quinta-feira, 29 de junho de 2023

É preciso cuidar do tempo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Ana Lydia Sawaya


É preciso cuidar do tempo! Toda coisa é bela no seu tempo devido, diz o Eclesiastes (Coélet). A vida é hevel, um sopro, afirma o texto hebraico deste livro sapiencial, uma tradução melhor que vaidade das vaidades (Prologo,2) do latim vanitas. Hevel – sopro, exprime algo que é evanescente, que não se pode agarrar, nem muito menos governar. Hevel é uma palavra muito usada na Bíblia. São um sopro (hevel) os filhos de Adão, diz o salmo 62,10. O homem é como um sopro, os seus dias são como sombra que passa, recorda-nos o salmo 144,4. Eu me desfaço, não viverei ainda muito. Deixa-me, porque os meus dias são um sopro, lamenta Jó (7,16).

Coélet usa o termo hevel não no sentido moral ou metafísico, mas com uma acepção muito concreta, como a descrever a percepção, o sentido físico, do tempo que passa muito rápido debaixo do sol. Significa o tempo concreto da vida : tudo passa como um sopro. Por isso, preste atenção!

Realista

Coélet não exprime uma visão pessimista da vida. Os exegetas modernos referem que se trata da constatação que na vida terrena, sob o sol, nada é completo, pleno e nem nos sacia totalmente. Por isso, não se pode colocar no lugar de Deus, não se vê tudo e não se compreende a totalidade da realidade. A condição do ser humano aqui na terra é contingente. Coélet é um homem realista, com o pé no chão, que não tem a pretensão de superar os confins da sua humanidade, mas busca refletir sobre a sua existência terrena (capítulos 1 e 2).

O capítulo 3 nos oferece uma esplêndida explicação sobre o tempo. Inicia com 7 palavras em hebraico que querem significar a totalidade e por isso são o resumo do que Coélet quer dizer. Descobrimos que o tempo ali é outro… Nós conhecemos bem o tempo newtoniano (Δt), pois aprendemos a raciocinar de acordo com o implacável e preciso horário do relógio. O relógio é um modo de dar ‘espaço’ ao tempo. O tempo se torna uma ‘coisa’, e assim parece tangível. 

Modernidade

A. Heschel em seu livro O Schabat diz que a modernidade privilegiou o espaço em detrimento do tempo, mas ganhando ‘espaço’, o ser humano diminuiu a si mesmo (Editora Perspectiva, 2018, pg. 9) : 

A civilização técnica é a conquista do espaço pelo homem. É um triunfo frequentemente alcançado pelo sacrifício de um ingrediente essencial da existência, isto é, o tempo. Na civilização técnica nós gastamos tempo para ganhar espaço. Intensificar nosso poder no mundo do espaço é o nosso maior objetivo. No entanto, ter mais não significa ser mais. O poder que alcançamos no mundo do espaço termina abruptamente na fronteira do tempo. Mas o tempo é o coração da existência.

Aprofundando essa constatação, afirma logo em seguida (pgs.11-12) :

Todos nós ficamos enfeitiçados pelo esplendor do espaço, pela grandeza das coisas do espaço. […] Realidade, para nós, é coisidade, e consiste de substâncias que ocupam espaço; mesmo Deus é concebido pela maioria de nós como uma coisa. O resultado de nossa coisificação é nossa cegueira à toda realidade que deixa de se identificar como uma coisa, como um fato real. Isto é óbvio em nosso entendimento do tempo, o qual sendo desprovido de coisa e de substância, nos parece como se não tivesse realidade.

Diferença

Diz que não se trata de desprezar a importância do espaço, do visível, do material, do tocável, mas de denunciar a hipervalorização do espaço em detrimento do tempo (cf. pg. 13). O espaço é mensurável, está sob nosso controle visual, pode ser abrangido pelo nosso olhar. O tempo não. A única maneira de medi-lo é reduzi-lo ao espaço e ao movimento que nele ocorre. Essa diferença se vê ao compararmos o espaço sagrado (necessário e de grande ajuda) com a experiência do sagrado que uma pessoa faz, que é uma experiência interior que se dá num tempo, em um momento, mas que não ocupa um ‘espaço’. 

Diferentemente do conceito de eterno retorno de Nietzsche que vê o tempo como um fluxo caótico sem objetivo, na Bíblia a temporalidade é valorizada em sua forma linear, dentro de uma dimensão histórica (cf. Giuseppe Savagnone, Il tempo è superiore allo spazio: indicazioni per la pastorale familiare, Tredimensioni 15, 2018, pgs. 48-57). Uma história que caminha para um cumprimento. Por isso, para o mundo bíblico o tempo não representa a inconsistência do ser e seu dissolver-se em um fluxo perene, mas está impregnado com um anseio de completude. 

Plenitude

Papa Francisco dirá, por isso, que o tempo é superior ao espaço (Evangelii Gaudium, 222-225) e afirma que ‘dar prioridade ao tempo significa ocupar-se de iniciar processos mais do que possuir espaços’ (EG 223). Relembra-nos as palavras do Beato Pedro Fabro : ‘O tempo é o mensageiro de Deus’ (EG 171). Por isso, a plenitude da vida de uma pessoa e do mundo todo só pode ser alcançada através de uma gradualidade e de um respeito aos processos que constroem os povos, e precisam ser vividos pouco a pouco e dentro da dimensão da paciência. ‘O espaço cristaliza os processos, o tempo, ao contrário, nos projeta para o futuro e nos impulsiona a caminhar com esperança’ (Lumen Fidei 57). 

De um modo muito belo, A. Heschel explica que o mundo bíblico é um mundo que privilegia o tempo e visa a sua santificação antes de tudo (pgs. 14-15) :

Para Israel, os acontecimentos singulares do tempo histórico foram espiritualmente mais significativos do que os processos repetitivos no ciclo da natureza (para as festividades anuais), muito embora o sustento físico dependesse dessa última. Enquanto as divindades de outros povos estavam associadas aos lugares ou coisas, o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos : o Redentor da escravidão, o Revelador da Torá, manifestando-se a Si Mesmo em acontecimentos da história, mais do que em coisas ou lugares. Assim, a fé no incorpóreo, no inimaginável, nasceu.

