terça-feira, 30 de agosto de 2022

Jesus inaugurou a divisão

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE


A verdadeira paz não é fruto de um silêncio farsante, dissimulado e hipócrita. Pensemos na sedução de Jeremias, na condição de profeta e amigo de Deus, que se veja seu encanto em anunciar a paz, sedimentada na justiça e na fidelidade a Deus. A única saída para o profeta foi se tornar “objeto de disputa e de discórdia em todo o país” (Jr 15, 10). Para se livrarem dele, acusaram-no os chefes militares de derrotismo junto ao rei e, obtidos poderes sobre ele, lançaram-no numa cisterna lamacenta, onde se atolou. Teria certamente perecido, se Deus não o houvesse socorrido por meio de um desconhecido, que conseguiu do rei licença para retirá-lo daquela cova, ou antro de morte. 

Exprime-se bem essa situação de Jeremias com a oração do salmo, a seguir : “Esperei no Senhor com toda a confiança; ele se inclinou para mim e ouviu meu clamor e grito. Tirou-me do poço da perdição, daquele encharcado lodo” (SI 40, 2-3). Na iminente morte do profeta, a libertação chegou de fora, de quem não se esperava, de um etíope. O que aconteceu com Jeremias, infelizmente, hoje constantemente se repete.

Jesus veio para nos trazer a paz, mas aquela paz compreendida como fruto da conversão do coração, conversão à verdade. Quem vive da verdade e mergulhado na verdade, passa por consequências inomináveis e incompreensões mesquinhas. Não hesitar quando for preciso radicalizar, a partir de Jesus de Nazaré, numa lógica de coerência, na sua clara afirmação de lançar fogo sobre a terra claramente fazendo opção pela vida, que é dom e graça. “Vim trazer divisão” é uma afirmação incisiva e desconcertante (cf. Lc, 49-52) à primeira vista, mas não contradiz nem anula o que ele já disse em outras ocasiões, quando explica que a paz interior é um sinal de harmonia entre a criatura humana e Deus.

Na adesão ao querer divino, jamais devemos prescindir da luta, na legítima guerra contra tudo o que se carrega no íntimo da alma : paixões, tentações, pecados. No seu próprio ambiente de trabalho, como exemplo, caso alguém se oponha à vontade salvífica e libertadora, em detrimento da fé, é dever nosso contrariar esse tipo de atitude, agindo corajosamente de forma profética no serviço ao Senhor, em seu projeto de amor. Se escolhermos falar e viver segundo o Evangelho, com certeza seremos perseguidos.

Pela existência da Bondade Infinita, que a nossa humanidade possa sempre mais clamar pela divindade, mesmo conscientes de que somos parciais, ao relativizar essa demanda, mesmo no lógico e clamoroso brado da existência do Onipotente. 

Para que o universo todo e a nossa vida inteira não sejam um absurdo, um brinquedo passageiro, não prescindir de reconhecer a existência do Infinito e do Absoluto. Que nossa realidade finita possa se revelar, enquanto restrita e passageira, mas no relacionamento esperançoso com o Infinito, no ser invisível de Deus, contemplado pela razão, através de suas obras (cf. Rom 1, 19s).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586556

sábado, 27 de agosto de 2022

Rivalizai-vos em atenções

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Pintura mostra apóstolo Paulo e escrituras

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


Este é um conselho antigo e sempre oportuno : ‘Rivalizai-vos em atenções’. Conselho vindo da escrita do sábio apóstolo Paulo, escrevendo aos Romanos, a partir da preocupação pastoral e espiritual com o relacionamento humano. A dimensão relacional tem importância determinante e incidente no conjunto da vida social e política, bem como no ambiente familiar e profissional. Já aos Gálatas, Paulo escrevia lembrando o mandamento maior - amar ao próximo como a si mesmo. O mandamento maior, sublinha o apóstolo, é a única inspiração correta para não incorrer, conforme diz Paulo, na abominação de morder e devorar uns aos outros. Os seres humanos precisam agir com fidelidade ao mandamento do amor para não se consumirem mutuamente, acentuando o caos que leva a fracassos e prejudica a vida, dom precioso e sagrado que habita cada pessoa. Importa deixar-se guiar pelo Espírito de Deus, o mestre espiritual que ensina o ser humano a ‘rivalizar-se em atenções recíprocas’.

O apóstolo Paulo focaliza a importância de se investir, com humildade, na mudança da própria mentalidade. Assim, sempre e incondicionalmente, abrir-se ao bem. O apóstolo constrói um itinerário precioso para convencer que esse investimento é dimensão fundamental do verdadeiro culto dedicado a Deus, com consequentes desdobramentos que qualificam a vida, superando circunstâncias que promovem a morte, o terror, a violência e as disputas fratricidas, em razão de rancores e ódios. Circunstâncias criadas também por convencimentos mesquinhos, quando se busca vencer ‘a todo custo’, mesmo que a consequência possa significar prejuízos ao bem comum e à sacralidade da vida. Ao invés dessa perspectiva egoísta, Paulo orienta cada pessoa a não ter sobre si uma ideia muito elevada, mas uma justa estima, para evitar que o orgulho contamine escolhas, posturas e modos de se expressar. Cultivar excessiva estima sobre si mesmo compromete a indispensável humildade, pode levar à mesquinhez, gerar a insolência, motivar vinganças, na contramão do amor fraterno.

Quem guarda excessiva estima sobre si mesmo acha-se no direito de formular argumentos para defender o próprio lado ou partido, mesmo que isto signifique distanciar-se da verdade. Corre, ainda, o risco de gerar comprometimentos que atingem a dignidade do próximo, prejudicando o bem maior, mais importante que o brio individual ou os interesses particulares. Importa decisivamente ter bom senso, não comprometendo, instrui o apóstolo Paulo, a medida da fé que Deus deu a cada um. A compreensão a respeito dessa medida pode ser aprofundada a partir da metáfora do corpo, detalhada pelo apóstolo em alguns de seus escritos. Ele sublinha que todas as pessoas são membros de um só corpo. Cada um exercendo função diferente. Assim, embora muitos, todos, em Cristo, são ‘um só corpo’, membros uns dos outros, com dons diferentes, prestando serviços. Nenhuma pessoa deve se julgar proprietária desse ‘corpo’. Reconhecendo-se parte dele, precisa alegrar-se por promover a vida, sem apegos ou disputas, sem se morder e devorar-se uns aos outros.

