Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
Presidente
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
‘‘Rasgai o
coração’ é o grito profético e místico nascido no coração do profeta
Joel. Um convite especialmente interpelante para o caminho penitencial do tempo
da Quaresma, almejando frutuosa celebração da Páscoa. Compreende-se que a
fecundidade da Páscoa - vida nova - tem relação profunda com a efetiva busca
por conversão, investimento em um jeito de ser marcado pela misericordiosa
compaixão de Deus-Pai, revelada e efetivada na paixão, morte e ressurreição de
Jesus Cristo, o Filho Redentor e Salvador. O convite do profeta Joel substitui
a consolidada tradição de rasgar as vestes, sinal de arrependimento,
expressando ainda o reconhecimento sobre as consequências das próprias
atitudes, a abominação relacionada às falas e às posturas que estão na
contramão do amor maior. Agora, em lugar de rasgar as vestes, deve-se rasgar o
próprio coração - referência ao núcleo da consciência e da interioridade humana
e, assim, alavancar conduta nova, à altura da dignidade de filhos e filhas de
Deus.
Indica o profeta a
atitude salutar e renovadora de forrar o coração com o tecido da misericórdia e
do compromisso com a fraternidade universal. Trata-se de reforçar sempre mais a
convicção de que é preciso - e urgente – hospedar na interioridade princípios e
valores que alicercem condutas semeadoras da bondade, da justiça e da verdade.
Um apelo que mostra a importância de serem priorizadas atitudes iluminadas pela
compaixão, inspirando nova conduta cidadã. A construção do mundo pluralista
depende, pois, de um rumo diferente : há de se admitir que os muitos embates e
labutas do cotidiano enfraquecem o ser humano, fazendo-o hospedagem de
sentimentos que adoecem, ao invés de curar e de vivificar.
O convite à
conversão, profunda mudança no jeito de ser e de agir, requer, de cada um,
fidelidade a princípios e valores que estão à altura da condição de ser filho e
filha de Deus, irmãos e irmãs uns dos outros. Esses princípios e valores
fortalecem o compromisso com o bem e a verdade. O profeta Joel na sua
interpelante convocação - ‘Rasgai os corações’ - aponta a necessidade de uma
conduta que ajude a alicerçar a fraternidade universal. São cada vez mais
necessários agentes capazes de construir um tempo novo, para mudar este mundo
descompassado, distanciado do bem e da justiça. Todos precisam bem cuidar das
próprias motivações, interesses e lógicas, para adequadamente definir escolhas,
juízos e os modos de se expressar. O tempo quaresmal oferece singular
oportunidade para a qualificação humana. No lugar de vozes e juízos que fazem
do mundo uma ‘babel de desentendimentos’, acolha-se o convite para cuidar dos
sentimentos e, assim, colaborar com a efetivação da justiça e da paz. Nesse
horizonte, trabalhar pela promoção do bem comum.
Reafirma-se, nessa
perspectiva, a tarefa missionária de procurar vencer polarizações, superar
reações negativas ao compromisso de se promover um mundo fraterno, pois é
preciso vencer cenários vergonhosos de exclusão. Esses cenários são grave
ofensa a Deus. E ‘rasgar o coração’ é deixar-se iluminar pela lógica do
Evangelho de Jesus Cristo, que interpela o ser humano a dar de comer aos
famintos. Importa não resistir à iluminação da Palavra de Deus para dissipar as
sombras que envolvem o coração humano e os horizontes da humanidade
contemporânea. É preciso colocar-se à luz da Palavra que salva, para dar ao
coração a competência corajosa e essencial à superação dos muitos desafios
deste tempo.
Vale muito, neste
caminho do tempo da Quaresma, escutar uma sábia palavra de São João Crisóstomo,
uma riqueza nos ensinamentos bimilenares da Igreja Católica. O Santo diz que
muitos cristãos saem dos templos e contemplam fileiras de pobres sem se
comover, como se vissem colunas e não seres humanos. ‘Apertam o passo’ como se
vissem estátuas sem alma em lugar de homens que respiram. E, depois de tamanha
desumanidade, se atrevem a levantar as mãos ao céu e pedir a Deus misericórdia
e perdão pelos pecados. Compreende-se o alcance e as implicações na acolhida do
convite profético de rasgar o próprio coração, qualificando a competência de se
investir na construção de uma sociedade justa e fraterna, passaporte para o
Reino de Deus.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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