Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Denise Chrispim Marin,
jornalista
‘Quando o padre Mário da Silva entrou
na Faixa de Gaza, logo depois do fim da guerra de 2009, encontrou um povo
desesperado entre prédios em ruínas e uma pequena comunidade católica ao redor
de um sacerdote idoso e ansioso pela aposentadoria. O paulistano tinha passado
seus anos anteriores em trabalho missionário em Mendoza, na Argentina, e nos
estudos de teologia e filosofia em Roma. Ao ver pessoas vivendo em tamanha
dificuldade e privação, lembra-se ele, sentiu que era ‘chamado’.
Receber um ‘chamado’ é uma graça com significado especial para os religiosos.
Quase sempre, diz respeito ao despertar de uma vocação ou a uma missão que
envolve sacrifícios.
‘Senti
muita pena daquelas pessoas. Até então, eu sabia que elas sofriam injustiças e
dificuldades. Mas não as havia visto nem falado com elas’... ‘A experiência em Gaza mudou minha concepção
sacerdotal. Antes, eu estava mais acostumado ao trabalho espiritual e acabei
chamado para um intenso trabalho social.’
Ao retornar a Roma, o padre da
Congregação do Verbo Encarnado pediu para substituir o pároco da Igreja da
Sagrada Família. Como não havia concorrentes para o posto, mudou-se para a casa
paroquial em 2012. Tornou-se o único padre católico de Gaza, pastor espiritual
de uma comunidade de 2.000 almas na época, quase todas originalmente católicas
ortodoxas, e provedor de todo tipo de ajuda a milhares de cristãos muçulmanos.
Nascido e crescido em Santo Amaro, em
São Paulo, o padre logo percebeu as necessidades mais frequentes e a falta de
oportunidades na vida de qualquer cidadão de Gaza. Ele costuma enumerá-las : energia
elétrica disponível por apenas quatro horas ao dia; contaminação de 95% da água
disponível; taxa de 47% de desemprego; saneamento básico inexistente; enorme
quantidade de mutilados e, por fim, zero liberdade.
‘Todos
os dias, o ‘trabalho’ de pais de família consiste em mendigar pelas igrejas
cristãs, mesquitas, instituições sociais e organismos internacionais. Eles
pedem dinheiro, comida, qualquer coisa que sirva para pagarem contas e se
alimentarem’, comenta.
Liberdade zero
Em suas diferentes dimensões, a falta
de liberdade sensibiliza especialmente o sacerdote, por condenar a população
local a sua situação de penúria permanente. Fisicamente, Gaza está cercada por
muros e cercas — construídos por Israel e pelo Egito — que impedem a sua
população de ultrapassar esses limites. ‘As
pessoas não saem da mesma cidade há mais de dez ou quinze anos. Não podem nem
mesmo ir para a Cisjordânia’, constata, referindo-se ao outro território
palestino.
Entre Gaza e Ramallah, na Cisjordânia,
a distância é de 83 quilômetros. Mas qualquer caminho passaria por território
de Israel. Essa prisão os impede de procurar emprego em outros locais. Conforme
relatou, a maioria dos empregos disponíveis em Gaza é nos governos do Hamas,
que controla a área, e do Fattah, o partido majoritário na Cisjordânia que, aos
poucos, conseguiu ingressar no sistema político de Gaza.
‘Ainda
assim, quem tem emprego público recebe metade do salário a cada cinquenta dias’,
acrescenta.
As restrições são mantidas até mesmo em
casos de tratamento médico. Padre Mário lembra de uma moça de 22 anos, vítima
de leucemia, que não obteve autorização de Israel para tratar-se em um hospital
israelense. Há dois anos, ela morreu. As permissões são raras. Os hospitais
locais, por maiores que sejam os seus esforços, mais se parecem com açougues,
na opinião do sacerdote. ‘Essa impotência
generalizada alimenta o ódio.’