Ganha sentido e grande alcance, considerados os muitos conflitos que geram prejuízos na contemporaneidade, o conselho precioso ‘rivalizai-vos em atenções’. Isto não significa, obviamente, dedicar-se a cortesias que são demagogias interesseiras, ou motivadas pelo simples cultivo da boa imagem sobre si. Acolher o conselho do apóstolo Paulo é exercício capaz de qualificar o tecido da cultura contemporânea. Uma urgência ante os muitos cenários – das relações globais às regionais, dos contextos políticos e cidadãos à vida em família – onde a fraternidade está sendo substituída por belicosidades. Gestos violentos e irresponsáveis, falas agressivas, entrincheiramentos e disputas fecham corações e poluem mentes. Consideradas as necessidades de mudança, não basta simplesmente exigir adequadas estratégias governamentais ou eficazes funcionamentos da organização social e política. Há uma responsabilidade determinante e insubstituível de cada cidadão, que precisa rivalizar-se em atenções recíprocas.

Nesse sentido, a Doutrina Social da Igreja Católica, fundamentada no Evangelho de Jesus Cristo, é referência para fecundar práticas transformadoras, com incidência na organização de instituições sociais e, também, na qualificação da subjetividade humana. Dentre os princípios reunidos na Doutrina Social da Igreja está o da igualdade de natureza entre todas as pessoas. Reconhecer essa igualdade debela preconceitos e discriminações, criando condições para a superação das vergonhosas desigualdades sociais. Trata-se de importante passo na direção do humanismo integral, investimento da Igreja Católica, em parceria e interface com outras instituições da sociedade civil.

O investimento no humanismo integral não se efetiva a partir de subjetivismos ou da desconsideração da complexa realidade social, política, cultural e econômica. Ao invés disso, exige esta atitude humanística de cada pessoa : rivalizar-se em atenções recíprocas, dedicando-se ao próximo, contribuindo para o bem de todos, com a política melhor e com o qualificado exercício da cidadania. Vale a humildade de ser aprendiz da prática de ‘rivalizar-se em atenções’, para que floresçam solidariedades, diálogos e intuições dos passos novos, impulsionando a recomposição de tecidos sociopolíticos, por uma nova configuração civilizatória.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigos/?id=10103

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

De olho no próximo consistório: o que vem por aí?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

 Papa Francisco durante realização de consistório público em 2015 | ACI Group/L'osservatore romano

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


O ‘super consistório’ que acontece nos dias 29 e 30 deste mês promete. E não estamos falando dos rumores que apontam para uma renúncia do Papa. Em declarações recentes, ele já rebateu essas especulações. E digo mais : à revelia de toda e qualquer investida de seus opositores, Francisco está disposto a dar continuidade a seu mandato até onde suas forças permitirem.

Mesmo sem descartar a possibilidade de renúncia, amparado pelo precedente aberto por Bento XVI, Francisco não pretende deixar a obra pela metade. Como pontífice reformador, abriu esse canteiro de obras em 2013 e agora ajusta os últimos detalhes do acabamento desse projeto que já era ensaiado pelo seu antecessor.

Os papados contemporâneos têm essa característica : cada qual elege uma lista de prioridades – o que é normal –, mas todos olham para a instituição conscientes da tensão que existe entre Tradição e Progresso, com T e P maiúsculos. Para o catolicismo, a Tradição é tão imutável quando viva, por isso consegue dialogar com o presente. Se não dialogasse, até hoje a liturgia seria celebrada em grego ou o Tribunal da Santa Inquisição continuaria operante.

Raniero Cantalamessa, mesmo sem estar a par do programa de governo do pontífice argentino na ocasião, já havia cantado essa bola na Sexta-feira Santa de 2013, quando comparou a Igreja que Francisco acabara de assumir a um prédio que nunca mudaria sua estrutura original, mas precisaria sempre de alguns retoques para continuar desempenhando bem o seu papel. E o primeiro papa latino-americano da história, pelo jeito, captou a mensagem.

A Evangelii Gaudium, a exortação apostólica que foi apresentada como programa de governo de Francisco, publicada em 2013, fez um diagnóstico completo dos pontos que a instituição não poderia mais negligenciar. Francisco tem sido um verdadeiro ‘explorador de lacunas’, que embora tenham sido teoricamente tratadas em concílio, devem ser revisitadas.

Quase 10 anos depois, é este o saldo :

Reforma da Cúria romana concluída. Sínodo para fazer ecoar essas mudanças em andamento. Base de cardeais eleitores alinhados a seu governo bastante consistente. O que falta agora?

Criar a consciência ‘universal’ de que essa reforma não visa somente impactar as estruturas, mas as mentalidades. E não é uma ‘mentalidade revolucionária’ que precisa ser imposta, segundo a visão de Francisco. Até porque a palavra ‘revolução’, se cair na malha das categorias politiqueiras do presente, perde completamente o seu sentido, assim como aconteceu com o conceito de tradição, que foi usurpado pelas confrarias católico-caóticas do presente.

Francisco quer, na verdade, separar o que é essencial do que é acessório. Por isso ele vai contra esse catolicismo estético que se impõe nos mais variados espaços, o qual tenta ofuscar essa proposta de fazer sobressair a imagem da Igreja Católica como o lugar onde as pessoas fazem uma experiência de fé, não uma simples adesão a uma cartilha de preceitos.

No dia 27 acontece o consistório para a criação de novos cardeais. E para aproveitar a presença dos purpurados do mundo todo, que irão assistir ao ingresso dos novos companheiros de cardinalato, Francisco convocou um consistório extraordinário no dia 29 (que, como o nome sugere, só é organizado para tratar de questões de extrema importância). Oficialmente, o evento servirá para atualizar os membros do colégio sobre a reforma da Cúria Romana. Mas se o documento já está pronto, por que a necessidade de repetir o que todo mundo já sabe?

Francisco é extremamente perspicaz. Muitos dos cardeais que ele criou não se conhecem. Será uma oportunidade de criar essa interação, já visando o próximo conclave, uma vez que o bloco de cardeais eleitores já está consolidado.

Outra coisa : o sínodo ‘flopou’ em muitas regiões, principalmente naquelas onde o pontificado de Francisco é assaltado, todos os dias, pelas fake news. Será uma forma de transformar os cardeais, que representam o mundo todo, em ‘embaixadores’ desse processo, que entra na fase continental a partir do dia 26. Lembrando que esse sínodo é a extensão ‘popular’ da reforma.