Prioridade

Mas voltemos ao capítulo 3 de Coélet : que tempo é esse? Começa-se a perceber a dimensão que perdemos ao desconsiderar a prioridade do tempo, pelo fato que seja no texto hebraico como no grego, há duas palavras para tempo que o qualificam de forma diferente. Há no grego o tempo cronológico (kronos) e o tempo oportuno (kairòs) e que no hebraico são expressos pela palavra zeman e et respectivamente. Se voltarmos outra vez ao texto na língua original, diz Coélet : 

Há um momento (zeman) para tudo e um tempo (oportuno – et) para todo propósito debaixo do sol. Tempo (et) de nascer, e tempo (et) de morrer; tempo (et) de plantar, e tempo (et) de arrancar a planta. Tempo (et) de matar e tempo (et) de curar; tempo (et) de destruir, e tempo (et) de construir […] (cf. Ecl. 3,2-8)

Eternidade

Para cada tempo que se pode medir (zeman) há um tempo (et) adequado, oportuno. São 14 antíteses que englobam todas as circunstâncias às quais somos chamados a aderir e a viver plenamente. Coélet mostra que cada realidade foi feita por Deus com o seu contraste e complementariedade, tudo é dual e tem o seu oposto; esta é a harmonia. No versículo 11 diz : tudo o que ele fez é apropriado ao seu tempo (et). Também colocou no coração do homem o conjunto do tempo (em hebraico olam que significa eternidade, universo), sem que o homem possa atinar com a obra que Deus realiza desde o princípio até o fim.

Não obstante Deus ter feito cada coisa bela e no momento oportuno (pois o instante para Deus é et e não apenas zeman), e embora o coração do ser humano possua essa sombra de eternidade, não conseguimos ter a visão do todo. 

Vivamos, porém, o et com alegria, diz Coélet (v. 12) : …não há felicidade para o homem a não ser a de alegrar-se e fazer o bem durante a vida. O Talmud dirá que nos será cobrado por Deus todas as vezes que tivemos oportunidade de gozar de uma boa comida e uma boa bebida e não soubemos gozar delas bem.

Lembremo-nos, portanto, que cada instante de tempo possui a eternidade e que nós habitamos neste instante eterno porque fomos criados por Deus à sua imagem. 

Não sejas o de hoje.

Não suspires por ontens…

Não queiras ser de amanhã.

Faze-te sem limites no tempo.

Vê a tua vida em todas as origens.

Em todas as existências.

Em todas as mortes.

E sabe que serás assim para sempre.

Não queiras marcar a tua passagem.

Ela prossegue :

É a passagem que se continua.

É a tua eternidade…

É a eternidade.

És tu.

(Cecília Meireles, Cânticos, II)

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/04/16/e-preciso-cuidar-do-tempo/


terça-feira, 27 de junho de 2023

As cordas do coração: uma história musical

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Ana Lydia Sawaya


A música tem a capacidade de transformar-nos, de mover-nos, co-mover-nos, carregar-nos junto consigo, e nos fazer mudar de posição, de pensamento e de sentimento. Um pesquisador que estudou esse fenômeno descreveu-o assim : 

Uma canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um momento marcante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa ‘aquela’ música no rádio, emoções como saudade, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns casos, repensar sua existência. Mas muitas vezes essa experiência (não julgada) acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez, uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para as futuras lembranças e sensações. (G. Junior, Cardinales bonitas, Revista FAPESP 120)

Por que é assim? O nosso coração é feito de cordas e quando estas se sintonizam com uma harmonia certa, todo o nosso ser se comove. O coração humano foi feito para algo, alguém que está fora dele, além dele, e nosso coração estará sempre procurando-o. Dizia Santo Agostinho : ‘o nosso coração foi feito para ti Senhor e está inquieto enquanto não repousa em ti’ (Confissões I, 1,1).Todos os seres humanos são assim, quer tenham uma fé ou não. Há uma canção muito famosa Allelluyah de Leonard Cohen que conta a história do rei Davi e diz que até Deus se comoveu com os acordes que Davi compunha quando tocava sua lira, tornando-se para sempre seu amigo :

There was a secret chord / That David played / And it pleased the Lord. / It goes like this / The fourth, the fifth / The minor fall / The major lift / The baffled King / Composing hallelluyah

Havia um acorde secreto /Que David tocou / E que agradou ao Senhor. / É assim / A quarta, a quinta / A nota menor cai / A nota maior sobe / O rei perplexo e maravilhado / Compondo hallelluyah

É preciso saber reconhecer com inteligência e atenção, com cuidado de si, esses momentos maravilhosos. Neles reside não só uma profunda experiência de felicidade, mas a descoberta da direção certa na vida, condizente com o nosso ‘eu’. 

O mundo de hoje nos confunde e nos subtrai esses momentos de verdade, nos entregando espaços e tempos ilusórios, que podem nos excitar, mas não nos maravilhar. É preciso saber reconhecer a diferença imensa que existe entre o ser excitado por algo e o ficar maravilhado. A primeira é uma experiência alienante, enquanto a segunda é conforme o nosso coração. Essa experiência é como uma oração : nos coloca em contato com o infinito, com o fora do tempo, com a verdade do tempo. E com o desejo verdadeiro que mora no nosso coração.

