sexta-feira, 31 de março de 2023

Dores da humanidade

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


A última semana da Quaresma é a Semana das Dores, referência forte cultivada pela religiosidade popular às sete dores da discípula exemplar, Maria - Mãe de Jesus, o crucificado-ressuscitado. As sete dores de Maria estão narradas na Palavra de Deus e, pode-se afirmar, são também sofrimentos da humanidade. As dores de Maria apontam, assim, para as chagas da civilização contemporânea. Ao mesmo tempo, oferecem caminho para superá-las. Constituem uma espiritualidade com força de recomposição e cura. Itinerário espiritual para se buscar a força necessária à superação das tristes cenas do cotidiano, especialmente aquelas que apontam para a crescente desconsideração da vida humana. Essa desconsideração exige atitude : buscar a superação de todo tipo de mágoa, mal com força de dominação que pode levar o ser humano a sucumbir-se.

A exemplaridade de Maria está expressa no seu olhar de Mãe e Discípula, como bem retrata a arte iconográfica e escultórica : a dor do sofrimento e o mistério da fé, fazendo brotar uma luz de esperança, nascida da certeza inigualável do que é revelado pelo amor de Deus. É impossível curar as dores humanas sem a referência maior deste amor de Deus. Procurar o amor divino é uma necessidade essencial e encontrá-lo é a fonte inesgotável da força maior que sustenta o ser humano. A primeira espada de dor que aflige Maria, referida pela profecia de Simeão - o homem justo, revela a humanidade ferida pelo pecado, causa de sofrimentos e de desdobramentos que impedem a conquista da fraternidade solidária. A consequência é um mundo de disputas que presidem o viver humano, fazendo prevalecer lógicas egoístas, interesseiras e povoadas de indiferentismos.

A desolação crescente da exclusão social, com diferentes tipos de discriminações, é também evidenciada a partir das vítimas de arbitrariedade dos poderosos, que são obrigadas a deixar suas terras. Uma situação retratada na segunda dor de Maria - a fuga da Sagrada Família para o Egito. Essa dor explicita o descaso daqueles que buscam favorecer poucos, sacrificando muitos que são obrigados a renunciar, forçosamente, às próprias raízes, abandonar seus laços culturais, para defender a própria vida. A segunda dor de Maria aponta para o sofrimento dos migrantes, mas também ensina o que significa ser peregrino - aprender a viver sem apegos a bens. Um remédio para superar o egoísmo que multiplica os pobres da terra.

A perda do menino Jesus no templo, a terceira dor de Maria, possibilita encontrar um sentido maior para a própria vida - a vocação de cada um no horizonte do amor de Deus. O Filho Salvador e Redentor da humanidade revela o horizonte largo e sempre desafiador da vontade do Pai. Deus se expressa na obediência de seu Filho Jesus, que caminha para a morte. Esse caminhar de Jesus rumo ao calvário alcança o coração da Mãe, sua quarta dor, revelando a coragem da Discípula exemplar, que se fundamenta na fé, mesmo quando o suplício ultrapassa limites humanos. Maria suporta essa dor a partir de sua confiança incondicional em Deus, Pai de amor. O coração da Mãe dolorosa alcança a compreensão lúcida do sentido da morte de seu Filho, sua quinta dor, nas sombras da tristeza. Essa compreensão lúcida descortina o tempo novo do amor vitorioso sobre todo ódio. O martírio de Cristo, à luz da fé vivida por Maria, não se trata de fracasso, mas de comprovada vitória da vida sobre a morte. A Mãe que teve diante dos seus olhos a morte de seu filho, exemplarmente testemunha a justiça divina, cooperando com a salvação da humanidade.

A dolorosa acolhida do Filho morto nos seus braços de Mãe, golpeado pela maldade, sexta dor de Maria, testemunha a verdade da oferta no altar da cruz. O silêncio profundo do momento derradeiro de todo esse sofrimento se configura no sepultamento de Jesus, fecundado pela certeza da vida que supera a morte, sétima dor de Nossa Senhora. As sete dores de Maria são verdadeira escola, na exemplaridade de seus gestos que expressam a confiança incondicional no amor maior. Revelam dores da humanidade que, no seu reverso, guardam o caminho para a construção de uma sociedade redimida, marcada pela força inigualável do Evangelho, que abre as portas do Reino de Deus. As dores de Maria são também os sofrimentos da humanidade. As lições da Discípula exemplar são escola do amor e da confiança em Deus.’ 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domhelder.edu.br/noticias/pagina/religiao

terça-feira, 28 de março de 2023

O individualismo e o utilitarismo falsificam a democracia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Antonella Palermo


‘O que é democracia e o que fazer para preservá-la? Monsenhor Paul Richard Gallagher, secretário de Relações com os Estados, falou sobre isso na sua lectio magistralis ‘Democracia segundo a sabedoria dos Papas no atual cenário internacional’, como parte da conferência ‘Democracia para o bem comum. Que mundo queremos quer construir?’, organizado pela Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Gregoriana.

Política negativa

‘Infelizmente, hoje parece que o que move a soberania popular, a garantia da liberdade e da igualdade de todos os cidadãos, é a política negativa, a deslegitimação das propostas do outro, sejam elas quais forem, para maximizar os objetivos individuais e o consenso, mas pouco se nota dos esforços em busca da unidade. O individualismo e o utilitarismo parecem ser as únicas respostas às necessidades de felicidade que consolidam estruturas de falsa democracia’. É o que afirma o prelado na lectio que parte de considerar a influência cristã na elaboração da teoria democrática moderna e contemporânea. Recordando como a Charta Caritatis (1119) pode ser considerada o primeiro manifesto para uma convivência civil democrática, Gallagher sublinha que a democracia é precisamente o serviço à unidade sinfónica de um povo, fruto de um compromisso de criar unidade. Ele passa em revista a complexidade do tema citando o cardeal Ratzinger, que falava do direito como expressão do interesse comum, e se inspira nos pensadores alemães Harmut Rosa e Eric Weil.