No mais, estamos em tempos de Francisco. Agora só aguardar o desdobramento desses eventos para ver qual será seu próximo passo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586777

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

O ser humano como vocação

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo d0 Padre Geraldo de Mori, SJ


A Igreja católica do Brasil dedica o mês de agosto à oração pelas vocações : ao ministério ordenado, à vida familiar, à vida religiosa, aos ministérios leigos, ao ministério da catequese. Essa diversidade de vocações pelas quais se reza durante o mês, esconde, porém, algo que é mais originário e nem sempre levado em conta : a vocação a ser cristão. A ausência de uma reflexão sobre essa vocação originária pode conduzir a pensar as diferentes vocações na Igreja como algo meramente funcional, que diz o que é específico de cada uma delas, mas não concerne o conjunto dos fiéis e a Igreja como tal. O ser chamado a exercer um serviço na Igreja está inscrito em algo que diz respeito a uma relação fundamental, que é constitutiva do ser humano e de sua relação com Deus.

Durante muito tempo, ao se falar em vocação na Igreja, pensava-se nos que nela exerciam algum serviço ou função. Identificava-se ainda esse termo com a vocação à vida religiosa. Com o concílio Vaticano II resgatou-se a vocação fundamental, comum a todos os fiéis, que é a vocação cristã. Também se colocou em evidência que essa vocação era precedida por uma vocação ainda mais elementar, a vocação à vida. Por sua vez, do ponto de vista secular, com o avanço do processo de modernização da sociedade, o termo vocação passou a designar a habilidade ou inclinação a um tipo determinado de profissão, dando origem aos famosos testes vocacionais, que existem até os dias atuais.

A identificação de vocação com o exercício de uma tarefa ou serviço ou com a inclinação ou habilidade a um tipo de profissão foi então relida pelo Vaticano II numa perspectiva muito mais ampla, que tem suas origens na própria história do povo de Deus no Antigo Testamento, encontrando no Novo Testamento um significado à luz de Cristo. Um dos lugares comuns a partir dos quais se relê essa perspectiva é o da vocação de Abraão, tal qual o livro do Gênesis a descreve a partir do capítulo 12. Trata-se, segundo a dinâmica do conjunto da narrativa desse livro, de um chamado a deixar a terra e a casa paterna para ir rumo a uma terra que lhe seria dada por Deus, na qual o patriarca do povo eleito teria uma descendência, que seria fonte de bênção para todas as famílias da terra. Percebe-se no texto que dá início ao ciclo de Abraão, que Deus chama uma pessoa particular e a incumbe de uma missão, que beneficiaria toda a humanidade. Esse modelo se repetirá em quase todos os grandes personagens da bíblia hebraica, como Moisés e todos os profetas. O chamado sempre está em função de uma missão, o que pode levar a pensar que a identificação que se dá na Igreja entre vocação e função, serviço, missão seja o sentido mais importante do termo vocação. Porém, há algo ainda mais profundo e radical, inscrito na própria ideia de vocação e que precisa ser redescoberto e valorizado.

De fato, a ideia de vocação já está inscrita na criação do ser humano segundo os dois relatos de criação do livro do Gênesis. No primeiro relato, após uma ‘deliberação’, há um ‘plural divino’ que ordena a criação do ser humano à sua imagem e semelhança (Gn 1,26). No segundo relato, Deus ‘modela’ o ser humano com a argila do solo e insufla em suas narinas o hálito de vida e o ser humano se torna um ser vivente’ (Gn 2,7). Muitos exegetas apontam para a originalidade desses dois mitos de criação do ser humano comparados com os mitos de criação de outras culturas. Esses dois mitos, dizem eles, o da criação pela palavra (primeiro mito) ou da argila com insuflação (segundo mito) estabelecem uma ‘separação’ entre Deus e o ser humano, separação que marca uma diferença radical, pois Deus é o criador e o ser humano criatura. A ‘imagem e a semelhança’ e o ‘hálito vital’ seriam, no ser humano, sua ‘capacidade’ de se relacionar com Deus, de escutar seu chamado, uma vez que o ser humano foi criado em função da aliança. No próprio ato de criação, portanto, o ser humano seria habilitado à escuta de um chamado, e esse chamado, mais que para uma função ou uma missão, é o de ser o povo da aliança, como aparece no conjunto da história de Israel no Antigo Testamento.

O Novo Testamento não propõe nenhum mito de criação do ser humano, mas apresenta Jesus como o humano plenamente realizado segundo o desejo de Deus. A carta aos Hebreus traz uma afirmação muito importante a esse respeito, que indica bem o significado mais profundo e radical do termo vocação à luz do evento Cristo. Segundo Hb 5,8, ‘embora sendo Filho, Cristo aprendeu, pela obediência o que significa ser filho’. O termo obediência não é muito apreciado na cultura contemporânea, porque é identificado com submissão. Porém, a raiz grega do termo, recolhida em sua riqueza pelo latim, remete a escutar. Obedecer no texto em questão significa saber escutar e assentir ao chamado de Deus. No fundo, esse texto remete a um outro, dos capítulos 2 e 3 de Gênesis, nos quais Deus, após criar o jardim de Éden e confiá-lo a Adão, lhe dá uma lei, a de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,16-17). Diante da provação, o casal primordial sucumbiu à tentação, apesar de se recordar da palavra divina (Gn 3,1-7), ou seja, sua escuta não foi até o fundo do apelo divino, que não queria cercear sua liberdade com a lei, mas mostrar-lhe que em toda relação há uma diferença que precisa ser salvaguardada. Jesus é aquele que vive isso radicalmente.

A vocação mais radical, portanto, é a de aprender, pela escuta, a ser filho/a. E a escuta se dá através de um chamado, que demanda a liberdade, para que dê seu assentimento. Esse é o caminho cristão, ouvir o chamado a ser filho/a no Filho, ou seja, Jesus é aquele que inaugurou o ‘caminho novo e vivo’, através do ‘véu’ de sua humanidade (Hb 10,20). Esse caminho começa com o batismo e o tornar-se cristão, ou seja, o realizar-se desta vocação, acontece durante toda a vida, na qual, pela ‘obediência’, ou seja, pela escuta do chamado divino nos corações, através do Espírito, cada pessoa vai se conformando à liberdade do Filho. Antes, portanto, de assumir um serviço, função ou missão, cada batizado/a deve responder à vocação de ser filho, filha.