Há uma história impressionante que aconteceu com uma das maiores pianistas russas do século XX, Marija Judina. Sua história é muito tocante, viveu sua vida vendo seus amigos artistas e escritores sendo presos e mortos pelo regime. Mas ninguém teve a coragem de tocar nela até o fim da sua vida…

Conta-se que uma das suas execuções mais famosas era o Concerto n. 23K 488 de Mozart do qual ela tocava o segundo movimento interpretando-o como uma oração, um réquiem para as vítimas dos campos de concentração de Stalin. Um dia Stalin escuta no radio uma apresentação dela tocando esse concerto, e fica tão impressionando que pede que se compre imediatamente o disco. Mas o disco não existia porque o concerto tinha sido transmitido ao vivo (porque ela era proibida pelo regime de gravar). Assim, sem ter coragem de explicar que a pianista não condizia com a ortodoxia política do ditador e não era agraciada com muita publicidade e sucesso, os comissários da rádio convocam com urgência Marija e a orquestra, o concerto é gravado durante uma noite às pressas e o disco, confeccionado com poucos exemplares e é entregue ao ilustre admirador. Stalin é generoso e manda uma grande soma de dinheiro para a pianista. Ela lhe envia uma carta de resposta dizendo : ‘Agradeço-lhe muito pela sua ajuda, Iosif Vissarionovič. Rezarei dia e noite pelo senhor e pedirei a Deus que perdoe os seus graves pecados contra o povo e a nação. Deus é misericordioso, o perdoará. O dinheiro o entregarei para a restauração da minha paróquia’. Conta-se que o disco com o concerto dela estava no gramofone de Stalin, quando o encontraram morto (cf. G. Parravicini, Marija Judina, più della musica, ed. La casa di Matriona, 2010, Milano, Italia, p. 81). Era exatamente a música que ela tocava para as milhões de pessoas mortas pelas atrocidades dele… 

O que é um coração misericordioso?

Que força divina tem uma oração de intercessão pelas pessoas que realizaram grandes atrocidades na história? 

Marija Judina foi marginalizada pela cultura oficial na União Soviética, mesmo sendo reconhecidamente um prodígio em termos de perfeição musical e técnica. O regime a considerava um perigo e temia a sua fé, declarada e pública. Marija possuía um temperamento indomável e uma total independência no seu modo de ver tudo.

Estas características não eram simplesmente oriundas do seu caráter, mas nasciam de um núcleo interior que ela mesmo reconhecia como ineliminável, irredutível e sempre presente em cada ser humano. Gostava de repetir, ao falar de si mesma, ‘Vivo em um anelo de simpatia mundial’, e ainda, ‘Tenho uma consciência muito clara dos meus pecados e das minhas fraquezas, mas eu me atrevo a pensar’. 

Dizia que a grandeza do ser humano não está nos seus dotes, mas no ‘impulso para ousar’ que nasce com cada pessoa, no seu coração que é sede de infinito, e morre, somente, depois dela. Repetia, citando Dostoevskij, que ‘seria necessário cortar a língua de Cícero, cavar os olhos de Copérnico, lapidar Shakespeare…’ Dava-se conta que ela tinha recebido um grande dom e por isso estava sempre disposta a compartilhá-lo generosamente com todos. Muitas vezes foi à fronte para tocar para os soldados durante a guerra…

Quando seus dedos tocavam o teclado do piano, afirmavam seus ouvintes, era-se transportado para um outro mundo, transfigurado, que purificava a realidade das misérias e miudezas, infundindo nelas sentido e esperança, dando-lhes beleza. O fascínio que Marija causava nos seus ouvintes vinha do fato, diziam, que os seus não eram apenas concertos, mas um testemunho, uma ‘apresentação sacra’, uma ‘catarse purificadora’.

Marija Judina buscou a vida inteira a beleza, jogando-se na realidade com inteireza e apaixonadamente; com interesse e simpatia por tudo e por todos que encontrava. A beleza, como padre Vsevolod Špiller disse em seu funeral, não era para ela uma categoria estética, mas a energia da gloria de Deus que transfigura o mundo… abrindo caminho para o outro mundo, para uma realidade maior, onde habita a graça de Deus. 

Essa sua urgência se traduziu também na busca pela nova música contemporânea e pelos compositores da sua época, como ela mesma explicou uma vez : a novidade nasce cada dia, quando se espera pelo milagre inaudito que vem de Deus, do mundo, de outra pessoa, para nos surpreender.

Marija nasce em 9 setembro de 1899 em Nevel’ próximo à Bielorrússia. Era judia e seu pai um médico reconhecido. A família vivia em um território onde, desde Catarina a Grande, era permitido que os judeus vivessem em paz, até serem expulsos e ter suas casas queimadas (inclusive a dela) pelos nazistas em 1941. 

Descobre cedo sua arte e sua vocação e a necessidade de se entregar sem reservas. É enviada pela família, ainda muito jovem, ao conservatório, e tem uma trajetória brilhante e excepcional. Frequenta grupos onde se discute filosofia, arte, religião, e tem muitos amigos entre intelectuais, artistas e religiosos como Pavel Florenskij, Aleksandr Men, Dmitrij Šostakovič, Boris Pasternak. Muitos dos quais vê serem presos e mortos, uma constância ao longo de toda a sua vida…

Descobre o cristianismo, se converte e torna-se ortodoxa. Escreverá no seu diário : Cada pessoa deve justificar o seu próprio caminho pessoal. A minha fé na excepcionalidade e sublimidade da arte o justifica. No fundo, nós todos – homens – chegaremos no mesmo ponto, à vida do espírito, a um outro plano do ser, mas chegaremos por estradas diversas, uns através da arte, outros através do altruísmo, outros ainda, talvez, através do amor. Cada um a seu modo : as estradas são tantas quantos são os homens. É nesta multiforme variedade, que conduz à unidade absoluta, onde reside toda a beleza e a profundidade da vida humana. E nisto está também a dor (12/11/1916).