Onde a sociedade é acelerada, prevalece a política das queixas

Gallagher se pergunta se o fenômeno da mobilidade humana afeta a força do vínculo entre os indivíduos, que se tornam aglomerações de sujeitos estranhos uns aos outros, quando não competitivos e mutuamente hostis. Em particular, ele explica como a aceleração de nossa era cria um curto-circuito para o qual parece que as mudanças não têm uma direção real. Enquanto, ele especifica, o processo democrático é necessariamente multifacetado : garantir que os argumentos de todos sejam canalizados para a representatividade é algo que leva tempo. A consequência é clara, segundo Gallagher : ‘Na política moderna, ainda mais do que no passado, não é a força do melhor argumento que decide as políticas futuras, mas o poder das queixas, dos sentimentos instintivos, das metáforas e das imagens sugestivas’. Ele destaca o que define como uma ‘virada estética na política : políticos e grupos ganham eleições porque são 'legais', não porque têm ideias, programas e teses articuladas’. Nesse contexto, a política não consegue ir além das necessidades econômicas : Gallagher chega a falar do ‘sacrifício de todas as energias políticas e individuais no altar da competição socioeconômica’.

A sabedoria dos Papas

Monsenhor Gallagher faz uma retrospectiva até Leão XII e passa por Pio XII que denunciou : ‘a crise do totalitarismo foi causada por ter separado a doutrina e a prática da convivência social da referência a Deus e por ter pisoteado o caráter sagrado da pessoa humana, centro de imputação da ordem social’. Com este pontífice, declara Gallagher, a doutrina social da Igreja assimilou plenamente a democracia. E as encíclicas sociais posteriores seguirão esse caminho. Recorda ainda, nesse sentido, a contribuição de João XXIII, de João Paulo II chegando a Francisco que, quando era cardeal, em 2011, escrevia sobre a degeneração da política, sobre o esvaziamento da democracia, sobre a crise das elites. Nas posições do futuro papa argentino, percebe-se imediatamente uma ‘vibrante questão ética, um lembrete da responsabilidade de todos, especialmente daqueles que dirigem os governos, para que nos comprometamos a superar uma situação que não é mais aceitável e não é mais sustentável’. Em suma, o Papa Francisco propõe que a democracia seja construída de forma substancial, participativa e social. Ele insistiu na necessidade de não se contentar com uma ‘democracia de baixa intensidade’. A este propósito, Gallagher recorda as célebres intervenções do atual Pontífice na Grécia (2021) onde sublinhou como o remédio para uma revitalização da democracia não passa pela busca obsessiva da popularidade, na sede de visibilidade e na proclamação de promessas impossíveis ou em colonizações ideológicas abstratas, mas reside na boa política como responsabilidade máxima do cidadão e a 'arte do bem comum'. Este é o estilo político verdadeiramente democrático de Francisco que, Gallagher ainda lembra, já especificou ao Parlamento Europeu em 2014.

Democracia : um sistema em evolução de livre discussão

‘A democracia não exclui de forma alguma as oposições políticas, econômicas, sociais, religiosas, ideológicas : pelo contrário, ela prospera nelas’, explica Gallagher que insiste no fato de que não pode haver democracia em uma nação que não esteja unida por valores comuns e que reconhecem alguns objetivos como desejáveis. Entre as perguntas que o prelado faz está esta : ‘uma maioria pode se unir em torno de um programa de extermínio de todos aqueles que se opõem ou se opuseram à vitória do pensamento e da paixão majoritária. Neste caso, ainda estamos em uma democracia?’. O tema crucial é que a democracia não resiste a todas as tensões, a todas as injustiças. Falando da arquitetura da democracia, Gallagher indica três elementos que devem interagir, caso contrário o sistema colapsa : base teórica, estrutura social, estrutura jurídica. Em particular, na lectio foi especificado que ‘o Estado é a estrutura jurídica de toda esta sociedade, mas não a absorve : apenas a dirige, a coordena, a integra e, quando necessário, a substitui’.

Três patologias das democracias modernas

Essas doenças reais são ilustradas : a deterioração ou corrosão produzida pela quebra do elo vital que deve unir consenso e verdade; a degeneração oligárquica e, digamos, lobista da democracia; bem-estar e derivas burocráticas do estado de bem-estar. Segundo Gallagher, a primeira é mais perturbadora e corrosiva, a saber, a relação entre consenso e verdade. Para devolver esta relação à sua correta interpretação, precisamos da convicção de que a regra do consentimento está subordinada a um critério básico de verdade, portanto a um vínculo com a verdade e com ideais profundos e compartilhados. Também é necessária a assimilação prática desta convicção pelas consciências e pela comunidade; enfim, é muito importante a alimentação prática assídua de uma rede de virtudes civis difundida. Em conclusão, sublinha Gallagher, se a boa governação falhasse, os iranidos assumiriam o comando, com a ausência de qualquer regra da vida social : apenas a violência, a destruição de edifícios e campos, os incêndios e a morte reinariam. Referindo-se à Alegoria do Bom Governo, ele glosa indicando as virtudes nas quais se inspirar constantemente : paz, fortaleza, prudência, magnanimidade, temperança ladeadas pelas virtudes teologais. Tudo isso foi bem resumido no discurso do Papa Francisco ao Corpo Diplomático (janeiro de 2023) : ‘construir a paz na verdade significa, antes de tudo, respeitar a pessoa humana’.’ 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-03/gallagher-aula-politica-democracia.html

domingo, 26 de março de 2023

Rasgar o próprio coração

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

Rasgai o coração’ é o grito profético e místico nascido no coração do profeta Joel. Um convite especialmente interpelante para o caminho penitencial do tempo da Quaresma, almejando frutuosa celebração da Páscoa. Compreende-se que a fecundidade da Páscoa - vida nova - tem relação profunda com a efetiva busca por conversão, investimento em um jeito de ser marcado pela misericordiosa compaixão de Deus-Pai, revelada e efetivada na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Filho Redentor e Salvador. O convite do profeta Joel substitui a consolidada tradição de rasgar as vestes, sinal de arrependimento, expressando ainda o reconhecimento sobre as consequências das próprias atitudes, a abominação relacionada às falas e às posturas que estão na contramão do amor maior. Agora, em lugar de rasgar as vestes, deve-se rasgar o próprio coração - referência ao núcleo da consciência e da interioridade humana e, assim, alavancar conduta nova, à altura da dignidade de filhos e filhas de Deus.

Indica o profeta a atitude salutar e renovadora de forrar o coração com o tecido da misericórdia e do compromisso com a fraternidade universal. Trata-se de reforçar sempre mais a convicção de que é preciso - e urgente – hospedar na interioridade princípios e valores que alicercem condutas semeadoras da bondade, da justiça e da verdade. Um apelo que mostra a importância de serem priorizadas atitudes iluminadas pela compaixão, inspirando nova conduta cidadã. A construção do mundo pluralista depende, pois, de um rumo diferente : há de se admitir que os muitos embates e labutas do cotidiano enfraquecem o ser humano, fazendo-o hospedagem de sentimentos que adoecem, ao invés de curar e de vivificar.

