Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Crianças atingidas pelo horror da guerra
*Artigo
de Paulo Leandro Nogueira dos Santos
‘Há mais de cinquenta dias, o mundo
acompanha, pelas mídias sociais, o horror da guerra na Ucrânia. Parece, mas,
absurdamente, não é um cenário de filme de guerra : destruição, dor, morte,
abuso, violência, fuga, fome, doença, massacre e tantas outras atrocidades que
podem acontecer em um país e na vida das pessoas. Ou seja, ‘é um massacre
sem sentido, no qual estragos e atrocidades se repetem todos os dias’,
afirmou o Papa Francisco.
A
decisão horrenda e atroz de invadir um país, uma nação, seja por qual motivo
for – domínio, poder, economia, política –, e submeter o ser humano a uma
realidade de violência e desumanização é repugnante, perversa e inaceitável, em
qualquer cenário político. É importante lembrar que a guerra também está ocorrendo
em aproximadamente dezessete países no mundo, porém os holofotes midiáticos se
voltaram apenas para a Ucrânia. No território onde há guerras, também há
massacres, há vidas de inocentes ceifadas.
O
tema da guerra foi e é pensado ao longo da história por distintos autores. Carl
Von Clausewitz, no tratado Sobre a Guerra (Vom Kriege),
define a guerra como ‘um ato de violência destinado a forçar o adversário a
submeter-se à nossa vontade’, e o seu constitutivo em uma tríade : a
violência, o ódio e a animosidade. A célebre definição clausewitziana de que ‘A
guerra é a continuação da política por outros meios’ faz pensar que os
meios pelos quais se fazem guerra, infelizmente, justificam um exercício
violento do poder político de uma nação sobre outra. Carl Schmitt, em O
conceito do político, trata de um operador da guerra : a eleição de um
inimigo a ser eliminado.
Podemos
até ter a ilusão de que a instrumentalização da violência é uma ação necessária
para mudar ou conquistar alguma realidade para o melhor. Contudo, não será para
o bem. Hannah Arendt já nos alerta que ‘a prática da violência, como toda
ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento’.
Outro
operador da guerra é conceito de banalização do mal,
desenvolvido por Arendt. ‘o mal nos é apresentado em personagens
relativamente medíocres, que nesse sentido são ‘banais’ : são meros
burocratas delinquentes, como afirma o teólogo Karl-Josef Kuschel; enfim, é o
mal se apresentando por detrás da máscara de ‘pessoa do bem’ ou da guerra
em vista de um ‘bem’. A banalização do mal significa a execução não
questionada de um comando que vem de cima para baixo. Burocratas são aqueles
que servem às formas violentas de poder, sem questioná-las, sem assumir as
responsabilidades, porque só são executores. E, nesse sentido, só se faz guerra
com um aparato burocrático, que banaliza a vida, à medida que não se tem
responsabilidade.
Na
teologia clássica, Santo Agostinho conceituava o mal como ausência do
bem, isto é, aquilo que não tem substância própria. Porém, com as
experiências do século XX que atentam contra a humanidade, Kuschel sinaliza
para o retorno da questão teológica e antropológica : ‘questão da teodiceia :
como pode o bom Deus Criador permitir o mal? E a antropodiceia : como é que as
boas criaturas de Deus podem perpetrar crimes como esses?’
Kuschel,
ainda, apresenta-nos algumas questões para refletirmos : ‘desde os tempos de
Jó, a teologia enfrenta a questão de duas faces : primeiro, como conciliar a
existência do mal com a fé numa Criação boa e num Criador justo? Segundo, o que
há no ser humano que o capacita a sempre voltar a cometer crimes de
lesa-humanidade?’.
Se,
nas religiões, o mal é um problema teológico insolúvel, a guerra é uma
expressão política e social do mistério do mal, cuja finalidade é a morte, a
aniquilação da existência humana. Pensar a guerra à luz do mal é voltar o nosso
olhar para o ser humano, como coautor e vítima de maldade. Coautor, por causa
do mau uso do livre-arbítrio. Vítima, porque o mal praticado o desfigura como
pessoa. Então, vale a pergunta : como o ser humano se ‘configura’ e ‘des-configura’,
no contexto de guerra?
Bem,
primeiro vale considerar o quão paradoxal é, pois, de um lado, temos a pessoa
enquanto promotora da paz, e, do outro, é aquela que também promove a guerra.
Aqui podem-se conceber duas situações : a primeira, o humano ‘des-figurado’
da sua dignidade divina e humana; e a segunda, a ‘figuração’ do mal
personificada na ação humana.
Na
narrativa bíblica da criação, em Gênesis 1,26-27, ‘Deus disse : Façamos o
homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança… E criou Deus o homem à sua
imagem; à imagem de Deus o criou.’ Ela revela que a dignidade humana se
encontra também no pertencimento e na semelhança ao seu Criador, pois o homem e
a mulher foram feitos à imagem e semelhança de Deus. Ora, a pessoa carrega na
essência do seu ser o humano e o divino, ou seja, traz em si a divindade do Criador.
O humano, mesmo com a fragilidade ou limitação da própria condição, possui uma
característica que transcende a realidade.
