A incredulidade de São Tomé, de Caravaggio. |
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista
e mestre em História da Igreja
‘Inúmeras vezes, a história foi
instrumentalizada para fins políticos. Do ‘cristianismo
positivo’ de Hitler, que chegou a exaltar o que ele considerava o
nacionalismo germânico de Lutero para atrair os protestantes à sua nova ‘religião política’, à ideia de ascensão
de ‘um novo império romano’, a
proposta de Mussolini que respaldou sua estatolatria. De repente, as figuras e
os eventos históricos ganham vida para sustentar batalhas do presente e acabam,
em muitos casos, causando os mesmos estragos de outrora. É o que se chama na
Itália de ‘uso público da história’,
prática muito presente também no processo de institucionalização do
cristianismo.
Carlos Magno, que desejava ser o novo
Constantino, fez com que o papado, então enfraquecido, ficasse à mercê das
ingerências de seus sucessores e, assim, recebesse novo impulso. A grande ‘gafe’ da coroação do primeiro imperador
do Sacro Romano Império, no ano 800, foi a demonstração disso. Leão III, por
uma série de razões que ainda hoje são debatidas fazendo uso das únicas três
fontes medievais disponíveis - uma pontifícia, uma imperial e outra biográfica
- se vê praticamente ‘obrigado’ a
ungir o novo rei dos francos. Com a entronização de ‘um novo Constantino’ - o imperador responsável por transformar o
cristianismo em uma religião lícita, no século IV - a garantia da sobrevivência
do cristianismo na alta idade média era tida como certa. Carlos Magno, evocando
figuras do passado, se transforma em rex
sacerdos, título que, posteriormente, passaria a ser reivindicado pelo
próprio papa na famosa luta das investiduras, três séculos depois.
E a ideia de ‘cristianismo perfeito’ atribuída à vivência primeiros cristãos?
Como não falar sobre o conceito de ‘idade das trevas’ que desconsidera os
feitos luminosos desse período? E as cruzadas, interpretadas tão somente como
uma investida cristã contra o avanço dos muçulmanos, sem levar em consideração
os interesses comerciais por trás das campanhas militares nas terras do
Oriente? E o monge que, de maneira isolada, concebeu a teoria da terra plana e,
ao ser descoberto séculos depois, impôs à Igreja os títulos de retrógrada e
hostil à ciência que a marcariam para sempre? E tudo isso vem sendo reproduzido
por pessoas sem o mínimo de senso crítico, que justificam o próprio viés
ideológico a partir da reprodução ‘canonizada’ e ‘infalível’ de eventos e
personagens ‘míticos’. Na atualidade,
fazem isso com imperadores, ditadores, torturadores e até com papas.
O livro ‘A fábrica do falso : as estratégias da mentira na política
contemporânea’, de Vladimiro Giacché, explica como uma história feita de
silêncios e omissões e construída na geração mass media, contribuiu para mudar o curso dos acontecimentos. Se
observarmos, tal constatação de Giacché se reflete amplamente nas redes
sociais, hoje.
Em termos de catolicismo, não
surpreende esse retorno a uma ‘tradição
fabricada’ que se limita ao Concílio de Trento como forma de oposição e
resistência ao papado atual. Como também não surpreende a divulgação de dezenas
de encíclicas e documentos papais do século passado que, desmembrados do seu
contexto, entram para acirrar os ânimos dentro do cenário eleitoral brasileiro.
Ora maquiada, ora caricaturada, a
história do cristianismo cai nas mãos de figuras messiânicas na política e na
Igreja que, sem recorrer às fontes históricas - por vezes, intencionalmente - a
transformam em um cavalo de batalha dentro desse emaranhado jogo de interesses.
Se um dia quiseram resgatar a história do cristianismo das mãos dos iluministas
e, posteriormente, de dezenas de outros céticos, é hora de resgatá-la das
interpretações marginais feitas tanto por católicos partidários quanto por
aqueles que sequer conhecem a religião fundada por Jesus Cristo.’
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