A total falta de liberdade de
expressão é outra limitação brutal, ainda mais para um brasileiro que nunca
havia experimentado a vida em um local tão cheio de sensibilidades. ‘Eu não posso opinar’, afirmou, com o
cuidado de esquivar-se das perguntas sobre as culpas de Israel e do Hamas pela
situação de Gaza. ‘Tenho muito boa
relação com o Hamas, que protege a igreja contra ataques e se mostra amigo dos
católicos’, afirma.
Apesar de seu uso obrigatório ter sido
abolido desde o Concílio Vaticano II, concluído em 1965, a batina faz parte do
vestuário de padre Mário. No Brasil, sua decisão de acolher o conselho dos
líderes de sua ordem religiosa e vestir-se como os antigos sacerdotes poderia
causar alguma estranheza. Em Gaza, comenta ele, a decisão é bem-vinda : não o
diferencia dos demais, acostumados a um traje similar, a túnica.
Ao chegar em Gaza, em 2009, padre
Mário falava espanhol, inglês e italiano, além do português, e nenhuma palavra
de árabe. Para celebrar as missas diárias, decorou os trechos fixos do missal
em árabe e pediu a ajuda de um tradutor do inglês para a língua local nas
partes móveis, como a homilia. Durante um ano, tomou aulas de árabe com uma
professora. Mas abandonou o curso e se dispôs a aprender ‘na marra’. Hoje, dá as bênçãos, reza as missas e atende os
palestinos no idioma.
‘Só
Deus sabe quanto foi difícil. Mas, depois de tantos anos fora do Brasil, agora
eu enrolo em português’.
Entre ruínas
Sob seu domínio há mais espaços do que
a igreja e a casa paroquial. Padre Mário comanda uma estrutura que envolve
ginásio de esportes, biblioteca, sala de jogos, três escolas do jardim da
infância ao colégio, orfanato, asilo para idosos. Não está sozinho no
gerenciamento de toda essa estrutura.
Doze religiosas de três ordens
diferentes atuam nas suas áreas de especialização. As do Verbo Encarnado, a
mesma ordem do padre, cuidam do trabalho pastoral; as Missionárias da Caridade,
fundada por Madre Teresa de Calcutá, atuam especialmente na gestão do orfanato
para cinquenta crianças abandonadas e do asilo para quinze idosos.
As Irmãs do Rosário mantêm uma escola
e ajudam nas duas outras da paróquia. No total, a Igreja Católica oferece
educação para 2.300 crianças e adolescentes em Gaza. A própria paróquia se
incumbe ainda de dar abrigo e proteção a mulheres que estariam sujeitas a
perseguição e até mesmo à morte, muitas vezes devido a uma gravidez fora do
casamento. ‘Elas são muito pobres, se
escondem aqui e, quando dão à luz, geralmente entregam o bebê para o orfanato.’
Do pátio da Igreja da Sagrada Família
saem cerca de 600 cestas básicas e suprimento de remédios para 200 famílias por
mês para católicos e muçulmanos, sem distinção. De sua sacristia saem projetos
mais ambiciosos, como o de implantação de energia solar em 46 casas, o que
permite a essas famílias o acesso à eletricidade durante vinte horas por dia.
Um dos programas mais recentes da
paróquia é o de geração de postos de trabalho para cinquenta jovens. Mas há
também uma iniciativa para aliviar a tensão cotidiana dos adultos e fazê-los
rir : as aulas de zumba, que o padre prefere chamar de ‘aeróbica’.
Os recursos para tocar o dia a dia
dessa superestrutura vêm do Patriarcado Latino, a arquidiocese Católica Romana
em Jerusalém, do próprio Vaticano e de instituições beneficentes dos Estados
Unidos e na Alemanha. Do Brasil, padre Mário nada recebe. ‘Nunca vi um trabalho pastoral como este aqui
de Gaza. Talvez haja algo similar na Síria e no Iraque’, afirma.
Se o trabalho social aumenta a cada
ano, a missão espiritual tem abarcado cada vez menos católicos. A comunidade
católica totalizava 2.000 fieis em 2012, quando o sacerdote chegou a Gaza para
ficar. Há catorze anos, chegara a 4.000. Agora, envolve 1.100. Padre Mário
explica que, a cada rara chance que uma família tem de conseguir autorização
para sair de Gaza, vai e não volta mais.