O convite à conversão, profunda mudança no jeito de ser e de agir, requer, de cada um, fidelidade a princípios e valores que estão à altura da condição de ser filho e filha de Deus, irmãos e irmãs uns dos outros. Esses princípios e valores fortalecem o compromisso com o bem e a verdade. O profeta Joel na sua interpelante convocação - ‘Rasgai os corações’ - aponta a necessidade de uma conduta que ajude a alicerçar a fraternidade universal. São cada vez mais necessários agentes capazes de construir um tempo novo, para mudar este mundo descompassado, distanciado do bem e da justiça. Todos precisam bem cuidar das próprias motivações, interesses e lógicas, para adequadamente definir escolhas, juízos e os modos de se expressar. O tempo quaresmal oferece singular oportunidade para a qualificação humana. No lugar de vozes e juízos que fazem do mundo uma ‘babel de desentendimentos’, acolha-se o convite para cuidar dos sentimentos e, assim, colaborar com a efetivação da justiça e da paz. Nesse horizonte, trabalhar pela promoção do bem comum.

Reafirma-se, nessa perspectiva, a tarefa missionária de procurar vencer polarizações, superar reações negativas ao compromisso de se promover um mundo fraterno, pois é preciso vencer cenários vergonhosos de exclusão. Esses cenários são grave ofensa a Deus. E ‘rasgar o coração’ é deixar-se iluminar pela lógica do Evangelho de Jesus Cristo, que interpela o ser humano a dar de comer aos famintos. Importa não resistir à iluminação da Palavra de Deus para dissipar as sombras que envolvem o coração humano e os horizontes da humanidade contemporânea. É preciso colocar-se à luz da Palavra que salva, para dar ao coração a competência corajosa e essencial à superação dos muitos desafios deste tempo.

Vale muito, neste caminho do tempo da Quaresma, escutar uma sábia palavra de São João Crisóstomo, uma riqueza nos ensinamentos bimilenares da Igreja Católica. O Santo diz que muitos cristãos saem dos templos e contemplam fileiras de pobres sem se comover, como se vissem colunas e não seres humanos. ‘Apertam o passo’ como se vissem estátuas sem alma em lugar de homens que respiram. E, depois de tamanha desumanidade, se atrevem a levantar as mãos ao céu e pedir a Deus misericórdia e perdão pelos pecados. Compreende-se o alcance e as implicações na acolhida do convite profético de rasgar o próprio coração, qualificando a competência de se investir na construção de uma sociedade justa e fraterna, passaporte para o Reino de Deus.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domhelder.edu.br/noticias/pagina/religiao

quinta-feira, 23 de março de 2023

Os pobres numa Igreja sinodal

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Eugenio Fonseca

presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado


No ano 257, o imperador Valeriano, depois de ter mandado decapitar o Papa Sisto II, intimou a Igreja a entregar, no prazo de três dias, todas as suas riquezas, pois tinha-lhe constado que ela era mais rica que ele. Cumprido o prazo, o diácono Lourenço reuniu todas as pessoas que eram auxiliadas pela Igreja, anotou-lhes os nomes e levou-as ao imperador, gritando a frase que lhe valeu a morte : «Estes são o tesouro da Igreja.»

Está a terminar a fase sinodal do continente europeu. Será que as Igrejas deste Velho Continente podem dizer o que disse o diácono Lourenço ao imperador Valeriano? Com benditas e louváveis excepções protagonizadas por paróquias e congregações religiosas, as Igrejas europeias nunca chegaram a fazer uma sincera «opção preferencial pelos pobres», como o tem vindo a fazer o Magistério da Igreja a partir da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizada em Puebla, México, no ano de 1979 (cf. Sollicitudo Rei Socialis, 42; Conferência Episcopal Portuguesa, Instrução Pastoral – A Acção Social da Igreja, 9; Evangelii Gaudium, 48 e 198).

Como a realidade que melhor conheço é a de Portugal, gostaria muito que se aproveitasse este desafio do Papa Francisco, de caminharmos juntos, para se fazer, efectivamente, esta opção e «alargar o espaço das tendas» (cf. Is 54,2) das paróquias das nossas dioceses aos pobres e aos mais frágeis do nosso país, sabendo que os de hoje são bem diferentes dos de há duas décadas.

Caminhar juntos com os pobres, salvo mais douta opinião, é : i) assumir, com fé, que eles são sacramento de Cristo e têm igual dignidade humana (cf. Mt 25; Centesimus annus, 28c e 58; Fratelli tutti, 141 e 187); ii) constituir grupos paroquiais de pastoral social que sejam expressão organizada da caridade da comunidade cristã com elementos capazes de ir às causas dos problemas das pessoas; iii) integrar alguns pobres nesses grupos; iv) considerar as instituições sociais como agentes subsidiários e nunca substitutivos da caridade organizada da comunidade cristã (cf. Conferência Episcopal Portuguesa, Instrução Pastoral – A Acção Social da Igreja, 9 e 24); v) criar ‘bancos de horas’ que registem o tempo de quem se disponibilize para apoiar novos projectos de vidas de quem ficou sem trabalho; vi) estabelecer parcerias com outras instituições; vii) realizar assembleias paroquiais anuais para conhecimento da realidade socioeconómica da paróquia; viii) promover acções dirigidas aos pobres em espírito que podem ser os que estão privados de bens materiais e os que não têm falta deles, mas os desperdiçam.

Para que a acção caritativa da Igreja seja anúncio de uma boa nova verdadeiramente libertadora (cf. Lc 4, 18), há que investir mais no conhecimento do pensamento social da Igreja.

O Papa Francisco anseia por uma Igreja pobre e para os pobres. Eu acrescento : com os pobres, e que a sinodalidade seja sinónimo de fraternidade. Quando tal acontecer, ela, então, possuirá tesouros que «a traça e a ferrugem não corroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam» (cf. Mt 6, 20).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/919/os-pobres-numa-igreja-sinodal/

segunda-feira, 20 de março de 2023

Dez milhões de crianças correm risco extremo no Sahel Central

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Africa Burkina Faso - Sahel

*Artigo da Vatican News


Segundo um relatório do UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância -, divulgado nesta sexta-feira, 17, dez milhões de crianças em Burkina Faso, Mali e Níger precisam de assistência humanitária, o dobro em relação a 2020, por causa da intensificação do conflito. Enquanto isso, quase 4 milhões de crianças correm risco também nos países vizinhos, devido às hostilidades entre grupos armados e forças de segurança nacional, que ultrapassam as fronteiras.

