Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
Presidente
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
‘O
caminho da Quaresma há de ser sempre compreendido como delicadeza de Deus
ofertada a todos, experimentada pela beleza encantadora da Liturgia da Igreja.
São luzes brilhantes que se acendem pela escuta da Palavra : a Palavra de Deus
ilumina e alcança as profundezas ensombradas do coração humano, distanciadas do
Criador. O caminho de conversão é o retorno a um amor maior perdido e
substituído por práticas que desfiguram a condição humana na sua semelhança com
Deus. Percorrer esse caminho, com abertura à ação da graça redentora, é acolher
o desafio de iluminar a realidade humana e social despertando o compromisso de
ajudar na construção de um mundo melhor, mais justo, fraterno e solidário.
A
medida certa da nova condição espiritual e humanística que se consegue alcançar
pelas práticas quaresmais projeta luzes na realidade, inquietando a cidadania
do Reino, que deve estar em sinergia com o adequado exercício da cidadania
civil. Por isso mesmo, a Igreja Católica convida todos para se deixarem
encharcar pelas interpelações espirituais que são base de um humanismo
integral. Neste tempo da Quaresma, esse convite é oferecido a cada um a partir
da Campanha da Fraternidade 2023 - Fraternidade e fome. A profundidade da
interpelação espiritual impulsiona a conduta cidadã ao compromisso de ouvir os
clamores dos sofredores. Comprometer-se com a promoção do bem maior que está ao
alcance de todos. Assim, enxergar com lucidez os problemas sociais é
consequência e comprovação de um fecundo processo de conversão, que ultrapassa
uma simples conquista pessoal, individual.
A
Quaresma tem como finalidade não somente a expiação, mas também a tarefa
discipular de alargar o próprio coração - fazer dele lugar da alegria
experimentada no amor verdadeiro. Esse amor verdadeiro, quando reveste o
coração humano, lhe confere força. Impulsiona-o para testemunhar o Evangelho
com autenticidade, dedicando-se à construção de um mundo melhor, enquanto se
caminha para o Reino definitivo. A alegria que fortalece o coração brota do dom
da misericórdia, recebido quando o ser humano se dedica à promoção da justiça e
da fraternidade universal. A misericórdia fecunda uma santa indignação diante
das injustiças e afrontas à sacralidade da dignidade humana. Existe, pois, uma
conexão forte entre a dimensão misericordiosa do coração humano e o compromisso
com o bem de toda a sociedade. Trata-se de uma iluminação que permite enxergar
os descompassos da realidade e, por amor, sincero, verdadeiro, engajar-se na
superação de muitos problemas.
O
horizonte sólido e inspirador do caminho quaresmal é intocável. Sua luz forte
permite alcançar o peso da realidade que se impõe, especialmente, aos pobres.
Enxergar com clareza a situação dos pobres, pelos olhos da fé, com o coração
encharcado de compaixão, faz nascer o compromisso quaresmal de compartilhar o
necessário pelo bem de quem carrega fardos pesados. Muitos são os fardos
pesados esmagando irmãos e irmãs, a exemplo do drama da fome e da insegurança
alimentar. Tomar a luz brilhante do caminho quaresmal para iluminar
descompassos sociais é enxergar a dureza da realidade com as singularidades da
fé, alavancando a conversão. Não cabe, pois, o equivocado entendimento que
aponta haver contradição entre o insubstituível horizonte do caminho quaresmal
e o apelo para que, pela ótica quaresmal, se consiga reconhecer descompassos da
realidade, como o drama da fome.
A
promoção da Campanha da Fraternidade - neste ano com o tema Fraternidade e fome
- não é uma proposta de substituição à vivência da Quaresma. Do tempo
quaresmal, luz divina que se configura como convite à conversão, se arquiteta a
iluminação para uma completa visão da realidade, pela ótica da compaixão. Essa
visão convoca a um compromisso social fecundado pela fé. Duas passagens
bíblicas são iluminadoras e têm força para diluir qualquer tipo de dúvida a
respeito da íntima relação existente entre a fé autêntica e a solidariedade.
Jesus, na sua maestria, apresenta o samaritano que agiu com extrema
misericórdia na acolhida e tratamento daquele que tinha sido vítima de assalto.
O Mestre compara a exemplaridade inspiradora do samaritano com a lamentável
indiferença do sacerdote e do levita, que passaram adiante sem se compadecerem.
Ainda nos seus preciosos ensinamentos sobre a misericórdia, o Mestre e Senhor
afirma : ‘Tudo o que for feito ao menor dos irmãos é a mim que se está fazendo’.
Reconheça-se,
pois, o desafio de se compreender que o compromisso cidadão de superar a
miséria e a fome envolve os discípulos e discípulas de Jesus, uma exigência da
fé autenticamente vivida. O selo de autenticidade da fé cristã amalgama a
compreensão da realidade social na sua dureza e peso. E quem compreende a
realidade, é interpelado a agir, um compromisso quaresmal, fruto de conversão.
Não se pode cair no equívoco de opor Quaresma e Campanha da Fraternidade. A luz
e a força da fé têm propriedades para promover a experiência da autêntica
conversão, atuando pelo bem maior como compromisso quaresmal. A fé cristã
permite ver o invisível - por graça de Deus - e permite adequadamente enxergar
a realidade : reconhecer seus descompassos, inspirando a superação de
equívocos. A realidade precisa ser tocada pelo sabor do Evangelho de Jesus
Cristo. Pautar-se por preconceitos ou desconhecer a realidade sofrida de quem
não tem o que comer, julgando equivocadamente a relação entre fé e compromisso
social, é impedir o florescer de respostas possíveis de serem encontradas no
horizonte da delicadeza de Deus, o tempo quaresmal.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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