O dar-se conta dessa vocação fundamental à qual cada cristão/ã é chamado/a, é muito importante na Igreja, pois a tendência a identificar a vocação somente com o exercício de uma tarefa ou de um ministério, ou com uma condição de vida, impede o conjunto dos fiéis a perceber que, antes de qualquer serviço ou estado de vida, há um chamado a fazer a experiência de ser filho/a no Filho, segundo a força do Espírito Santo. Esse chamado, por sua vez, mais original, não se realiza somente pelo fato de alguém ter sido batizado. A vocação cristã é um caminho a ser percorrido. O aprender a ser filho/a não é automático. Não se dá somente por um gesto ritual ou pela simples repetição da profissão de fé ou pela repetição de práticas de piedade. É um aprendizado que demanda toda a vida e supõe uma capacidade enorme de escuta da voz do Espírito que fala no espírito de cada batizado/a, indicando-lhe como deixar-se conformar ao Cristo para alcançar sua estatura (Ef 4,13). Supõe a travessia por todas as etapas da vida, com suas tentações e apelos ao salto que torna cada um/a imitador de Cristo (1Cor 11,1).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586700

terça-feira, 23 de agosto de 2022

O sentido da teologia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Luís Eugênio Sanábio e Souza


A teologia oferece a sua contribuição para que a fé se torne comunicável. A teologia, que obedece ao impulso da verdade que tende a comunicar-se, nasce também do amor e do seu dinamismo: no ato de fé, o homem conhece a bondade de Deus e começa a amá-lo, mas o amor deseja conhecer sempre melhor aquele a quem ama. Portanto, a fé procura compreender. Neste sentido, Santo Agostinho pôde concluir : ‘eu creio para compreender e compreendo para melhor crer’.

A teologia católica reconhece a primazia da Palavra de Deus. Certa vez, o Papa emérito Bento XVI disse : ‘São Tomás de Aquino, com uma longa tradição, diz que na teologia Deus não é o objeto do qual falamos. Esta é a nossa concepção normal. Na realidade, Deus não é o objeto; Deus é o sujeito da teologia. Quem fala na teologia, o sujeito falante, deveria ser o próprio Deus. E o nosso falar e pensar deveria servir apenas para que possa ser ouvido, para que o falar de Deus, a Palavra de Deus possa encontrar espaço no mundo. Assim de novo, somos convidados para este caminho da renúncia a palavras nossas; a este caminho da purificação, para que as nossas palavras sejam só instrumento mediante o qual Deus possa falar, e assim Deus seja realmente não objeto, mas sujeito da teologia’ (Papa Bento XVI: homilia na concelebração eucarística com os membros da Comissão Teológica Internacional em 06/10/2006). Para explicar a cooperação humana com a graça divina, Santo Tomás de Aquino definiu assim :  ‘Credere est actus intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis a Deo motae per gratiam’ = ’Crer é um ato da inteligência que assente à verdade divina a mando da vontade movida por Deus através da graça’. O Catecismo da Igreja Católica explica que ‘a fé é certa, mais certa que qualquer conhecimento humano, porque se funda na própria Palavra de Deus, que não pode mentir. Sem dúvida, as verdades reveladas podem parecer obscuras à razão e à experiência humanas, mas ‘a certeza dada pela luz divina é maior que a que é dada pela luz da razão natural’ (Santo Tomás de Aquino) (Catecismo da Igreja Católica n° 157). 

Dado que o homem tende sempre a relacionar os seus conhecimentos uns com os outros, também o conhecimento de Deus se organiza de modo sistemático. A verdade revelada de Deus ao mesmo tempo exige e estimula a razão do crente. O diálogo entre fé e razão, entre teologia e filosofia, é necessário não só à fé, mas também à razão, como explicou  São João Paulo II . É necessário porque uma fé que rejeita ou despreza a razão arrisca cair na superstição ou no fanatismo, enquanto uma razão que deliberadamente se fecha para a fé, não alcançará a máxima possibilidade do que pode ser conhecido. A reta razão demonstra os fundamentos da fé, e, iluminada pela luz desta última, cultiva o entendimento das coisas divinas, enquanto a fé liberta e protege a razão de erros e lhe proporciona conhecimentos numerosos. Pode-se dizer, com toda certeza, que nenhuma filosofia de vida alcança a verdade plena sem a religião, pois ‘só Deus satisfaz’ (São Tomás de Aquino). A razão precisa da fé. ‘A fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão, decerto não pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na fé, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar’ (Papa São João Paulo II : Encíclica Fides e ratio nº 67).

Um critério da teologia católica é que ela tem a fé da Igreja como fonte, contexto e norma. Crer é um ato pessoal e ao mesmo tempo eclesial. A fé da Igreja precede, gera, suporta e nutre a fé do fiel católico. A Igreja é a Mãe de todos os crentes. No longínquo século III, São Cipriano pôde dizer : ‘Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe’.

O teólogo é membro e filho da Igreja e portanto deve respeitar a função e as diretrizes próprias do seu Magistério, isto é, do Papa e dos Bispos em comunhão com ele. ‘O ofício de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo, isto é, foi confiado aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma’ (Catecismo da Igreja Católica n° 85 citando o Concílio Vaticano II: DV 10).

O Magistério, por sua vez, conta com a colaboração dos teólogos.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-08/o-sentido-da-teologia.html

domingo, 21 de agosto de 2022

Quatro possíveis faces da Teologia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

As teologias, como toda e qualquer ciência humana, têm várias faces. Ao longo da história diversas delas já foram mostradas. No Ocidente, então, fortemente influenciado pela cultura greco-romana e pela teologia de matriz judaico-cristã, fica, talvez, mais fácil de percebê-las.

A primeira seria a face do moralismo, tão difundido em meios fundamentalistas, sejam católicos, sejam protestantes. Essa face, por sua vez, dado o seu aspecto carrancudo, é aquela que constantemente é responsável por fazer com que as pessoas, principalmente as mais jovens, afastem-se das igrejas, por não verem sentido em uma lista de regras impostas sem o menor pudor, como algo vindo do céu e escrito em pedras a ser observado para todo sempre. Da mesma forma, essa face é aquela que é vista como a condenadora dos que estão do ‘lado de fora’, ‘longe dos caminhos do Senhor’, por simplesmente não estarem dispostas a seguir o que é dito pela instituição.

Outra face muito conhecida da teologia cristã é a que traz um ar de superioridade e desdenho com relação ao que lhe é diferente. Essa teologia, que se considera melhor, maior e mais perfeita do que as outras religiões e outras formas de pensar, também se revela constantemente no dia a dia das pessoas. Essa, por apresentar um rosto mais amigável, atrai para si diversas pessoas que, não raras as vezes, querem se sentir merecedoras, exclusivas e certas de que estão no caminho que deveriam estar.

Contudo, um olhar atento mostra que essa face da teologia é tão excludente quanto a primeira da qual falamos, só que ao invés de gritar como um senhor carrancudo contra as crianças que brincam à sua porta, essa fica na espera de que a bola com a qual brincam atinja seu quintal para, então, esvaziá-la e acabar com toda a alegria e diversidade que tanto lhe incomoda.