Marie-Pierre Poirier, diretora regional do UNICEF para a África Ocidental e Central, afirmou : ‘As crianças estão cada vez mais envolvidas em conflitos armados, vítimas de confrontos militares crescentes ou alvos de grupos armados não estatais. O ano 2022 foi um ano particularmente violento para as crianças no Sahel central. Todas as partes em conflito devem interromper, com urgência, os ataques contra crianças, escolas, centros de saúde e casas’.

Em Burkina Faso, segundo dados das Nações Unidas, o número de crianças mortas, nos primeiros nove meses de 2022, triplicou em comparação ao mesmo período de 2021. A maioria das crianças foi vítima de tiroteios, durante os ataques às suas aldeias ou por causa de explosivos improvisados ou de resíduos de explosivos bélicos.

O conflito armado no país tornou-se cada vez mais brutal. Alguns grupos armados, que atuam nas grandes áreas do Mali, Burkina Faso e, sempre mais, do Níger, utilizam táticas como o bloqueio de cidades e aldeias e sabotagem do abastecimento de água. Segundo dados recentes, mais de 20.000 pessoas, na área de fronteira entre Burkina Faso, Mali e Níger, atingirão, até junho de 2023, um nível ‘catastrófico’ de insegurança alimentar.

Grupos armados, contrários à instrução imposta pelo Estado, queimam e saqueiam sistematicamente as escolas, além de ameaçar, sequestrar ou matar os professores. Mais de 8.300 escolas foram fechadas nos três países, por serem alvos diretos, porque os professores fugiram ou os pais escaparam por medo de mandar seus filhos à escola. Em cada cinco escolas, em Burkina Faso, mais de uma foi fechada, sem contar que 30% das escolas na região de Tillaberi, na Nigéria, não funcionam mais devido ao conflito.

As hostilidades no Sahel Central estão se alastrando para as regiões fronteiriças do norte de Benin, Costa do Marfim, Gana e Togo : comunidades remotas, com infraestruturas e recursos precários, onde as crianças têm acesso, extremamente limitado, aos serviços essenciais e à proteção.

Em 2022, pelo menos 172 episódios violentos, inclusive ataques de grupos armados, foram assinalados nas áreas fronteiriças dos quatro países. No Benin, o mais atingido, cerca de até 15% da população corre risco, segundo fontes de uma rede regional de monitoramento. No Benin e Togo, foram fechadas nove escolas nas regiões do norte dos países ou não funcionam mais devido à insegurança no final de 2022.

Esta crise verifica-se em uma das regiões mais afetadas pelas causas climáticas do planeta. As temperaturas no Sahel estão aumentando 1,5% mais rápido que a média global. As chuvas, irregulares e fortes, causam inundações, diminuem as colheitas e contaminam os escassos recursos hídricos. Em 2022, as piores inundações dos últimos anos prejudicaram ou destruíram 38.000 casas dos habitantes no Níger, um país que ocupa o 7º lugar, em nível global, no índice de risco climático para as crianças do UNICEF.

A crise no Sahel Central continua crônica e criticamente pouco financiada : em 2022, o UNICEF recebeu apenas um terço dos 391 milhões de dólares que pediu para o Sahel Central. Para este ano corrente, o UNICEF fez um pedido de 473,8 milhões de dólares para ajudar na sua ação humanitária no Sahel Central e nos países costeiros vizinhos.

Marie-Pierre Poirier, diretora regional do UNICEF para a África Ocidental e Central, conclui suas declarações, dizendo : ‘A realidade da crise no Sahel Central e nos países costeiros, cada vez mais próximos, precisa, com urgência, uma resposta humanitária mais incisiva e investimentos flexíveis, em longo prazo, em serviços sociais essenciais e flexíveis, para ajudar a consolidar a coesão social, o desenvolvimento sustentável e um futuro melhor para as crianças’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2023-03/dez-milhoes-criancas-correm-risco-extremo-sahel-central.html

sábado, 18 de março de 2023

Trabalho escravo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Cardeal Dom Sergio da Rocha,

Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil


‘Numa época de grandes avanços científicos e tecnológicos, marcada pelo risco de alguém se tornar ‘escravo do trabalho’, perdura tristemente o trabalho escravo. Notícias a respeito têm sido veiculadas pela mídia, nem sempre recebendo a devida atenção, indignação e resposta efetiva. As vítimas têm o seu clamor sufocado, o que leva as novas formas de escravidão a se perpetuarem e a se agravarem. Dentre elas, estão migrantes provenientes das áreas mais pobres do país e pessoas que sofrem com a miséria e a fome. Notícias recentes sobre a exploração de trabalhadores provenientes do Nordeste, principalmente da Bahia, têm favorecido algum conhecimento e reflexão sobre esta dura realidade. O caso veio a público com particular intensidade, gerando reações de indignação, mas certamente muitas outras situações ocorrem sem conhecimento público, nem a necessária resposta,

 A capacidade humana de indignar-se perante esta forma de violação da vida e da dignidade das pessoas ainda se manifesta, trazendo esperança. Contudo, a comoção provocada pelo noticiário e pelas redes sociais não é suficiente. É preciso a ação decidida e permanente de autoridades e órgãos públicos, a mobilização da sociedade civil organizada, a participação de igrejas, universidades, meios de comunicação social e organizações de defesa dos direitos humanos. Iniciativas em andamento, como a Rede Um Grito pela Vida, de combate ao tráfico de pessoas, necessitam ser valorizadas e difundidas.