O sacerdote não vê discriminação aos
católicos da Faixa de Gaza, acostumados a respeitar costumes muçulmanos
mesclados aos da cultura palestina. As mulheres cobrem a cabeça, os católicos
não comem em público durante o dia na época do Ramadã, período de jejum para os
muçulmanos. As procissões saem da igreja sem travas nem reações indignadas.
Crianças e jovens das duas religiões vão às mesmas escolas.
Os pesadelos da guerra permanente e da
falta de oportunidades instigam a população, em geral, e os católicos, em
particular, a escapar de Gaza na primeira oportunidade. A maioria não tem longa
história familiar no local.
Guerra e perdão
Durante a Marcha do Retorno, entre
abril e junho, a reação das tropas de Israel às manifestações dos palestinos de
Gaza trouxe ao padre Mário o temor de uma nova intifada. Os 53 dias de conflito
em 2014 deixaram um rastro de destruição ainda visível ao redor de sua
paróquia, que acolhera em sua estrutura cerca de 1.400 pessoas durante todo
esse tempo. Parte da casa das freiras foi destruída por uma explosão : uma
coluna de concreto caiu e arrasou dois quartos, e as janelas foram arrancadas e
voaram pelos ares.
A trinta minutos de caminhada da
igreja, a cúpula da antiga mesquita Khanilunes continua no chão. Há escombros
na mesma rua da paróquia, a 1 quilômetro. ‘Nas
tréguas, nós aproveitávamos para distribuir ajuda e visitar os lugares
destruídos porque muitas famílias voltam para lá com a esperança de recuperar
seus pertences. As pessoas passavam carregando colchões, botijões de gás,
panelas. É muito triste’, relata.
No período das Marchas, em especial
nas sextas-feiras, podiam ser ouvidos da paróquia os tiros disparados pelos
soldados israelenses contra os manifestantes palestinos e as sirenes das
ambulâncias que recolhiam os feridos. O hospital cristão ficou abarrotado, e
muitos feridos tiveram de sofrer amputações porque as balas dos fuzis
israelenses explodem ao atingir os alvos. Depois, conta o sacerdote, veio o
período das pipas incendiárias lançadas de Gaza para Israel, que respondeu com
inúmeros bombardeios.
‘Eram
bombardeios fortes, desproporcionais, que geram um temor espantoso nas pessoas.
Os alvos, em geral, são as posições do Hamas. Mas, na semana passada, um prédio
ao lado da praça pública foi destruído. Duas crianças e um adulto morreram.
Também foi bombardeada a casa de um dos nossos’, lembra.
No último 2 de agosto, Israel impôs
sobre Gaza um novo bloqueio no fornecimento de combustíveis, inclusive gás de
cozinha, e de medicamentos, o que levou à redução do período diário de
funcionamento do hospital para crianças com câncer. Abrandou essa trava treze
dias depois. Mas se trata de iniciativa recorrente, notícia má sempre esperada
pelos locais.
‘Qualquer
medida tomada significa a piora do sofrimento.’
Há cerca de um mês, segundo o padre, o
Hamas disparou cerca de oitenta foguetes contra Israel, que, como represália,
bombardeou Gaza duramente. Muitas pessoas pediram para se refugiar na igreja
porque sabiam que um ataque à paróquia viraria um escândalo mundial. Mas não
foi preciso. ‘Foram duas noites de guerra.’
A cada dia, padre Mário é desafiado a
seguir com a mensagem cristã de perdão e a convencer católicos e muçulmanos a
se manterem impermeáveis às pregações do ódio e unidos diante das injustiças —
mesmo diante da falta de perspectivas de um acordo de paz profundo e duradouro.
O quadro político da região é o menos
favorável para a negociação de um novo acordo de paz entre israelenses e
palestinos. Cada lado se mostra encastelado em suas posições mais defensivas, e
não há dos Estados Unidos e das demais potências nenhum sinal em prol do
diálogo e da conciliação.
‘Não
há vontade nem de um lado de outro. O que resta a nós, cristãos, é perdoar, por
mais que haja injustiça.’’
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