Recebe grandes prêmios como pianista, mas vai progressivamente sendo marginalizada pelas suas posições abertamente contra o regime soviético. É impedida de tocar em grandes salas de concerto, assim como de gravar recitais. Tudo o que ganhava distribuía a quem tinha mais necessidade do que ela. Termina sua vida quase sem nada. Quem era afinal Marija Judina? Um mistério para todos os que a conheceram e também para nós. Alguém que tinha o extraordinário fascínio de estar na terra, mas já ser cidadã do céu. Parravicini diz em seu livro que o seu era um coração misericordioso semelhante àquele descrito pelos Padres da Igreja : um coração que queima por toda a criação, e se derrete, e não pode suportar escutar ou ver o mínimo sofrimento em qualquer criatura, e em cada instante oferece orações e chora por elas, por causa da grande misericórdia que a comove, à semelhança de Deus (Isaac o Sírio). Como será que Deus escutou suas orações pela sua grande Rússia e por seu terrível ditador Stalin, um dos mais cruéis da história?… O segredo de um coração misericordioso pertence a Deus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/06/25/as-cordas-do-coracao-uma-historia-musical/

domingo, 25 de junho de 2023

Solidariedade para além da lama, histórias dos “anjos” no Kivu do Sul

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Lucas Duran


'O olhar vivo, o sorriso que nunca cede à resignação, em sinal de esperança. Nem sequer diante da tragédia. A irmã Yvette Lwali Zawadi, da casa generalícia das Irmãs Angélicas em Roma, está em contacto permanente com as suas irmãs na República Democrática do Congo ( RDC ). «Muitas delas — diz — perderam familiares e conhecidos por causa das derrocadas e dos deslizamentos de terra. Uma tragédia que as une ainda mais às populações locais, todas à procura dos corpos dos seus entes queridos. Pode dizer-se que se consideram afortunados aqueles que podem dar sepultura aos próprios entes queridos».

A casa generalícia das Irmãs Angélicas de São Paulo situa-se na via Casilina, uma das periferias de Roma, e é sempre na periferia da capital do Kivu do Sul, Bukavu, que as Irmãs desempenham o seu trabalho.

«No Kivu do Sul — diz a irmã Yvette — estamos presentes com cerca de 55 irmãs e três casas. A primeira, em Murhesa, fica apenas a 30 km de Bukavu, mas não se deve pensar em quilometros como aqui na Itália. Poucas milhas na RDC podem significar horas de viagem». As outras duas casas situam-se um pouco mais longe, precisamente em Kavumu e Kahele. Esta última, além das recentes inundações, é uma zona onde se registaram numerosos casos de violência causados pela instabilidade política e que afetaram sobretudo as mulheres.

Através dos nossos projetos, continua a Ir. Yvette, «optamos por dar prioridade às escolas e à educação. Na RDC , as escolas públicas são muitas vezes uma quimera e a maior parte das pessoas não tem possibilidade de pagar as mensalidades das instituições privadas. As nossas escolas acolhem cerca de 900 alunos e procuramos apoiar em particular a educação das adolescentes e das mulheres jovens, que são frequentemente discriminadas na educação. Não é fácil, até porque os custos são elevados. É também por isso que ativamos, há algum tempo, um programa de adoção à distância, através do qual qualquer pessoa pode ajudar-nos na nossa missão».

Ao lado da educação, as Irmãs Angélicas de São Paulo na República Democrática do Congo estão ativas em hospitais e orfanatos, mas também através de um verdadeiro trabalho de apostolado nas áreas mais remotas, onde apoiam famílias que cultivam pequenas parcelas de terra, especialmente mulheres sozinhas que devem sustentar e educar os próprios filhos. «Todos os meses — diz a irmã Yvette — nos encontramos com as mães e as crianças e procuramos dar-lhes o que precisam. No orfanato de Kahele há muitos casos de subnutrição grave e as irmãs fazem o que podem para apoiar os mais pequeninos necessitados».

A escolha do tipo de ação a realizar e dos beneficiários a assistir é supervisionada pela Arquidiocese de Bukavu, mas a presença da Congregação no Kivu do Sul desde 1963 é, por si só, a primeira garantia da eficácia das intervenções. «Afinal de contas — evidencia a irmã Yvette — as relações com as instituições locais baseiam-se geralmente na confiança e na colaboração. Um dos problemas mais delicados continua a ser, em todo o país, e não apenas no Kivu do Sul, o do pagamento dos professores que, muitas vezes, não recebem os salários durante longos períodos. A presença das nossas escolas representa, neste sentido, uma lufada de ar fresco e as pessoas veem-nos como um ponto de referência e de esperança».

«O nosso compromisso — conclui a Irmã Yvette — baseia-se no carisma da nossa congregação, a renovação do fervor cristão. O mesmo fervor que acompanhou a visita do Papa Francisco à República Democrática do Congo, que teve lugar entre 31 de janeiro e 3 de fevereiro de 2023. E mesmo que o Pontífice não tenha podido visitar Goma, a capital do Kivu do Norte, como estava inicialmente previsto, o simples facto de ter empreendido a viagem apostólica à RDC após o seu cancelamento forçado em julho de 2022, foi para toda a população do nosso país um sinal de esperança e, realmente, de renovado fervor cristão».’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.osservatoreromano.va/pt/news/2023-06/por-023/solidariedade-para-alem-da-lama-historias-dos-anjos-no-kivu-do-s.html

quarta-feira, 21 de junho de 2023

A grandeza e a miséria do homem: o paradoxo do pensamento de Blaise Pascal

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Blaise Pascal (Clermont-Ferrand, 19 de junho de 1623 - Paris, 19 de agosto de 1662) Matemático, físico, filósofo e teólogo francês, a quem o Papa Francisco dedicou a carta apostólica "Sublimitas et miseria hominis" 
 

*Artigo de Silvonei José 


‘‘Grandeza e miséria do homem é o paradoxo que está no centro da reflexão e mensagem de Blaise Pascal, nascido há quatro séculos, em 19 de junho de 1623, em Clermont, no centro da França’. Assim tem início a Carta Apostólica 'Sublimitas et miseria hominis' que o Papa Francisco dedicou à obra do filósofo e teólogo francês, Blaise Pascal, no quarto centenário de seu nascimento.