Além das ações de combate ao trabalho escravo, é preciso investir na sua prevenção. Para tanto, é preciso aprofundar a questão das suas causas para prevenir o surgimento de novos casos.  Há fatores, como a migração forçada em busca de sobrevivência ou melhores condições de vida, que tornam os trabalhadores presas fáceis de trabalho escravo. A miséria e a fome criam um terreno fértil para submeter a condições de escravidão, trabalhadores, migrantes, mulheres e crianças. É preciso combater as causas e não apenas os casos particulares. Além disso, são sempre muito necessárias campanhas veiculando informações e alertas para a população a fim de evitar que as pessoas se tornem vítimas de pessoas ou grupos inescrupulosos que se aproveitam da sua vulnerabilidade social. Sinais de esperança se descortinam no horizonte, como iniciativas de solidariedade e de justiça, ações de superação da miséria e da fome e projetos socioeducativos. Mas, é árduo e longo o caminho a percorrer para eliminar o trabalho escravo.  A complexidade e a gravidade da realidade social não devem ser motivo para a paralisia e o desânimo. É preciso dizer ‘não’ ao trabalho escravo e à escravidão de qualquer natureza, que não condiz com a dignidade da pessoa, ‘imagem e semelhança’ de Deus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-03/cardeal-sergio-rocha-trabalho-escravo.html

terça-feira, 14 de março de 2023

Compromisso Quaresmal

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

‘O caminho da Quaresma há de ser sempre compreendido como delicadeza de Deus ofertada a todos, experimentada pela beleza encantadora da Liturgia da Igreja. São luzes brilhantes que se acendem pela escuta da Palavra : a Palavra de Deus ilumina e alcança as profundezas ensombradas do coração humano, distanciadas do Criador. O caminho de conversão é o retorno a um amor maior perdido e substituído por práticas que desfiguram a condição humana na sua semelhança com Deus. Percorrer esse caminho, com abertura à ação da graça redentora, é acolher o desafio de iluminar a realidade humana e social despertando o compromisso de ajudar na construção de um mundo melhor, mais justo, fraterno e solidário.

A medida certa da nova condição espiritual e humanística que se consegue alcançar pelas práticas quaresmais projeta luzes na realidade, inquietando a cidadania do Reino, que deve estar em sinergia com o adequado exercício da cidadania civil. Por isso mesmo, a Igreja Católica convida todos para se deixarem encharcar pelas interpelações espirituais que são base de um humanismo integral. Neste tempo da Quaresma, esse convite é oferecido a cada um a partir da Campanha da Fraternidade 2023 - Fraternidade e fome. A profundidade da interpelação espiritual impulsiona a conduta cidadã ao compromisso de ouvir os clamores dos sofredores. Comprometer-se com a promoção do bem maior que está ao alcance de todos. Assim, enxergar com lucidez os problemas sociais é consequência e comprovação de um fecundo processo de conversão, que ultrapassa uma simples conquista pessoal, individual.

A Quaresma tem como finalidade não somente a expiação, mas também a tarefa discipular de alargar o próprio coração - fazer dele lugar da alegria experimentada no amor verdadeiro. Esse amor verdadeiro, quando reveste o coração humano, lhe confere força. Impulsiona-o para testemunhar o Evangelho com autenticidade, dedicando-se à construção de um mundo melhor, enquanto se caminha para o Reino definitivo. A alegria que fortalece o coração brota do dom da misericórdia, recebido quando o ser humano se dedica à promoção da justiça e da fraternidade universal. A misericórdia fecunda uma santa indignação diante das injustiças e afrontas à sacralidade da dignidade humana. Existe, pois, uma conexão forte entre a dimensão misericordiosa do coração humano e o compromisso com o bem de toda a sociedade. Trata-se de uma iluminação que permite enxergar os descompassos da realidade e, por amor, sincero, verdadeiro, engajar-se na superação de muitos problemas.

O horizonte sólido e inspirador do caminho quaresmal é intocável. Sua luz forte permite alcançar o peso da realidade que se impõe, especialmente, aos pobres. Enxergar com clareza a situação dos pobres, pelos olhos da fé, com o coração encharcado de compaixão, faz nascer o compromisso quaresmal de compartilhar o necessário pelo bem de quem carrega fardos pesados. Muitos são os fardos pesados esmagando irmãos e irmãs, a exemplo do drama da fome e da insegurança alimentar. Tomar a luz brilhante do caminho quaresmal para iluminar descompassos sociais é enxergar a dureza da realidade com as singularidades da fé, alavancando a conversão. Não cabe, pois, o equivocado entendimento que aponta haver contradição entre o insubstituível horizonte do caminho quaresmal e o apelo para que, pela ótica quaresmal, se consiga reconhecer descompassos da realidade, como o drama da fome.

A promoção da Campanha da Fraternidade - neste ano com o tema Fraternidade e fome - não é uma proposta de substituição à vivência da Quaresma. Do tempo quaresmal, luz divina que se configura como convite à conversão, se arquiteta a iluminação para uma completa visão da realidade, pela ótica da compaixão. Essa visão convoca a um compromisso social fecundado pela fé. Duas passagens bíblicas são iluminadoras e têm força para diluir qualquer tipo de dúvida a respeito da íntima relação existente entre a fé autêntica e a solidariedade. Jesus, na sua maestria, apresenta o samaritano que agiu com extrema misericórdia na acolhida e tratamento daquele que tinha sido vítima de assalto. O Mestre compara a exemplaridade inspiradora do samaritano com a lamentável indiferença do sacerdote e do levita, que passaram adiante sem se compadecerem. Ainda nos seus preciosos ensinamentos sobre a misericórdia, o Mestre e Senhor afirma : ‘Tudo o que for feito ao menor dos irmãos é a mim que se está fazendo’.

Reconheça-se, pois, o desafio de se compreender que o compromisso cidadão de superar a miséria e a fome envolve os discípulos e discípulas de Jesus, uma exigência da fé autenticamente vivida. O selo de autenticidade da fé cristã amalgama a compreensão da realidade social na sua dureza e peso. E quem compreende a realidade, é interpelado a agir, um compromisso quaresmal, fruto de conversão. Não se pode cair no equívoco de opor Quaresma e Campanha da Fraternidade. A luz e a força da fé têm propriedades para promover a experiência da autêntica conversão, atuando pelo bem maior como compromisso quaresmal. A fé cristã permite ver o invisível - por graça de Deus - e permite adequadamente enxergar a realidade : reconhecer seus descompassos, inspirando a superação de equívocos. A realidade precisa ser tocada pelo sabor do Evangelho de Jesus Cristo. Pautar-se por preconceitos ou desconhecer a realidade sofrida de quem não tem o que comer, julgando equivocadamente a relação entre fé e compromisso social, é impedir o florescer de respostas possíveis de serem encontradas no horizonte da delicadeza de Deus, o tempo quaresmal.’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domhelder.edu.br/noticias/pagina/religiao

segunda-feira, 13 de março de 2023

5 lições do compromisso do Papa Francisco com o diálogo muçulmano-católico

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

 O Papa Francisco aperta a mão do Sheik Ahmad el-Tayeb, grande imã da mesquita e universidade al-Azhar do Egito, depois de assinar em uma reunião inter-religiosa no Memorial do Fundador em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos, em 4 de fevereiro de 2019. O pap | foto do CNS/Paul Haring

*Artigo de Jordan Denari Duffner

Tradução : Ramón Lara


‘Em seus primeiros dias como chefe da Igreja Católica, disse o Papa Francisco, ‘não é possível estabelecer vínculos verdadeiros com Deus ignorando as outras pessoas. Por isso é importante intensificar o diálogo entre as várias religiões, e penso particularmente no diálogo com o Islã’.