Por fim, podemos perceber a face da indiferença. Aquela que se mostra quando diversas instituições, preocupadas somente com o céu e um mundo porvir, mostram-se como indiferentes frente a tudo o que acontece na sociedade. É a face que afirma : ‘nós não somos deste mundo e, portanto, não devemos nos incomodar com ele’, fruto de uma teologia desencarnada, que não aprendeu nada com o exemplo de Jesus de Nazaré. Em busca de um lugar no céu, esquece-se de que é no chão do mundo que o Reino de Deus vai tomando forma. Em outras palavras, tal face da teologia abandona justamente aquilo que lhe dá fundamento.

Essas três faces da teologia, infelizmente, talvez sejam as mais percebidas em nossa sociedade contemporânea.

Uma outra face, porém, precisa aparecer mais e sobressair a essas outras. Essa face é a do cuidado. Cuidado que, por definição, pressupõe a empatia, pressupõe o ouvir atento, a disposição de caminhar junto, o amor recíproco, a renúncia ao poder.

Toda vez que tal face não se mostra, o que se percebe é uma teologia cristã que se afasta dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, causando mais mal do que bem àqueles e àquelas que convivem com esse tipo de igreja.

Resgatar a face do cuidado com o outro e com a natureza é tarefa fundamental para uma teologia que deseja ser uma voz digna de ser ouvida no mundo contemporâneo. Sem isso, seremos como loucos que se imaginam falando para multidões e sendo ovacionados, quando na realidade estamos somente em mais um delírio em nosso quarto pequeno e afastado de tudo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586196

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Crítico ou apóstata?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Negacionistas antivacina durante protesto, em Roma, em 2020 | Vincenzo Pinto/AFP

 *Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


O Papa não é incriticável, embora paire sobre ele aquela visão (bem equivocada) da infalibilidade. Isso porque ele só é infalível, segundo a crença do catolicismo, quando atua em ex cathedra, ou seja, quando proclama um dogma de fé ou um artigo moral. O último pontífice a usar dessa prerrogativa foi Pio XII, em 1950, ao promulgar o dogma da Assunção de Maria.

Pois bem, dito isso, agora vamos diferenciar crítica de postura antipapal pública. Muitos católicos têm criticado ou renegado um pontífice legítimo? Trocando em miúdos, uma coisa é fazer análises técnicas e pontuais sobre o governo de um pontífice; outra é tentar destroná-lo do posto em que ele foi colocado licitamente e sobre o qual ele tem a liberdade - como qualquer Papa - de eleger um programa de prioridades. Francisco, no caso, escolheu encabeçar uma reforma da Cúria Romana e focar na pastoral. E que mal tem nisso?

Um crítico, em tempos de Lutero, era aquele que chamava seu oponente ao debate público para que ambos pudessem confrontar seus argumentos. O teólogo alemão, ao fixar suas 95 teses na porta da catedral de Wittemberg, estava chamando a comunidade acadêmica e o príncipe da Saxônia para um debate sobre as indulgências (com cópia para o Papa Leão X e o bispo local). Mais que um documento de protesto, era a expressão de uma práxis comum na época. Depois disso, com o desenrolar da situação, o seu antipapismo foi se efetivando até a formalização do cisma.

Mas Lutero, na qualidade de professor de teologia, em 1517, sabia, certamente, montar um discurso. Era alguém que dominava a arte da retórica. Hoje em dia, o que vemos é o Zé do youtube querendo bancar o Sêneca. Ganham visibilidade pelo grito : uma explosão de várias teorias paralelas que transitam, em espiral, dentro da cabeça oca.

Os protestantes-católicos de hoje - podemos chamá-los assim -, tentam salvar a Igreja do próprio Papa. Tal postura é fomentada pela ideia romântica de uma ‘idade de ouro do catolicismo’ que precisa ser resgatada. Como se a instituição tivesse escapado ilesa do mundanismo que corrompeu a sociedade em várias eras. A história de qualquer instituição humana é feita de luzes e sombras. E com a Igreja não é diferente.

A questão é que, à diferença de Lutero, esses indivíduos são rasos - extremamente rasos. Sem contar que há um abismo que separa Francisco do papado corrompido com o qual o pai da Reforma Protestante se deparou. O pontífice romano, nos idos do século XVI, estava mais preocupado em expandir as terras do Estado Pontifício que em ser pastor do seu rebanho.

No Brasil - e digo sem medo de errar - não há críticos do Papa atual; há opositores da pior qualidade, que sabem usar muito bem máquina de fake news em benefício próprio. E fazem isso sem nenhum peso na consciência, pois militam em nome dessa caricatura de catolicismo que é bastante lucrativa para eles.

Eles têm um ódio [político] a Francisco e estão dispostos a tudo para triturar a sua reputação.

A resistência, na maioria dos casos, não está relacionada ao catolicismo nem à defesa de valores. Até porque o Papa, para quem professa a ‘fé de Roma’, não é um padre qualquer. Sendo assim, minar a credibilidade do próprio líder, mentindo, significa considerá-lo insignificante. E considerá-lo insignificante, para quem professa a fé apostólica, é apostasia. Simples assim.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586288

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Críticas conservadoras à sinodalidade sugerem que o processo do Papa Francisco pode estar funcionando

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O Papa Francisco cumprimenta o arcebispo Charles J. Chaput, da Filadélfia, antes de uma sessão do Sínodo dos Bispos sobre jovens, fé e discernimento vocacional no Vaticano, em 16 de outubro de 2018 | CNS/Vatican Media

 *Artigo de Michael Sean Winters

 Tradução : Ramón Lara

 

Um artigo recente sobre sinodalidade na revista First Things de Francis Maier, o amanuense de longa data do ex-arcebispo da Filadélfia Charles Chaput, mostra um truque retórico que se tornou uma ideia repetitiva de alguns agentes políticos conservadores e seus seguidores da mídia : concentre-se na força de seu oponente, e turve as águas, alegando que é realmente fraqueza. O ataque é digno de nota porque o oponente que Maier selecionou é o Papa Francisco.

Maier cita seu ex-chefe para alegar que os sínodos realizados sob João Paulo II, ou pelo menos o Sínodo das Américas de 1997, que Chaput participou, foram expressões genuínas do espírito sinodal, com discussões e trocas de ideias livres.

‘Foi uma grande experiência, minha primeira participação real internacionalmente a serviço da Igreja universal’, escreveu Chaput. ‘Foi lá que conheci o então arcebispo Jorge Bergoglio, de Buenos Aires. Era um homem impressionante e deu boas contribuições para a discussão. Sentamo-nos perto um do outro porque fomos nomeados arcebispos mais ou menos na mesma época. O sínodo conduziu que eu busque uma relação muito mais próxima com as Igrejas do México e da América Latina e com os católicos latinos nos Estados Unidos’.