Francisco recorda que Pascal desde criança e por toda a vida, procurou a verdade. Com a razão, esquadrinhou os sinais dela, especialmente nos campos da matemática, geometria, física e filosofia. Em idade ainda muito precoce, fez descobertas extraordinárias, alcançando fama considerável. Mas não ficou por aí. Num século de grandes progressos em muitos campos da ciência, acompanhados, porém dum crescente espírito de ceticismo filosófico e religioso, Blaise Pascal mostrou-se um incansável investigador do verdadeiro : como tal, permanece sempre «inquieto», atraído por novos e mais amplos horizontes.

Francisco escreve que nunca silenciava nele a questão, antiga e sempre nova, que ressoa no ânimo humano : «Que é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com ele Te preocupares?». Esta pergunta – escreve o Papa - está gravada no coração de cada ser humano, em todo o tempo e lugar, de qualquer civilização e língua, independentemente da sua religião. Assim vemos Pascal interrogar-se : «Que é um homem na natureza? Um nada comparado com o infinito, um tudo comparado com o nada».

Pascal estava atento aos problemas então mais sentidos, bem como às necessidades materiais de todos os componentes da sociedade em que vivia. Para ele, a abertura à realidade significava não se fechar aos outros, nem mesmo na hora da sua última doença.

Deste período (tinha ele trinta e nove anos), chegam-nos palavras que exprimem o passo conclusivo de tal caminho evangélico : «Se os médicos falam verdade (e Deus permita que eu recupere desta doença), estou decidido para o resto da minha vida a não ter outro emprego nem outra ocupação além do serviço aos pobres».

Um enamorado de Cristo, que fala a todos

O Papa Francisco na sua carta afirma que ‘se Blaise Pascal consegue tocar a todos, é sobretudo porque falou admiravelmente da condição humana. Mas seria errado ver nele apenas um especialista, embora genial, dos costumes humanos’. O monumento formado pelos seus Pensamentos, de que alguns ditos isolados ficaram célebres, não se pode compreender realmente se se ignora que Jesus Cristo e a Sagrada Escritura constituem simultaneamente o centro e a chave do mesmo.

Com efeito, se Pascal começou a falar do homem e de Deus, foi por ter chegado à certeza de que «não só conhecemos a Deus unicamente por Jesus Cristo, mas também nos conhecemos a nós mesmos apenas por Jesus Cristo. Só conhecemos a vida, a morte por meio de Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo, não sabemos o que é a nossa vida, a nossa morte, nem quem é Deus nem mesmo o que somos nós.

Fé, amor e liberdade

Como cristãos, devemos precaver-nos da tentação de brandir a nossa fé como uma certeza incontestável que se imporia a todos. Pascal tinha, sem dúvida, a preocupação de dar a conhecer a todos que «Deus e o verdadeiro são inseparáveis», mas sabia que o ato de crer é possível pela graça de Deus, recebida num coração livre.

Pascal nos adverte contra as falsas doutrinas, as superstições ou a libertinagem que mantêm, a tantos de nós, longe da paz e alegria duradouras d’Aquele que deseja que escolhamos a vida e a felicidade, não a morte e a desventura. O drama, porém, da nossa vida é que às vezes vemos mal e, consequentemente, escolhemos mal.

Os filósofos

Sobressai um discurso filosófico em muitos escritos de Pascal, em particular nos seus Pensamentos : esse conjunto de fragmentos, publicados postumamente, que são as notas ou os rascunhos dum filósofo animado por um projeto teológico, cujos pesquisadores se empenham em reconstituir, não sem variações, a coerência e a ordem original.

O amor apaixonado por Cristo e o serviço dos pobres, não foram tanto o sinal duma fratura no espírito deste discípulo corajoso, como sobretudo um aprofundamento rumo à radicalidade evangélica, o avançar para a verdade viva do Senhor com a ajuda da graça. Ele que tinha a certeza sobrenatural da fé, vendo-a claramente conforme à razão embora a ultrapasse infinitamente, quis levar o mais longe possível o debate com quantos não partilhavam a sua fé, porque, «àqueles que a não têm, só a podemos dar pelo raciocínio, esperando que Deus lha conceda pelo sentimento do coração».

Meditando os Pensamentos de Pascal, encontramos de certa forma este princípio fundamental : «A realidade é superior à ideia», porque Pascal ensina a desviar-nos das «várias formas de ocultar a realidade», desde os «purismos angélicos» aos «intelectualismos sem sabedoria». Nada é mais perigoso do que um pensamento desencarnado : «Quem quer fazer o anjo, faz a besta».

A condição humana

A filosofia de Pascal, toda ela em paradoxos, deriva dum olhar simultaneamente humilde e lúcido, que procura alcançar a «realidade iluminada pelo raciocínio». Parte da constatação de que o homem é como um estranho para si mesmo, grande e miserável; grande pela sua razão, a sua capacidade de dominar as paixões, grande até «na medida em que se reconhece miserável». De modo particular aspira a algo mais do que satisfazer os próprios instintos ou resistir-lhes, «porque, aquilo que é natureza nos animais, chamamos-lhe miséria no homem».

Pascal sublinha que, se existe um Deus e se o homem recebeu uma revelação divina – como afirmam diversas religiões – e se esta revelação é verdadeira, deve encontrar-se nela a resposta que o homem espera para resolver as contradições que o atormentam : «As grandezas e as misérias do homem são tão visíveis que é preciso necessariamente que a verdadeira religião nos ensine se existe qualquer grande princípio de grandeza no homem e se existe um grande princípio de miséria. E é preciso ainda que ela nos dê a razão de ser destes contrastes assombrosos».

Conversão : a visita do Senhor

No dia 23 de novembro de 1654, Pascal viveu uma experiência muito forte, de que se fala até agora como a sua «Noite de Fogo». Esta experiência mística, que o fez derramar lágrimas de alegria, foi tão intensa e decisiva para ele que a escreveu num pedaço de papel datado com precisão, o «Memorial», que guardara no forro do casaco sendo descoberto só depois da sua morte. É impossível saber a natureza exata do que se passou na alma de Pascal naquela noite, mas parece tratar-se dum encontro de que ele próprio reconheceu a analogia com aqueloutro, fundamental em toda a história da revelação e da salvação, vivido por Moisés diante da sarça ardente (cf. Ex 3).