No
contexto de guerra, a centralidade, a defesa e a promoção da vida humana são
desconsideradas, banalizadas, no sentido de mascaramento de bem, e, por vezes,
eliminadas do objetivo maior. O maior bem é o ser humano, é a pessoa. A dor, a
fome, o sofrimento, o ser forçado a deixar sua casa, terra, cultura, país,
separar-se da família, ser violentado e abusado na sua humanidade e dignidade
significam que o humano está ‘desfigurado’ em sua realidade original,
naquilo que ele é em si.
Em
Isaías 52,14, na passagem do servo sofredor, diz-se : ‘tão desfigurado
estava o seu aspecto como homem, nem parecia ser humano.’ É essa condição
que o ambiente da guerra impõe ao ser humano. Nem parece mais humano. Perdeu
tudo. Perdeu toda a sua dignidade : a vida e o sentido. Ficamos estarrecidos ao
olhar o rosto das crianças, dos idosos e das famílias transpassados pela dor e
pelo sofrimento, e, com isso, estamos diante da ‘des-figuração’ do
humano e do divino. Pessoas fugindo do país, outras se escondendo nos porões ou
nos destroços, nas ruínas da guerra, em busca angustiante de salvar a própria
vida. Estamos diante do humano que sofre dolorosamente, com pavor e angústia,
no horto das Oliveiras da guerra. Jesus também sofre nos rostos dos corpos
atingidos pelos ataques bélicos. Encontramos nos refugiados e migrantes, que
fogem das bombas, o Cristo ‘des-figurado’ e crucificado.
Em
um discurso, no estádio de Moscou, o presidente da Rússia justificou a invasão
à Ucrânia, parafraseando o texto de João 15,13 : ‘não existe amor maior do
que dar a própria vida pelos verdadeiros amigos’. Mas, a realidade da
guerra nos mostra totalmente o contrário : desamor, atentado contra a vida, o
outro é inimigo e que precisa ser derrotado, combatido, o desejo de dominar e
controlar um povo. Enfim, é mais um que usa a bíblia para tentar justificar o
injustificável, além de deturpar o real sentido bíblico. O dar a vida no sentido
evangélico está em prol da vida e do bem maior, e jamais a favor da morte, da
divisão, do sofrimento e da violência. É uma atitude nobre, de entrega a uma
causa e um projeto maior que busca a salvação do outro, que tenta restabelecer
ou devolver a dignidade do próximo. Isso é amor. É doar a própria vida para
salvar o irmão, o amigo.
O
outro aspecto que podemos relacionar é a ‘figuração’ do mal sob a ação
humana. A etimologia da palavra diabo (diabollos), tradução
grega da palavra hebraica Satã, significa o que separa, nega, opõe-se, acusa,
aquele que engana. O teólogo Joseph Ratzinger já dizia que o diabo é a negação
da pessoa, é a despersonalização, é o mal que deixa a pessoa sem identidade
humana, sem rosto. Quando a ação da pessoa se direciona para a divisão, a
discórdia, a mentira, a opressão, a desintegração, estamos diante do diabo, do
mal personificado na ação de pessoas. Portanto, o fato de aquela figura do
nosso imaginário, do demônio de chifre, horrendo, príncipe do inferno, está
presente no mundo da guerra, transvertido de outra forma, concretizado a partir
da ação do homem ou da mulher que atenta contra a vida, divide, desintegra o
outro, oprime, mata e transforma a vida do humano em um inferno.
Existe
um inferno maior do que o contexto da guerra, no qual crianças, mulheres,
idosos, famílias passam pelos piores sofrimentos experimentados na vida e pelas
piores dores que possam sentir? Pode até existir, contudo, na nossa realidade
humana atual, este é o maior.
Alberto
Caieiro, pseudônimo de Fernando Pessoa, adverte-nos para a transformação que a
guerra opera : ‘A guerra, como tudo humano, quer alterar. Mas a guerra, mais
do que tudo, quer alterar e alterar muito. E alterar depressa. Mas a guerra
inflige a morte.’
A
guerra altera a vida, a rotina, a cultura, os sonhos, os projetos, o bem viver
e o bem-estar, o emocional, o psicológico de uma pessoa, e, por consequência,
de um povo. É uma vida aterrorizante, pois, como diz o poeta ucraniano Serhiv
Zhadan : ‘nunca mais veremos rostos familiares. Somos refugiados. Vamos
correr a noite toda.’
É,
nesse contexto de guerra, que o humano é ‘des-figurado’, porque
encontramos duas realidades como consequência de uma ação que marcará
eternamente a vida humana e a história de um povo, de uma nação.
Percorremos
um caminho em que a guerra foi abordada e conceituada por algumas
personalidades intelectuais importantes. Passamos pelo retorno de questões, as
quais a Teologia é desafiada a repensar, a partir da experiência do século XX,
até o momento atual, e olhar o humano na perspectiva existencial, olhando para
o jogo da palavra ‘des-figuração’ do humano e ‘figuração’ do mal.
Queremos finalizar desafiando vocês, leitor e leitora, a se interrogarem : o
que a guerra lhe faz pensar? Qual é o seu olhar para o ser humano?’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://domtotal.com/noticia/1578835/2022/05/a-des-figuracao-do-humano-e-a-figuracao-do-mal-no-contexto-da-guerra/