Aquele sínodo de 1997 foi um sínodo regional menor, onde sem dúvida foi mais fácil para Chaput, que não fala italiano, se encaixar e participar das conversas.

Voltando ao Sínodo da Família de 2015 e ao Sínodo da Juventude de 2018, Maier relata a desaprovação de Chaput. ‘Fiquei muito desapontado com o que vi como manipulação dos sínodos e suas agendas por elementos dentro e fora da Igreja’, disse Chaput. ‘Em vez de serem ocasiões para uma troca honesta de ideias, ambos os sínodos foram dominados por esforços para reestruturar a direção da Igreja’.

Maier lembra que o falecido arcebispo Philip Tartaglia, de Glasgow, entregou ao Papa Francisco uma nota objetando a certas coisas propostas, e afirma que Francisco ‘o repreendeu rudemente por escrevê-lo e depois foi embora’. Não está claro por que o Papa teria ficado irritado com o conteúdo de algo que aparentemente não teve a chance de ler!

Meu colega jesuíta, o padre Tom Reese, escreveu na época do Sínodo sobre a Família de 2015 sobre algumas das mudanças que estavam facilitando, não inibindo, o diálogo. Reese não percebeu nada de manipulação, apenas a introdução de algumas novas abordagens eclesiais.

Vale lembrar que bem antes do sínodo de 2015, na publicação do sínodo de 2014, a oposição ao Papa Francisco tomava forma, e a forma que a oposição tomava era denunciar o esforço de até mesmo discutir certas questões controversas. Quem foi um dos primeiros arcebispos dos EUA a denunciar o primeiro sínodo sob Francisco? Chaput.

Em um simpósio organizado pela First Things imediatamente após o sínodo de 2014, Chaput disse : ‘Fiquei muito perturbado com o que aconteceu no sínodo’.

Era uma coisa ultrajante de se dizer. Maier quer que acreditemos que Chaput entrou no sínodo de 2015 com a mente aberta, visto que foi chamado para completar o trabalho do evento de 2014 que Chaput pensou semeou uma confusão diabólica?

Quanto ao Sínodo da Juventude de 2018, Maier espera que esqueçamos que postou uma foto no Facebook de uma reunião de neocons católicos durante esse evento : o escritor George Weigel; David Scott, assessor de longa data do arcebispo José Gomez; Robert Royal, editor de The Catholic Thing; etc.

Em 1999, apontei que os neoconservadores católicos americanos falharam em compreender a diferença entre engajar o mundo e cumplicidade com o mundo, e este continua sendo o problema definidor da análise de Maier : A sinodalidade é, entre outras coisas, um esforço para deixar de lado mundanismo. Quantas vezes o Papa Francisco advertiu que um sínodo não é um parlamento?

Maier completa sua análise com alguns comentários abstratos sobre a relação entre verdade e amor, um comentário desagradável sobre a ‘'hermenêutica da ruptura', que tem perseguido a vida católica desde o Vaticano II’ e a promessa de orações ao Santo Padre.

Esta não é a primeira vez que Maier atacou o Papa Francisco e a ideia de sinodalidade. Em 2019, ele proferiu uma palestra no seminário St. Charles Borromeo, na Filadélfia, na qual disse :

Portanto, considere agora o atual plano do Vaticano para a reforma da Cúria Romana, delineado no documento Praedicate Evangelium. O objetivo do plano é simplificar e descentralizar as operações do Vaticano para servir ao foco do Papa na sinodalidade. A sinodalidade como teoria tem algum mérito; tem um sabor semelhante ao princípio católico tradicional de subsidiariedade. Francisco procura colocar mais das decisões da Igreja nas mãos das conferências locais de bispos que estão mais próximas das necessidades de seu povo.

Como apontei na época, ‘Sinodalidade não é principalmente sobre um modelo organizacional diferente. É principalmente sobre aprender a ouvir e dialogar. É sobre um modelo diferente de construção de colegialidade daquele usado nos EUA ao longo do século 20, um isso é de fato pesado em burocracia.’

Mais uma vez, os críticos neoconservadores não veem o grau em que sua abordagem eclesial está impregnada de mundanismo.

O verdadeiro problema com a análise de Maier, e com a amargura de Chaput, é que não é mais possível acreditar que estão agindo de boa fé. Frequentemente recebo bilhetes ou telefonemas de conservadores que têm dificuldade com algumas coisas que este Papa diz ou faz, mas sem a maldade, sem o ‘Como ele se atreve?’, sem as uvas azedas.

Por que o artigo de Maier está sendo publicado agora? O próximo sínodo não é até outubro próximo. O Papa Francisco fez da sinodalidade um foco tão central de seu legado, acho que seus críticos precisam tentar inviabilizá-la. Eles não podem arriscar que o processo sinodal seja um sucesso.

Como a série de artigos especulando sobre a renúncia do Papa ou até mesmo discutindo quem pode ser o próximo Papa, o artigo de Maier é um esforço para minar o papado de Francisco, para esperar que suas reformas o acompanhem até a aposentadoria ou para o túmulo. Esses críticos temem que a sinodalidade possa trazer as novas abordagens dinâmicas da vida eclesial que eles lutaram tão desesperadamente para manter à distância.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1586136

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Pio XII e o Holocausto: Realidade ou Revisionismo?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Uma pintura do Papa Pio XII na Universidade Católica da América em Washington, 25 de maio de 2021 | Foto CNS/Tyler Orsburn

*Artigo de Kevin M. Doyle

Tradução : Ramón Lara


‘Em 2004, Marc Saperstein, professor de Estudos Judaicos na Universidade George Washington, ofereceu uma revisão cuidadosa de The Popes Against the Jews: The Vatican’s Role in the Rise of Modern Anti-Semitism, escrito por David Kertzer, professor da Brown University. Saperstein elogiou o relato de Kertzer sobre a opressão sofrida pelos judeus nos territórios papais durante os primeiros dois terços do século 19, mas passou a desafiar poderosamente as alegações de Kertzer sobre o papel do Vaticano na construção da ‘Antecâmara do Holocausto’.

Por coincidência, ambos os professores Saperstein e Kertzer tiveram pais rabinos que serviram como capelães do Exército dos EUA na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Por mais coincidência, o testemunho do rabino Harold Saperstein fornece um bom ponto de partida para a consideração do último trabalho de David Kertzer, The Pope at War : The Secret History of Pius XII, Mussolini, and Hitler.