Como recordava São João Paulo II na sua Encíclica sobre as relações entre fé e razão, «filósofos, como Blaise Pascal», distinguiram-se pela recusa de qualquer «presunção», bem como pela sua opção por uma postura feita de «humildade» e simultaneamente de «coragem». Experimentaram que a fé «liberta a razão da presunção».

Nem a inteligência geométrica nem o raciocínio filosófico permitem ao homem chegar, sozinho, a uma «visão perfeitamente nítida» do mundo e de si mesmo. A pessoa que se debruça sobre os detalhes dos seus cálculos, não beneficia da visão de conjunto que permite «entrever todos os princípios».

Pascal nunca se resignou com o facto de alguns dos seus semelhantes não só não conhecerem Jesus Cristo, mas, por preguiça ou por causa das suas paixões, desdenharem levar o Evangelho a sério. Com efeito, é em Jesus Cristo que se joga a vida deles.

A verdadeira luz que ilumina o mistério da morte provém da ressurreição de Cristo». Só a graça de Deus permite ao coração do homem ter acesso à ordem do conhecimento divino, à caridade. Isto levou um importante comentarista, contemporâneo de Pascal, a escrever que «o pensamento só consegue pensar cristãmente, se tiver acesso àquilo que Jesus Cristo implementa : a caridade».

Na sua posição de fiel leigo, Pascal saboreou a alegria do Evangelho, com que o Espírito quer fecundar e curar «todas as dimensões do homem» e reunir «todos os homens à volta da mesa do Reino». Em 1659, quando compôs a magnífica Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças, Pascal é um homem pacificado, que já não se situa na controvérsia, nem mesmo na apologética. Estando muito doente e à beira da morte, pede para comungar, mas não o pôde fazer imediatamente. Então dirige estas palavras à sua irmã : «Não podendo comungar a cabeça [Jesus Cristo], queria comungar os membros». E «tinha um grande desejo de morrer na companhia dos pobres». «Morre com a simplicidade duma criança» : diz-se dele pouco antes de exalar o último respiro em 19 de agosto de 1662.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-06/grandeza-miseria-homem-paradoxo-pensamento-pascal.html

domingo, 18 de junho de 2023

Fora dos escombros, através dos olhos das crianças, a devastação da Síria

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Beatrice D'Ascenzi


As fotos das crianças que se tornam uma lente de aumento do país destruído. Durante a 7ª Conferência de Apoio ao Futuro da Síria e da Região, em Bruxelas, na Bélgica, foi apresentada a mostra ‘Fora dos escombros : terremotos e a destruição do conflito através dos olhos das crianças’. Uma exposição fotográfica para contar a perspectiva dos pequenos fotógrafos, através do poder de suas fotos. Gianluca Ranzato, gerente humanitário da organização, falou ao Vatican News sobre o objetivo do projeto : ‘A mostra fotográfica é uma tentativa de dar voz às crianças, porque é essencial perceber que o olhar delas deve nos guiar’.

‘Se olharmos as imagens que as crianças nos ofereceram’ - explica Ranzato, ‘o que chama a atenção é como as imagens das áreas afetadas pelo terremoto e as das áreas não afetadas sejam tão tristemente parecidas’. As fotos dos prédios demolidos, ruas cheias de entulho e falta geral de infraestrutura, descrevem um desconforto certamente agravado pelo terremoto, mas já presente na vida dos pequenos fotógrafos porque, como sublinha mais uma vez o gestor humanitário : ‘O terremoto foi um desastre terrível que atingiu um país que vive 12 anos de guerra e uma profunda crise econômica. Isso leva a grande maioria da população a depender de ajuda humanitária e a ter dificuldades de acesso a alimentos, com todas as consequências que isso acarreta’.

O impacto econômico do terremoto

Por meio dessas fotos, as crianças foram capazes não apenas de contar suas experiências, mas também uma perspectiva que muitas vezes por causa da pouca idade é marginalizada, trazendo à tona as dificuldades que surgem para quem vive num território em conflito, como explica ainda Ranzato : ‘As famílias colocam em prática, para enfrentar a falta de alimentos, muitas vezes levam as crianças ao trabalho infantil, casamentos precoces, tráfico humano. As crianças sabem que têm direito a uma vida feliz, a serem protegidas e a uma educação, basta ouvi-las para ter uma bússola clara para intervir’.

Ser criança na Síria

Muitas dessas crianças nunca conheceram um país em paz. Uma situação que tem um efeito fortíssimo na sua saúde mental, que Save the Children tenta proteger ao máximo : ‘Para essas crianças é normal ter 9 e 10 anos e não terem visto nada além do conflito, a destruição e cenários de guerra’, continua Gianluca Ranzato. ‘Isso nos faz entender como é necessário focar nossa atenção na Síria’, disse ele, ressaltando que existe o risco de comprometer seu futuro, deixando-as sozinhas para lutar com as feridas da alma com as quais cresceram. ‘Sem dúvida, esses traumas se curam com o passar das gerações. Não podemos pensar que não haverá consequências para uma população, que no futuro ninguém pagará por esta falta de bem-estar, mas devemos dar um raio de esperança procurando juntos curar essas crianças’, conclui o representante de Save the Children Itália.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2023-06/save-the-children-siria-criancas-guerras.html

quinta-feira, 15 de junho de 2023

O Sagrado Coração de Jesus entre os místicos cistercienses

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Vanderlei de Lima, 

eremita na Diocese de Amparo, BA

 

‘O século XII é, sem dúvida, na vida da Igreja, o tempo áureo dos grandes místicos cistercienses, ou seja, dos membros da Ordem monástica homônima fundada em 1098, em Cister, na França.

