Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
Presidente
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
‘A
Liturgia da Igreja Católica oferece à humanidade, como interpelação e
convocação, a vivência da Quaresma, com o grande apelo nascido do coração de
Jesus : ‘Convertei-vos e crede no Evangelho’. As comunidades de fé, em rede,
ainda mais intensamente, se tornam escolas de espiritualidade comprometidas com
a vida, dom sagrado e inviolável. São quarenta dias para investir,
qualificadamente, no despertar da consciência de cidadãos e de cristãos, à luz
do Evangelho de Jesus Cristo. No ciclo do Ano Litúrgico, a Quaresma possibilita
a experiência de reformar o tecido do próprio coração, revestindo-o do mais
alto e nobre sentido da misericórdia de Deus. Leva à melhor compreensão sobre o
mistério da paixão e morte do Senhor Jesus no horizonte pascal, pela certeza da
vitória da vida sobre a morte, do amor sobre todo ódio. O apelo do Mestre pela
conversão de todos deve ecoar na interioridade de cada pessoa, para que a
humanidade seja capaz de alcançar novas respostas, essenciais à superação de
sentimentos que estão na contramão da fraternidade universal e da
solidariedade.
A
fraternidade universal e a solidariedade são urgentes para fecundar direitos
humanos e resgatar a civilização contemporânea de lógicas perversas, a exemplo
daquela imposta pelo mercado - frio e calculista - e superar sentimentos que
manipulam perigosamente o coração, como preconceitos e a busca por vingança.
Não há discipulado sem conversão diária, profunda, pela aprendizagem de
dinâmicas ensinadas e celebradas durante o tempo quaresmal. O apelo de Jesus, ‘Convertei-vos
e crede no Evangelho’, exige, de cada um, o gesto humilde de aceitar os limites
humanos. Trata-se de passo essencial no caminho rumo à purificação, para vencer
sentimentos que alimentam disputas, vinganças e indiferenças. A vivência da Quaresma
contribui para combater perspectivas que estreitam o ser humano na mesquinhez,
inviabilizando a prevalência do respeito nas relações.
A
Quaresma aponta o caminho de uma humanização espiritual e afetiva. A sua
vivência contribui para a superação de muitas situações tristes, a exemplo
daquelas em que pessoas capazes de promover importantes iniciativas pela sua
inteligência, competência na gestão de processos, com significativa
participação na história de instituições, se apequenam quando são contaminadas
por sentimentos de apego, mesquinhez ou ingratidão. Oportuno e sábio é acolher
o horizonte indicado por Jesus - buscar a conversão e a vivência do Evangelho.
Trata-se de uma pérola preciosa encontrada no Sermão da Montanha, carta magna
do cristianismo, narrada pelo evangelista Mateus.
Do
quinto ao sétimo capítulo do Sermão da Montanha, dentre outros aspectos,
merecem atenção as referências à prática do jejum, da esmola e da oração, com
propriedades para requalificar a condição humana que facilmente se distancia de
valores e princípios essenciais a uma vida mais equilibrada. O jejum remete o
discípulo a uma conduta contrária ao tratamento soberbo e arbitrário dos bens
da criação, despertando o compromisso social e político para efetivar uma
organização da sociedade onde se respeite e se promova o bem como direito
inalienável de todos. A esmola diz respeito ao sentido da solidariedade como
expressão da nobreza no coração humano, deixando-se incomodar, em todos os
sentidos, pela condição miserável e excludente de muitos irmãos e irmãs. A
oração é a experiência única e insubstituível para alcançar o coração de Deus,
estabelecendo um diálogo com o Pai, educando-se para enxergar o mundo e o
próximo a partir da perspectiva do Criador.
Acolher
a interpelação da Campanha da Fraternidade contribui para bem viver o tempo da
Quaresma. Em 2023, a Campanha da Fraternidade adverte para a grave situação
daqueles que estão no mapa da fome e da insegurança alimentar, sublinhando um
apelo de Jesus Mestre : ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’. A palavra do Mestre
interpela seus discípulos a vivenciarem uma nova lógica : a solidariedade. Sem
solidariedade, persistirá o problema da fome, não solucionado pela hegemonia de
outras lógicas e interesses que estão na contramão de uma adequada cidadania e
da genuína vivência do Evangelho. Neste tempo da Quaresma, sejam acolhidos os
apelos do Salvador e Redentor. Promova-se a lógica da solidariedade cuja raiz
está na grandeza da misericórdia de Deus, o Pai de todos, constituída pelo
princípio intocável de que todos são irmãos e irmãs. O convite a todos é para
que se engajem na vivência do tempo quaresmal, fecundados pelo silêncio da
escuta do Evangelho e dos clamores dos pobres. Todos se atentem para os apelos
da Quaresma, nascidos no coração misericordioso de Deus.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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