domingo, 16 de setembro de 2018

A interpretação caricaturada do cristianismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A incredulidade de São Tomé, de Caravaggio.
A incredulidade de São Tomé, de Caravaggio.
 *Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja


Inúmeras vezes, a história foi instrumentalizada para fins políticos. Do ‘cristianismo positivo’ de Hitler, que chegou a exaltar o que ele considerava o nacionalismo germânico de Lutero para atrair os protestantes à sua nova ‘religião política’, à ideia de ascensão de ‘um novo império romano’, a proposta de Mussolini que respaldou sua estatolatria. De repente, as figuras e os eventos históricos ganham vida para sustentar batalhas do presente e acabam, em muitos casos, causando os mesmos estragos de outrora. É o que se chama na Itália de ‘uso público da história’, prática muito presente também no processo de institucionalização do cristianismo.

Carlos Magno, que desejava ser o novo Constantino, fez com que o papado, então enfraquecido, ficasse à mercê das ingerências de seus sucessores e, assim, recebesse novo impulso. A grande ‘gafe’ da coroação do primeiro imperador do Sacro Romano Império, no ano 800, foi a demonstração disso. Leão III, por uma série de razões que ainda hoje são debatidas fazendo uso das únicas três fontes medievais disponíveis - uma pontifícia, uma imperial e outra biográfica - se vê praticamente ‘obrigado’ a ungir o novo rei dos francos. Com a entronização de ‘um novo Constantino’ - o imperador responsável por transformar o cristianismo em uma religião lícita, no século IV - a garantia da sobrevivência do cristianismo na alta idade média era tida como certa. Carlos Magno, evocando figuras do passado, se transforma em rex sacerdos, título que, posteriormente, passaria a ser reivindicado pelo próprio papa na famosa luta das investiduras, três séculos depois.

E a ideia de ‘cristianismo perfeito’ atribuída à vivência primeiros cristãos? Como não falar sobre o conceito de ‘idade das trevas’ que desconsidera os feitos luminosos desse período? E as cruzadas, interpretadas tão somente como uma investida cristã contra o avanço dos muçulmanos, sem levar em consideração os interesses comerciais por trás das campanhas militares nas terras do Oriente? E o monge que, de maneira isolada, concebeu a teoria da terra plana e, ao ser descoberto séculos depois, impôs à Igreja os títulos de retrógrada e hostil à ciência que a marcariam para sempre? E tudo isso vem sendo reproduzido por pessoas sem o mínimo de senso crítico, que justificam o próprio viés ideológico a partir da reprodução ‘canonizada’ e ‘infalível’ de eventos e personagens ‘míticos’. Na atualidade, fazem isso com imperadores, ditadores, torturadores e até com papas.

O livro ‘A fábrica do falso : as estratégias da mentira na política contemporânea’, de Vladimiro Giacché, explica como uma história feita de silêncios e omissões e construída na geração mass media, contribuiu para mudar o curso dos acontecimentos. Se observarmos, tal constatação de Giacché se reflete amplamente nas redes sociais, hoje.

Em termos de catolicismo, não surpreende esse retorno a uma ‘tradição fabricada’ que se limita ao Concílio de Trento como forma de oposição e resistência ao papado atual. Como também não surpreende a divulgação de dezenas de encíclicas e documentos papais do século passado que, desmembrados do seu contexto, entram para acirrar os ânimos dentro do cenário eleitoral brasileiro.

Ora maquiada, ora caricaturada, a história do cristianismo cai nas mãos de figuras messiânicas na política e na Igreja que, sem recorrer às fontes históricas - por vezes, intencionalmente - a transformam em um cavalo de batalha dentro desse emaranhado jogo de interesses. Se um dia quiseram resgatar a história do cristianismo das mãos dos iluministas e, posteriormente, de dezenas de outros céticos, é hora de resgatá-la das interpretações marginais feitas tanto por católicos partidários quanto por aqueles que sequer conhecem a religião fundada por Jesus Cristo.


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