*Artigo
de Fabrício Veliq,
teólogo
protestante
‘Em tempos tão polarizados quanto este
em que vivemos no nosso país, aliando-se à grande hegemonia cristã predominante
em nosso contexto, é sempre possível que surjam discursos que não se coadunam
com o Evangelho e, curiosamente, são suportados por bases bíblicas aleatórias. Contudo,
algo que é sempre importante de se lembrar é de que todo texto, retirado do seu
contexto, torna-se pretexto para se dizer o que quiser. Essa máxima, embora
muito apreciada por todos que a ouvem, constantemente é negligenciada e usada
para fazer diversos tipos de afirmativas de cunho cristão.
Dentre os diversos temas em voga em
nosso país, recentemente o tema da violência surge com força, principalmente,
em época eleitoral. Diante desse cenário, não é difícil encontrar os discursos
que pregam a violência como solução para as questões da sociedade e da
criminalidade. Frases como ‘tem que matar
mesmo’; ‘bandido bom é bandido morto’
etc são usadas por diversas pessoas que se dizem cristãs e, para justificar
tais posições, tomam alguns versículos bíblicos aleatórios e fora de contextos.
Os mais cotados são os textos do Pentateuco, em que está em voga a famosa lei
de talião, do olho por olho e dente por dente e, nesse sentido, se alguém mata,
tem que morrer e se alguém fere alguém deve ser ferido, bem como o texto do
Novo Testamento, em que Jesus diz para Pedro para pegar em espadas no evento
narrado em Lucas 22.
Que os textos do Antigo Testamento e a
lei de talião não deveriam nem ser considerados para esse problema pelo viés
cristão parece muito claro. Afinal, o ensinamento de Jesus segue justamente na
contramão disso. ‘Eu, porém, vos digo’
lido constantemente no sermão do monte, mostra o caráter de desvinculação
proposto por Jesus das antigas ordenanças do Antigo Testamento. No lugar da lei
de talião, deve-se reinar, a partir de agora, a lei do amor, ‘para que vos torneis filhos do vosso Pai que
está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover
sobre justos e injustos’ (Mt 5,45). Nessa nova proposta, a lei da vingança
não faz mais sentido e, consequentemente, não deveria fazer parte do discurso
cristão que, obviamente, deve seguir os ensinamentos de Jesus.
O texto de Lucas 22, por sua vez, é
usado como tentativa para justificar a violência nos ensinamentos de Jesus.
Seria como se dissesse : ‘tá vendo, Jesus
mandou os discípulos se armarem e, por este motivo, nós também, cristãos,
devemos ser a favor do porte de armas etc’. Fazer isso, todavia, é tirar o
texto do seu contexto sem atentar que, se Jesus realmente tivesse dito isso no
sentido literal estaria indo contra todo seu ensinamento para com seus
discípulos ao longo dos 3 anos de convivência, o que tornaria o próprio Jesus
um hipócrita, por estar fazendo algo que ele mesmo condenou anteriormente.
Assim, pela própria coerência da pregação de Jesus, o texto deve ser lido em
sua forma de parábola, significando que um novo tempo está por vir sobre os
discípulos, um tempo de violência e perseguição contra eles, sendo necessário
que estivessem preparados para resistir a isso, não com armas (afinal, 2
espadas para 11 homens mostraria Jesus como péssimo estrategista de guerra),
mas com o próprio Evangelho.
Dessa forma, o texto de Lucas também
não se sustenta quando usado para justificar o uso da violência, ou o porte de
armas. Deve-se sempre lembrar que a palavra de Jesus e sua pregação sempre
foram voltadas para o amor, sendo este, conforme nos diz a primeira carta de
João, aquilo que o próprio Deus é.
Pelo exemplo de Jesus e pela narrativa
evangélica, bem como tendo como base todo o Novo Testamento, a violência não se
mostra como aquilo desejado por Deus para a conduta na sociedade. Seguir o
exemplo de Cristo, assim, se mostra dirigir-se na contramão de qualquer
discurso que a incita, sendo isto também parâmetro para dizer se algum discurso
é ou não cristão.
Todo discurso que promove a violência
não é ancorado nos ensinamentos de Jesus e todo aquele que o prega não
compreendeu ainda a mensagem do Evangelho que liberta e vence, não pela força
da violência, mas pela fraqueza do amor.
Em tempos de violência constante em nosso
país, os/as cristãos/ãs não devem ser os que a propagam, antes aqueles/as que
mostram que há outro caminho possível, em que a luta se dá de maneira
diferente, não pelo uso das armas, mas pelos atos de amor consciente e
engajado, denunciando as injustiças e as misérias, propondo um caminho que
preze pela equidade de dignidade e condições para todos, de maneira que os
vislumbres do Reino de Deus se faça presente na sociedade.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1291994/2018/09/um-cristianismo-que-se-arma-continua-sendo-cristao/
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