Diante de sua congregação de Long Island em 1964, o rabino Harold Saperstein abordou a controvérsia em torno de ‘The Deputy’, que apresentou os frequentadores do teatro da Broadway a um pontífice em tempos de guerra mais preocupado com os bens da igreja do que com a vida dos judeus. Saperstein criticou o Papa Pio XII por denúncias de crimes de guerra privadas e por sua fraqueza diplomática e teológica. Ainda assim, Saperstein insistiu ‘por experiência pessoal’ como capelão do Exército dos EUA que o próprio Pio XII fosse creditado com o resgate de judeus romanos pela igreja durante o ataque nazista de outubro de 1943, relatando :

Eu dirigi para o Gueto de Roma. Havia muitas pessoas com a Estrela de Davi no meu Jeep que se aglomeravam ao meu redor. ‘Como você sobreviveu?’, perguntei? 'O papa deu ordens às igrejas e aos mosteiros para nos acolher', disseram, 'e eles o fizeram e salvaram nossas vidas.'

Este relato de Saperstein - um homem instruído, mas mundano que havia sido ferido por um franco-atirador árabe na Palestina em 1939 e trabalhou com o Comitê de Coordenação Não-Violenta Estudantil no Alabama em 1965 era consistente com o relato de Roma libertada pelo vencedor do Pulitzer e colunista do New York Times Anne O'Hare McCormick.

Agora imagine que você é Pio XII em outubro de 1943, logo após a SS da Alemanha ter se movido contra os judeus em Roma. Centenas de judeus já encontraram abrigo nas instituições católicas de Roma, incluindo o próprio Vaticano. (Dentro de oito meses, o número aumentaria muito além de 4.000, um terço dos judeus de Roma.) Você está ponderando se deve arriscar a provocação de denunciar publicamente as prisões dos 1.000 judeus capturados e destinados a morrer. O risco para os judeus que você acolheu na custódia da Igreja não pesaria muito em sua decisão? Não pela avaliação de David I. Kertzer em O Papa em Guerra : A História Secreta de Pio XII, Mussolini e Hitler.

Kertzer insiste em reprovar a reação silenciosa do Vaticano à detenção, mas não reconhece o dilema no terreno apresentado pelos judeus já escondidos. Somente depois de se deparar com uma série aleatória de tópicos não relacionados à perseguição judaica, como o rosário agarrado à amante de Mussolini, Kertzer admite um capítulo depois meramente que Pio estava ‘consciente de que entre o grande número de refugiados escondidos nos edifícios religiosos de Roma havia muitos judeus’. Ele também afirma falsamente que nenhuma evidência mostra que o Papa tenha dirigido instituições para receber judeus.

Quando você conhece os judeus que confiaram suas vidas à Igreja em meio ao terror nazista, você entende as escolhas difíceis, onde podemos aprender com a história e testar nossa imaginação e julgamento moral. Kertzer, no entanto, opta por um poleiro de acusação. Infelizmente, o excesso de zelo e a visão de túnel distorcem sua acusação, de modo que seu veredicto, que se baseia parcialmente no uso seletivo e sensacionalista dos arquivos do Vaticano recém-abertos, é pré-ordenado.

Em seu relato, Pio XII, tolhido por um ‘caráter nervoso’, fracassou como líder moral. Segundo o crítico, não tinha confiança inicial em uma vitória aliada e depois ficou muito preocupado com a influência soviética. O Papa é retratado efetivamente indiferente aos judeus, desconfiado da democracia e excessivamente preocupado em manter o favor entre os católicos alemães.

Se você assinar o The New York Times, poderá visualizar on-line a edição de 28 de outubro de 1939. A manchete do Times de primeira página, acima da dobra, de três colunas diz : ‘O Papa condena ditadores, violadores de tratados e o racismo; e convida para a restauração da Polônia.’ A referência é a ‘Summi Pontificatus’, a primeira encíclica de Pio XII, publicada dois meses após o início da guerra. Os franceses enviaram cópias do texto para as tropas alemãs e, como notado no Palestine Post, a Gestapo impediu a divulgação da encíclica pelas igrejas católicas em Colônia.

Alguém poderia pensar que tal manifesto inaugural forneceria o pano de fundo contra o qual todas as mensagens subsequentes do Vaticano seriam interpretadas pelo mundo devastado pela guerra. Mas em um livro com mais de 600 páginas, Kertzer consegue ultrapassar ‘Summi Pontificatus’ em menos de duas páginas, obscurecendo a importância da encíclica e concentrando-se no giro e na falsa autoconfiança entre nazistas e fascistas. Um leitor desinformado não teria ideia de por que o American Jewish Year Book 1940-41 concordou com o Times que Pio havia ‘insurgido fortemente contra as doutrinas do totalitarismo, racismo e materialismo’, um julgamento que foi compartilhado pelo embaixador francês na Santa Sé , François Charles-Roux.

Rádio Vaticano

Outro exemplo da visão de túnel de Kertzer é seu tratamento da Rádio Vaticano. Ele escreve que, no final de 1940, ‘muitos poloneses se perguntavam por que a Rádio Vaticano, embora ocasionalmente falasse dos crimes soviéticos na Polônia, permaneceu em silêncio sobre a ocupação alemã do país…’ Isso engana o leitor de forma clara.

Em janeiro de 1940, a Rádio Vaticano rejeitou a ocupação da Alemanha explicitamente. Classificando o comportamento nazista na Polônia como pior do que o dos russos, um relatório transmitido em vários idiomas denunciou como ‘judeus e poloneses estão sendo agrupados em 'guetos' separados, hermeticamente fechados e lamentavelmente inadequados para a subsistência econômica dos milhões destinados a viver lá’. Um livro de 1941 prefaciado pelo cardeal Arthur Hinsley, o arcebispo de Westminster que apareceu com seu colega anglicano no Royal Albert Hall para condenar a Kristallnacht anos antes, continha uma transcrição da transmissão. Com menos atraso, a transmissão chegou à primeira página do The New York Times em 23 de janeiro de 1940. Parte da manchete diz : ‘Os alemães são ainda piores que os russos’.

Kertzer não menciona esta ou outras transmissões da Rádio Vaticano. O livro não faz referência às transmissões de outubro de 1940 da Rádio Vaticano pronunciando que ‘a guerra de Hitler, infelizmente, não é uma guerra justa’ ou denunciando os ‘princípios imorais’ dos nazistas, nem a referência de março de 1941 à ‘maldade de Hitler’. Nem o leitor aprenderá sobre o lamento de agosto de 1941 sobre ‘este escândalo… o tratamento dos judeus’ ou as repetidas transmissões de 1942 e comentários sobre a carta do Arcebispo de Toulouse, Cardeal Jules-Géraud Saliège, protestando contra a deportação de judeus na França.

