre a sociedade contemporânea.

Por um lado, constantemente vemos aqueles e aquelas que mesmo fazendo todo o possível para sobreviver, não conseguem, muitas vezes, suprir as necessidades básicas para uma vida tranquila. Na realidade de milhões de pessoas que passam fome e outras carências que assegurem sua dignidade, a ansiedade e o medo se mostram presentes e não há nada a ser recriminado nisso. Somente quem nunca passou por situações assim diz a alguém que não consegue saber se terá comida e moradia no próximo mês : ‘que isso, você está se preocupando à toa’. No entanto, o versículo nos admoesta a nos lembrarmos de que Deus caminha conosco, ao nosso lado, e nos dá forças e coragem para passar pelos momentos nos quais pensamos não haver mais saída. Em outras palavras, Deus continua cuidando de sua criação e se faz presente de diversas maneiras, até mesmo no mais profundo do sofrimento humano e diante de suas carências diárias.

Numa outra perspectiva, temos a própria vida e sua imprevisibilidade, algo muito difícil para muitas pessoas aceitarem. Principalmente hoje, em que pululam discursos motivacionais que afirmam que devemos ter o controle da nossa vida, como se de alguma forma isso fosse possível. Tais discursos, por sua vez, esquecem-se de que tentar controlar a vida é esquecê-la de viver, uma vez que uma de suas principais características é o caráter de surpresa que ela possui.

Aceitar a imprevisibilidade da vida, por sua vez, não tem a ver com o conformismo ou com uma ideia fatalista da qual falamos mais acima. Antes, é reconhecer-se humano e, como tal, pequeno, não imortal e sujeito ao acaso, sendo exatamente tal vulnerabilidade diante da imprevisibilidade aquilo que nos humaniza.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1572734/2022/04/apesar-da-imprevisibilidade-da-vida-deus-cuida-de-nos/