Sobre tais místicos escreve Dom Luís Alberto Ruas Santos, O. Cist.: ‘Os mosteiros cistercienses produziram grandes místicos. […] Talvez não tenha havido na Igreja uma escola de espiritualidade tão uniforme na temática e com tantos autores como a cisterciense’ (Os cistercienses : uma espiritualidade abrangente e criativa. Itatinga: Abadia cisterciense de Nossa Senhora da Assunção de Hardehausen-Itatinga, 1998, p. 17).

Daí a questão : quem são eles? – Todos foram Abades. Deixaram-nos uma rica espiritualidade marcada por três pontos : o pastoral, visava, em forma de Sermões, a santificação dos monges, seus primeiros destinatários; o patrístico, pois continuava a teologia bíblico-simbólica dos Padres da Igreja (escritores cristãos – não necessariamente sacerdotes – dos primeiros sete séculos que muito ajudaram na formulação da reta fé) e também o místico, ou seja, a vivência da verdadeira e estável união com Deus a fim de se tornarem um só com Ele. São grandes expoentes dessa corrente mística Bernardo de Claraval (o pai ou iniciador), Guilherme de Saint-Thierry, Elredo de Rievaulx, Guerrico de Igny, Balduíno de Ford etc. (cf. Dom Bernardo Bonowitz. Os místicos cistercienses do século XII. Juiz de Fora: Subiaco, 2005, p. 7-11). Alguns destes homens tratarão do Sagrado Coração de Jesus em seus escritos. Ei-los :

São Bernardo de Claraval escreve : ‘O ferro da lança transpassou sua alma e aproximou-se de Seu coração para que ele pudesse sentir conosco, com a nossa fraqueza. O segredo do Coração tornar-se-á visível através da abertura do corpo. Abre-se aquele grande mistério de sua clemência, abre-se o íntimo trancado da misericórdia de Deus’ (PL CLXXXIII. 1072 in Dom Veremundo A. Toth, OSB. Por sinais ao invisível, Juiz de Fora: Subiaco, 2003, p. 144). 

Guilherme de Saint-Thierry registra : ‘Assim como Tomé, o cético, expressando seu desejo, também eu desejo vê-lo por inteiro e tocá-lo; mas não apenas isso, e sim chegar junto da sagrada chaga de seu lado; até a fenda da arca da aliança que se abriu no seu lado, para que eu pudesse introduzir não apenas meus dedos e minha inteira mão, mas todo eu pudesse achegar-me ao próprio Coração de Jesus, ao Santo dos Santos à arca da aliança’ (PL CLXXXIV. 368, idem, p. 144). 

Guilbert de Hoyland diz : ‘A chaga do coração assinala o ardor do amor. Em verdade, é um doce Coração que induz nossos sentimentos à reciprocidade afetuosa. Por mais que ame, não ama, mas apenas retribui o amor… Esposa, não consegues corresponder totalmente ao teu Amado. Mesmo assim Ele não cessa de se dar inteiramente. O que ele te oferece ainda não é completo, mas se compromete. Todo o amor que Lhe retribuis, Ele o recebe não como uma dívida, mas sim como uma oferenda espontânea. Ele sente uma espécie de desafio ao amor, enquanto apresenta seu Coração ferido’ (PL CLXXXIV. 155, ibidem, 2003, p. 144-145).

Guerrico d’Igny chega, por sua vez, ao símbolo preciso do Coração, ao escrever : ‘Para que eu pudesse construir meu ninho na fenda de um rochedo, bendito seja quem suportou que traspassassem seus pés, sua mão e o lado e se abriu totalmente para mim para que eu pudesse adentrar na maravilhosa tenda e encontrasse proteção no refúgio do seu interior… Por isso, Ele abriu misericordiosamente seu lado, para que o sangue de sua chaga me vivificasse, o calor de seu corpo me alentasse, o sopro libertador do hálito puro de seu Coração me reanimasse’ (PL CLXXXV. 140, ibidem, p. 146).

Que tão preciosos ensinamentos dos grandes místicos cistercienses do século XII sobre o Sagrado Coração de Jesus fale alto no nosso coração neste conturbado século XXI.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2021/06/13/o-sagrado-coracao-de-jesus-entre-os-misticos-cistercienses/


terça-feira, 13 de junho de 2023

Missa: o sacrifício perfeito

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Júlia A. Borges

 

‘‘Creio na Santa Igreja Católica’ – essa é a afirmação feita por nós, católicos, todas as vezes em que estamos na Missa, em frente ao altar. Essa verdade consta no Credo Apostólico, mas se a oração a ser feita advir do Credo Niceno-Constantinopolitano, a especificação é ainda maior : ‘Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados’. Em uma sentença : cremos verdadeiramente na fé que professamos, entretanto, ainda há alguns desacertos quanto ao núcleo central da nossa credulidade, quanto ao sacrifício perfeito, ou seja, quanto ao entendimento real da missa.

Trata-se de enxergar a clareza do que está a ocorrer naquele altar não como um evento ou um simples cultuar a Deus. É necessário, acima de qualquer coisa, compreender verdadeiramente a missa como sacrifício, o verdadeiro sacrifício de Cristo na Cruz. Presencia-se ali não um novo martírio, mas a confirmação, a sacramentalização daquela imolação ocorrida há dois mil anos.

Lutero e Calvino têm uma perspectiva diferente, chegando a abominar a Santa Missa, acreditando ocorrer ali um novo sacrifício e afirmam que tudo aquilo não é necessário fazer, uma vez que a imolação já fora oferecida e que os pecados já se encontram perdoados, como uma quitação judicial definitiva. De fato, a redenção ocorreu lá na Cruz, com Jesus Cristo, mas ela precisa ser apropriada como redenção subjetiva para o caminho de Santidade. Não é simplesmente um recibo que o cristão adquire de que nossos pecados foram justificados; mas um caminho legítimo na busca de ser verdadeiramente santo. Vale destacar que o  Concílio de Trento, por outro lado, respondeu a Lutero e Calvino dizendo que não há dois sacrifícios. Essa é a posição oficial da Igreja. Isso está declarado dogmaticamente. O Concílio de Trento (Sessão 22.ª) o diz : ‘Com efeito, uma só e mesma é a vítima [Una enim eademque est hostia], pois quem agora se oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que então se ofereceu na cruz; só o modo de oferecer é diferente.’