O Papa mais do que cumpriu o objetivo inicial que estabeleceu para si mesmo – o envolvimento com os muçulmanos tornou-se uma das marcas de seu papado. Na última década, o Papa fez dezenas de visitas a comunidades muçulmanas e países de maioria muçulmana. Ele forjou laços com líderes e crentes comuns e repetidamente chamou a atenção para a presença de Deus nas experiências dos muçulmanos e em muitas das riquezas de sua tradição de fé.

De seus muitos gestos, declarações, viagens e, mais significativamente, seus encontros pessoais com os muçulmanos, algumas lições profundas emergem. Aqui estão apenas cinco :

1. Adorando juntos ‘o Deus Único e Misericordioso’

Pisando em um pequeno tapete de oração vermelho com os pés calçados com meias, o Papa Francisco cruzou as mãos e baixou a cabeça. Ele estava visitando uma mesquita na República Centro-Africana devastada pela guerra em 2015 e queria reservar um momento para rezar em silêncio. No ano anterior, em uma visita à famosa Mesquita Azul em Istambul, na Turquia, o Papa pediu ao Grande Mufti da cidade que orasse por ele. E em uma viagem posterior a Bangladesh, em uma reunião inter-religiosa, o Papa Francisco pediu a um indivíduo muçulmano – um refugiado rohingya de Mianmar – que fizesse uma oração em nome do grupo. Mais tarde, o Papa disse que o encontro o levou às lágrimas.

Em cada um desses momentos de oração, o Papa Francisco pôs em prática o ensinamento da Igreja – afirmado no Concílio Vaticano II e ecoado no Catecismo – de que os muçulmanos ‘junto conosco, adorem o Deus Único e Misericordioso’. Embora certamente existam diferenças doutrinárias entre o que cristãos e muçulmanos professam sobre Deus, isso não nos impede de reconhecer as semelhanças que temos ou de nos reunirmos (junto com judeus e até mesmo outros) para louvar e suplicar ao nosso Deus comum. Tendo feito da misericórdia de Deus um tema importante de seu papado, Francisco intencionalmente chamou a atenção para o fato de que, para os muçulmanos, a misericórdia também é um dos atributos mais importantes de Deus.

Francisco não é o primeiro Papa a fazer declarações ou tomar ações como essas – São João Paulo II e Bento XVI também rezaram publicamente com os muçulmanos em diferentes funções. Ao fazê-lo, todos sinalizam que as orações dos muçulmanos a Deus são válidas e dirigidas ao mesmo Deus misericordioso a quem os católicos também se esforçam para servir.

2. ‘Fazendo teologia juntos’ : reconhecendo a sabedoria do outro

No final de sua encíclica ‘Laudato Si’’, o Papa Francisco escreveu sobre a importância de desenvolver uma imaginação ‘sacramental’ – de ver Deus na natureza e em nossos semelhantes. Ao afirmar isso, a primeira fonte que o papa cita não é um místico cristão, mas um muçulmano. Na nota de rodapé associada, Francisco aponta para Ali al-Khawas, um poeta muçulmano que escreveu no século 16 sobre a percepção de Deus quando ‘o vento sopra, … os suspiros dos enfermos, os gemidos dos aflitos’. Embora a nota de rodapé esteja enterrada em um longo documento, sua inclusão na encíclica é inovadora; esta foi a primeira vez na história da Igreja Católica que um texto religioso não cristão foi citado em um documento oficial de ensino.

Os muçulmanos também foram fundamentais na encíclica de Francisco de 2020, ‘Fratelli Tutti’, centrada no tema da fraternidade humana. Francisco escreve que foi ‘estimulado’ a escrever a encíclica por sua amizade com o Grande Imam Ahmed al-Tayeb, chefe da Al-Azhar, uma conhecida universidade islâmica sunita e mesquita no Egito. O colega do Imam al-Tayeb, Mohamed Mahmoud Abdel Salem, participou da divulgação formal da encíclica ao público. Como o correspondente do Vaticano nos Estados Unidos, Gerard O'Connell, apontou, não havia precedentes para um muçulmano inspirar uma encíclica e para um muçulmano participar de apresentá-la ao mundo.

Ambas as encíclicas mostram como Francisco - e, na verdade, toda a Igreja Católica—foi moldada positivamente pelos muçulmanos e pela sabedoria expressa por meio de sua tradição de fé. Eles também demonstram que as fronteiras entre nossas comunidades religiosas são mais porosas do que costumamos imaginar. A história da Igreja Católica – incluindo seu ensino formal – foi moldada pela ativa participação muçulmana.

Em um movimento anterior sem paralelo, o Papa Francisco trabalhou com o Imam al-Tayeb para ser coautor do Documento de 2019 sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e a Convivência. Neste documento original, o Papa e o imã se basearam em suas muitas convicções teológicas e morais compartilhadas para pedir ações concretas que promovam a justiça, a paz e o florescimento humano no mundo. Embora mantendo suas próprias convicções religiosas, os dois líderes redigiram o documento como amigos e iguais; como disse o cardeal Michael L. Fitzgerald, M. Afr., um líder nas relações católico-muçulmanas, ‘eles estavam fazendo teologia juntos’.

3. Sentar-se com os ‘santos da porta ao lado’ ou ao redor do mundo

Durante sua viagem ao Iraque em 2021, o Papa Francisco visitou outro grande líder muçulmano, desta vez do ramo xiita do Islã. O Grande Aiatolá ‘Ali al-Sistani é um líder globalmente reverenciado, mas apesar de seu alto perfil, ele vive em uma casa modesta. Assim como o Papa Francisco, o idoso é conhecido por sua humildade.

Há poucos detalhes sobre o tempo que o Papa passou com al-Sistani, mas Francisco disse depois que ‘este encontro fez bem à minha alma. Ele é uma luz. Esses sábios estão em toda parte porque a sabedoria de Deus foi espalhada por todo o mundo’. Francisco passou a enquadrar al-Sistani como um ‘santo de todos os dias’, um dos ‘santos da porta ao lado’, pessoas que vivem seus valores com coerência.