Mais preocupante é a omissão de um discurso transmitido pela Rádio Vaticano e reimpresso no L'Osservatore Romano (outro órgão do Vaticano que Kertzer priva de seu devido). Kertzer relata o discurso de Pio XII ao Colégio dos Cardeais em junho de 1943 : ‘o Papa expressou seu desejo de responder àqueles que pediram palavras de conforto, aflitos como estão', como disse o Papa, 'por causa de sua nacionalidade e sua descendência'.

Em Under His Very Windows, até Susan Zuccotti, uma crítica decidida de Pio XII que Kertzer cita repetidamente, cita o papa completamente. O pontífice expressa compaixão por aqueles ‘atormentados como são por razões de sua nacionalidade ou descendência’ e ‘destinados às vezes, mesmo sem culpa de sua parte, a medidas de extermínio’. Se o italiano ‘travagliati’ se traduz melhor aqui em ‘tormento’ ou ‘problema’ se presta ao debate, mas a omissão de Kertzer da referência ao extermínio é um terrível aviso, um aviso de fatos moldados para se adequar a uma conclusão, e não vice-versa.

Intervenções diplomáticas do Vaticano

O tratamento de Kertzer da intervenção diplomática do Vaticano na Eslováquia é igualmente enganoso. O arcebispo Angelo Roncalli, núncio do Vaticano na Turquia (e mais tarde Papa João XXIII), procurou obter apoio do Vaticano para o transporte para a Palestina de crianças judias ameaçadas de deportação nazista da Eslováquia. Inicialmente, um funcionário descaradamente antissemita revisou o pedido e se opôs com base na ameaça do sionismo às reivindicações católicas na Terra Santa. Essa objeção registrada como o assunto foi objeto de consideração superior. A certa altura, Pio XII enviou um telegrama a Roncalli que ignorou a ideia palestina e, em vez disso, o instruiu a buscar apenas uma parada nas deportações. Pelo relato de Kertzer, Roncalli acabou recebendo instruções para ‘não dar muito apoio à emigração dos judeus para a Palestina’.

Kertzer não nota no que ele descreveu como sua ‘caça ao tesouro’ no arquivo, que o Vaticano considerava o padre como um renegado ‘louco’. Kertzer também pula a frase de abertura de um memorando do Vaticano sobre a Eslováquia uma semana antes : ‘A questão judaica é uma questão de humanidade. As perseguições a que estão sujeitos os judeus na Alemanha e nos países ocupados ou conquistados são uma ofensa à justiça, à caridade e à humanidade’.

Mais amplamente, Kertzer falha em transmitir a vasta gama de intervenções diplomáticas do Vaticano, às vezes bem-sucedidas, mas muitas vezes não, em nome dos judeus, não apenas daqueles que se converteram ao cristianismo, mas também judeus não batizados. O livro O Papa em Guerra termina sem conhecimento dos esforços de resgate diplomático papal em lugares como Hungria, Bulgária, Croácia, França e a própria Alemanha. Evidências das súplicas diplomáticas de Roma, algumas das quais foram noticiadas contemporaneamente pelo menos no New York Times, já estavam disponíveis para leitura nos arquivos do Vaticano anteriormente acessíveis.

O príncipe alemão

Kertzer possui uma importante descoberta em evidências de arquivo das tentativas clandestinas de Pio XII durante a guerra para negociar um melhor tratamento da Igreja maltratada na Alemanha por meio de um príncipe alemão. De fato, os diários do chanceler italiano Galeazzo Ciano publicados em 1946, juntamente com os arquivos alemães publicados em inglês na década de 1950 e os arquivos do Vaticano divulgados em 1965, todos fazem referência ao príncipe intermediário.

Se o objetivo de Kertzer é mostrar a capacidade do Vaticano para a intriga, a longa colaboração de Pio XII com a resistência alemã, amplamente documentada na Igreja dos Espiões de Mark Riebling, teria feito o truque. Peter Hoffman, da Universidade McGill, relata que quando as autoridades alemãs prenderam figuras da resistência (incluindo Dietrich Bonhoeffer) em abril de 1943, o principal conspirador Ludwig Beck notificou Pio XII como sua primeira ordem.

Kertzer não menciona nada disso. O crítico não explica como o apoio papal à resistência, realizado por meio de canais diplomáticos, poderia ter continuado se o Vaticano tivesse decidido abandonar sua pretensão de neutralidade. Tampouco aborda os obstáculos puramente logísticos a Pio XII incendiando as consciências católicas com uma denúncia flamejante e explícita de Hitler. Kertzer claramente acha que Pio XII deveria ter tentado tal protesto, sem se preocupar com a recriminação garantida que essa medida traria contra a Igreja e qualquer pessoa que ela ajudasse por intervenção diplomática ou porto seguro.

Como observado anteriormente, o pai de Kertzer (a quem The Pope at War é dedicado) serviu como capelão na Europa. Morris Kertzer ganhou uma Estrela de Bronze e também viveu em uma Roma recém-libertada, sobre a qual escreveu na época e alguns anos depois. Um jornal do meio-oeste em junho de 1944 citou uma carta de Kertzer : O papel do papa e dos muitos mosteiros que esconderam os judeus dos Nazis e os alimentaram sub-repticiamente, quando a detecção poderia significar a tomada do Vaticano pelos Nazis, é, na minha opinião, uma adição brilhante à história do cristianismo.

Essa carta, suponho, fornece um pouco mais de apoio para aqueles (diferente de mim) que desejam ver Pio XII canonizado. Ainda assim, a escrita do rabino Kertzer oferece uma visão mais valiosa e universal. Em seu livro de 1947, With an H on My Dog Tag, o rabino Kertzer se concentrou no rabino-chefe de Roma, Israel Zolli, que criou controvérsia ao se tornar católico. A conversão de Zolli trouxe acusações de outros judeus no pós-guerra de que Zolli erroneamente ‘se recusou a aceitar o martírio quando os alemães entraram em Roma’. O rabino Kertzer teve uma visão clara, mas compassiva de Zolli, e emitiu esta advertência : ‘Um crítico em um apartamento confortável em Nova York ou Chicago que condena um homem por se recusar a ser martirizado deve examinar sua própria consciência’.

Nesse sentido, devemos tomar cuidado com a tentação da condescendência moral engendrada pela narrativa em que os dilemas éticos enfrentados pelos atores históricos são minimizados ou completamente eliminados.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/08/14/a-exigente-paternidade-dos-dias-de-hoje/