Posição católica

Ou seja, a posição católica é única : a vítima é a mesma, a Pessoa divina que se encarnou e que se ofereceu na Cruz, agora se oferece pelo ministério do sacerdote, do padre, no altar. ‘Só o modo de oferecer é diferente’ : na Missa, é sem derramamento de sangue. Essa é a posição dogmática da Igreja Católica.

É preciso ter a disposição para entender a importância da missa para além da remissão dos pecados; entender a fé para além da quitação e absolvição dos pecados. É preciso ir além. Afinal, se o objetivo é ser a imagem e semelhança de Cristo, é necessário muito além de puramente não cometer pecados, mas percorrer rumo à redenção verdadeira. É preciso algo além do que uma absolvição cartorial, mas uma transformação real da alma, ou seja, ela precisa amar e realizar obras divinas como os santos, e tal caminho passa pelos sacramentos, como a própria Eucaristia.

Pensar em Santa Teresa D`Ávila, Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho ou São Francisco como exemplos de vida é uma tarefa muito árdua se não houver como auxílio maior o Espírito Santo de Deus. Se os referidos santos e todos os outros conseguiram alcançar a tão almejada sétima morada que Santa Teresa D`Ávila revela em seu livro sobre As sétimas moradas do Castelo Interior da Alma, estejam certos de que tal conquista não fora pelos próprios méritos ou por algum tipo de merecimento, ou ainda, porque simplesmente creram em Jesus e tinham fé. É um esvaziar-se de tal forma que nada mais há a não ser àquele que os criou. E tal atitude vai muito além de um único passo de arrependimento dos pecados.

Sim, é aí que o caminho da perfeição começa. É aceitando nossas máculas e buscando corrigi-las diariamente. Mas se o desejo é ser semelhante a Cristo, é necessário sermos diferentes do que somos e buscar, somente pela graça, a virtude da Santidade.’

Referências :

  • A Bíblia Sagrada. Tradução do Pe. Manuel de Matos Soares. Campinas: Ecclesiae, 2096p.
  • João Calvino, Institutio religionis christianæ, v. 2. Brunsvique: Schwetschke, 1869.
  • Padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.
  • Padre Paulo Ricardo. A resposta Católica. São Paulo: Ecclesiae, 2013.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/06/11/missa-o-sacrificio-perfeito/

domingo, 11 de junho de 2023

Meias-verdades

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Manuel Augusto Lopes Ferreira,

Missionário Comboniano

 

‘Desde a primeira geração dos discípulos-missionários que a missão vive o desafio de confiar à Palavra humana um anúncio de natureza divina. Na experiência do encontro com o Senhor ressuscitado e à luz do dom do Espírito, os apóstolos tiveram uma nova compreensão da pessoa e do ensinamento de Jesus; e assumiram a sua própria identidade de comunidade portadora de um anúncio a levar a todas as pessoas e povos. A leitura dos Atos dos Apóstolos, no tempo pascal, familiarizou-nos com essas fórmulas de anúncio que sobreviveram nas primeiras comunidades em forma oral, transmitindo-se graças às técnicas mnemonicas que as pessoas desenvolveram, ao não disporem de registo de voz ou de escrita.

As línguas que inicialmente veiculam o ensinamento de Jesus e as fórmulas do anúncio cristão são substituídas (sobretudo a seguir ao Vaticano II) pelas línguas dos povos que acolhem a fé. A missão cristã guia-se pelo princípio da inculturação e da transmissão da fé em termos culturalmente significativos. Além disso, crescemos na consciência de que há uma jerarquia de verdades; isto é, que há que considerá-las como um todo, devidamente ordenado. Enquanto as centrais são enunciadas desde o primeiro anúncio, às outras pode-se aceder num segundo tempo e em modo progressivo.

No nosso tempo e cultura, os discípulos-missionários de Jesus enfrentam agora uma nova dificuldade : a de serem pressionados a conformarem-se às afirmações cultural e politicamente corretas. Mas a justa preocupação por inculturar a fé não pode ceder a esta pressão, nem cair na formulação de meias-verdades que comprometem a identidade do anúncio cristão, confundindo o respeito às pessoas (sempre devido) com a profissão da fé (a fazer-se na integridade). Dou um exemplo. Um bispo dá uma entrevista em que afirma que Jesus não discriminou pessoas nem rejeitou ninguém, referindo esta atitude à situação das pessoas alvo de (eventual) discriminação. Ora, se é verdade que Jesus mostra uma abertura de atitude para com todos, para com as pessoas excluídas na sociedade religiosa do seu tempo, também é verdade que o seu anúncio da soberania de Deus inclui um apelo à metanoia, à transformação e conversão pessoais, feito a todos e que não se pode silenciar (para os estudiosos, este anúncio e apelo são o dado mais indiscutível do movimento de Jesus).

Na recente assembleia sinodal continental, uma reconhecida testemunha do nosso tempo (o P.e Tomáš Halík) fez-nos entender onde nos encontramos, pelo que se refere à afirmação da identidade cristã : até ao Concílio Vaticano II, pusemos o acento na ortodoxia, isto é, na reta doutrina; no pós-concílio, passamos a pôr o acento na ortopraxia, isto é, na reta ação, para transformar a sociedade segundo os valores do Evangelho; neste século XXI, estamos a pôr o acento na ortopatia, isto é, nos retos sentimentos e afetos em relação a pessoas, animais e Natureza.

Isto explica que o Papa Francisco insista na proximidade, nas carícias de Deus para com todas as suas criaturas. O desafio que se nos coloca a nós discípulos-missionários é o de integrar as três dimensões – as ideias, os afetos e as ações – na formulação do anúncio e da identidade cristã, evitando as meias-verdades, que não servem a fecundidade espiritual do anúncio de que somos devedores às pessoas e aos povos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/975/meias-verdades/