Para Francisco, os encontros inter-religiosos não são, em última análise, grandes ideias teológicas, mas sim os indivíduos humanos reais que encontramos. Esteja se reunindo com grandes líderes ou pessoas comuns, ele traz o mesmo nível de atenção e cuidado, ciente de que cada pessoa é santa e amada por Deus além da medida.

Essa mesma visão inspirou Francisco a fazer uma visita improvisada a uma família muçulmana que mora em um conjunto habitacional em Milão, na Itália, em 2017. Enquanto compartilhavam doces e nozes, as crianças ofereceram ao papa desenhos coloridos e o pai, Mihoual, mostrou-lhe peças da arte islâmica. Posteriormente, Mihoual disse que a presença de Francisco era como ‘ter um amigo em casa’.

Para Francisco, o diálogo inter-religioso é fundamentalmente sobre ‘compartilhar nossas alegrias e tristezas’ com o outro. Não precisa haver nenhum objetivo maior; estar verdadeiramente presente e atento ao fato de que um indivíduo é criado à imagem de Deus é tudo o que é necessário.

4. ‘O outro pode ser você’ : defendendo a dignidade de todos

Ajoelhado sobre uma bacia, o Papa Francisco derramou água fria sobre os pés de um homem e os enxugou com uma toalha branca. Estava cumprindo um ritual da Semana Santa que geralmente é reservado aos católicos, mas optou por incluir pessoas de outras religiões, incluindo os muçulmanos, como um gesto de solidariedade universal. Para Francisco, o diálogo se traduz em atos de serviço.

Durante uma década marcada pela migração em massa de (e demonização de) refugiados, muitos dos quais são muçulmanos, Francisco tem a intenção de encontrá-los em seu sofrimento. Sua primeira viagem internacional como Papa foi para a ilha mediterrânea de Lampedusa, onde muitos refugiados desembarcaram após angustiantes viagens pelo mar. O compromisso de Francisco com o bem-estar dos refugiados vai além de gestos e palavras. Em 2016, ajudou pessoalmente a reassentar três famílias sírias refugiadas muçulmanas na Cidade do Vaticano.

Quando se trata de condenar o fanatismo religioso e a perseguição, o Papa Francisco exibe uma consistência moral que é rara entre os líderes mundiais. Assim como defende os cristãos que enfrentam perseguição, também defende os muçulmanos diante da islamofobia. Sua postura de princípios envia uma mensagem importante para muitos cantos da Igreja, particularmente nos Estados Unidos, onde a preocupação com a perseguição aos cristãos é frequentemente priorizada, enquanto a perseguição aos muçulmanos – tanto em casa quanto no exterior – é frequentemente ignorada.

5. ‘Não é justo e não é verdade’ : Resistindo a estereótipos

O Papa Francisco pediu repetidamente aos países ocidentais que deixem de lado o bode expiatório anti-muçulmano e o nativismo, e muitos de seus comentários públicos têm sido um corretivo útil para o discurso global dominante sobre o Islã.

Por exemplo, em uma coletiva de imprensa em 2016, Francisco exortou seu público a resistir à tendência de reduzir as causas da violência cometida pelos muçulmanos à religião. ‘Não é justo identificar o Islã com violência. Não é justo e não é verdade’, disse, apontando que quando pessoas de outras religiões (incluindo cristãos) cometem violência, isso não é tipicamente atribuído à sua identidade religiosa. Embora reconheça que alguns grupos marginais, como o Estado Islâmico, reivindicam um pedigree islâmico, ele chamou a atenção para o que vê como causas mais profundas da chamada violência islâmica, incluindo a perda de identidade entre os jovens e, como disse em uma homilia da Quinta-feira Santa, o comércio de armas e os que se beneficiam financeiramente com os conflitos. Talvez sem surpresa, muitos católicos resistiram ou recuaram contra a abordagem sutil do Papa.

Ainda assim, o Papa Francisco às vezes caiu em algumas falácias comuns e tropos estereotipados ao discutir o Islã, que contradizem suas melhores intenções. Por exemplo, em vários pontos pediu publicamente aos líderes muçulmanos que condenassem a violência cometida por seus companheiros muçulmanos. Essas ligações podem contribuir para a percepção errônea de que os muçulmanos ainda não estão condenando o terrorismo – quando, na verdade, estão.

A atenção especial de Francisco ao diálogo com os muçulmanos é uma consequência natural de seu compromisso mais amplo de encontrar todas as pessoas, especialmente aquelas que são mais marginalizadas. Tanto em seus sucessos quanto em seus erros, Francisco nos oferece lições não apenas sobre como melhorar nosso relacionamento com os muçulmanos, mas com todos aqueles que podemos encontrar.' 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domhelder.edu.br/noticias/pagina/religiao

sábado, 11 de março de 2023

Quaresma: itinerário pascal

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE


O batismo é o primeiro passo da iniciação à vida crista. O batismo é também o nascimento para a vida cristã. Mediante o batismo, homens e mulheres, por serem criaturas humanas, são consagrados como filhos e filhas de Deus, tornando-se templos do Espírito Santo, assim como assegura o apóstolo Paulo : ‘Pela graça do batismo, que possamos chegar ao estado de homem perfeito à estatura da maturidade de Cristo’ (Ef 4, 13). Animados, evidentemente, pela Palavra de Deus, lâmpada para nossos passos e luz para nossas estradas da vida (cf. Sl 15), neste tempo da Quaresma, a Igreja de Deus não para, prosseguindo sua caminhada, na promessa de Jesus de Nazaré, a de um mundo reconciliado, pacificado e transfigurado em Deus.

O mistério da cruz de Cristo é enorme e ensina-nos que a salvação é definitiva, que temos que nos afastar do relativo e abraçar o absoluto. Também nos ensina que temos que nos convencer sempre mais de que o sonho de Deus, que é paz, justiça, concórdia e solidariedade, é tarefa de todos. Que a vida se constitui no viver bem neste mundo, na lógica do projeto de Deus, que quer dizer que devemos andar na direção do Reino de amor, inaugurado por Jesus de Nazaré, ensinando-nos a deixar para trás sua realidade contraditória, agora direcionada para um cenário sagrado e beatífico, longe de choro, tristeza, enfermidade e morte; enfim, será a paz, o novo céu e a nova terra, na sua Páscoa definitiva.

Como é importante perceber e acolher, neste itinerário pascal, como incógnita vasto e profusamente dilatado, a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, numa abrangência a conduzir ao mistério contemplação, mas como sinal do amor maior, imprimindo na mente e no coração das pessoas o olhar solidário de Jesus de Nazaré, sem que nunca se esqueça dos pontos cruciais da Mãe Terra, onde residem criaturas humanas em situação infra-humana ou em estado de rejeição ou abandono.

Que o Cristo exaltado da cruz seja memória clara, e que não paire dúvida sobre a redenção do gênero humano, sensibilizando-nos a proclamar bem alto e até mesmo gritar o Evangelho de Jesus com a própria vida, na assertiva do bem-aventurado Charles de Foucauld : ‘Tão logo que acreditei existir um Deus, compreendi que só podia fazer uma única coisa : viver só para Ele’. Assim seja!’

Fonte : *Artigo na íntegra

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quinta-feira, 9 de março de 2023

Dom Walmor: A terceira vez

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


É a terceira vez que a Igreja Católica no Brasil, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), promove a Campanha da Fraternidade dedicando-se, de modo pertinente e profético, ao tema da fome : ‘Fraternidade e Fome’. A primeira vez foi em 1975, a segunda, em 1985. Essa recorrência na promoção missionária e evangelizadora da Campanha da Fraternidade, a partir do tema da fome, guarda elementos interpelantes à cidadania civil e à cidadania do Reino, aos discípulos e discípulas do Mestre Jesus. O Brasil voltou ao mapa da fome, apesar de ser reconhecidamente um ‘celeiro’ do mundo. Muitos brasileiros sofrem por não ter o que comer - há um Brasil que sente fome. Trata-se de problema político e social, como também uma interpelação aos que creem em Cristo, o Salvador e Redentor : ‘Dai-lhe vós mesmos de comer’, disse Jesus aos seus discípulos, diante do sofrimento de uma multidão que estava faminta.

A Campanha da Fraternidade, pela terceira vez, enfrenta o flagelo da fome. Há 48 anos, quando a Igreja no Brasil convocou uma Campanha da Fraternidade sobre a fome pela primeira vez, uma multidão dos adultos de hoje, em cargos importantes na sociedade, eram crianças, ou nem tinham nascido. Tristemente, quase meio século depois, o flagelo da fome de muitos brasileiros não foi superado. Comprova-se que não bastam as indispensáveis estratégias lógicas da tecnologia e da ciência. É preciso ir além, buscando a iluminação que vem da fé, com sua lógica essencial à qualificação da humanidade. A fé é capaz de alicerçar um horizonte inspirador na sociedade brasileira. A fome é um dos mais graves flagelos que ameaçam o ser humano, humilhando a todos. Exige o alcance de soluções com rapidez, pois leva a mortes, a sequelas que serão carregadas pelo resto da vida, considerando especialmente a fragilidade das crianças, dos enfermos e dos idosos. Por isso mesmo, o Papa Francisco afirma, profeticamente, na sua mensagem dedicada à Campanha da Fraternidade 2023, que a fome é um crime - o alimento é um direito.

A Igreja Católica, servidora da humanidade, na promoção e defesa da vida, de modo obediente ao seu único Senhor e Pastor, Jesus Cristo, convoca fiéis, homens e mulheres de boa vontade, a enfrentarem a fome : ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’. No caminho percorrido e celebrado durante a Quaresma, a liturgia da Igreja ecoa o compromisso de conversão dos cidadãos do Reino de Deus. Essa conversão é testemunhada quando se busca efetivar uma nova organização social e política capaz de superar, urgentemente, o sofrimento de quem não tem o que comer. A fome de Deus, a ser permanentemente saciada pela proclamação e escuta da Palavra de Deus, deve fecundar o exercício cidadão de se buscar vencer a carência alimentar de muitas famílias. Assim, os cidadãos devem trabalhar na superação da fome, exigindo também do poder público um tratamento adequado para combatê-la.

A busca pela conversão não dispensa o compromisso com ações efetivas para promover o direito de todos à alimentação. Afrontar o problema da fome encontrando soluções urgentes é vivência fecunda deste tempo da Quaresma, em preparação para frutuosamente celebrar a Páscoa. Assim, não se deve apenas esperar soluções de instâncias governamentais. A sociedade, de um modo geral, deve investir em novo estilo de vida, mais solidário com o próximo e com a casa comum, na perspectiva da ecologia integral. Essa perspectiva da corresponsabilidade leva a reconhecer que a fome não é problema somente de quem padece por não ter o que comer. Todos, compreendendo os ensinamentos de Jesus, devem buscar soluções criativas, evidentemente reconhecendo as responsabilidades de governantes e líderes da sociedade.

A gravidade do problema da fome, reiteradamente apontada pela Campanha da Fraternidade, é mal que precisa ser erradicado ‘pela raiz’. Isto significa investir sempre, e cada vez mais, na solidariedade, partilhando as dores do próximo, que é irmão e irmã. A Doutrina Social da Igreja Católica ensina, sublinhando ser questão de honra e fidelidade ao Evangelho de Jesus, sobre o sentido da destinação universal dos bens da Criação : deve favorecer a todos, ser garantido como direito. Essa lição da Doutrina Social da Igreja Católica permite contestar modelos econômicos excludentes e perversos, que precisam ser urgentemente substituídos, sob pena de um colapso geral - já há sinais muito evidentes de diferentes colapsos na vida da humanidade.

Neste momento, o apelo é à compreensão do desafiador flagelo da fome. Por se saber que tem gente passando fome no Brasil, ‘cai por terra’ qualquer crítica aos propósitos da Campanha da Fraternidade 2023. Eventuais críticas à Campanha apenas escancaram o rosto dos indiferentes, distanciados da autenticidade da fé. São atitudes que apenas indicam a importância daqueles que, efetivamente, se dedicam à construção de um novo tempo, enquanto estão na peregrinação para o Reino definitivo. Importante lembrar : entrarão no Reino definitivo os que obedecem ao Senhor da vida, escutando, compassivamente, a sua interpelação : ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’. Seja, pois, acolhida, pela terceira vez, a convocação da Campanha da Fraternidade, reconhecendo a presença de Jesus em cada pessoa que sofre com a fome, na atenta escuta de Sua Palavra – ‘Tive fome e me destes de comer’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domhelder.edu.br/noticias/pagina/religiao