‘Perseguição, conflitos e violência
generalizada forçaram 69 milhões de pessoas em todo o mundo a deixarem suas
casas e procurem abrigo em outras nacionalidades em 2017. Os dados são da
Agência da ONU para Refugiados, e apontam que mais da metade desse deslocamento
(52%) forçado foi feito por menores de idade. Esta é considerada a maior crise
de refugiados desde a Segunda Guerra.
Do total de deslocados, 25,4 milhões eram
refugiados, 40 milhões deslocados internamente, e 3,1 milhões requerentes de
asilo. Na América Latina o Brasil é o
pais com maior número de refugiados e solicitantes de refúgio (148.645 em
2017). Há no país 10.264 pessoas com status de refugiados, enquanto
os demais obtiveram permissão temporária de residência, e pouco mais de 85 mil
pedidos de refúgio estão sendo analisados pelo Ministério da Justiça.
Em condições extremas,
eles partem deixando para trás casa, parentes, amigos, profissões e a carregam
consigo dor, sofrimento e angustia. Os traumas pessoais dos refugiados e de
todos aqueles que são obrigados a deixar sua terra natal, se soma a tragédia
coletiva dos milhares que enfrentam a guerra, a fome e a perseguição política.
Permanecer no país de destino significa enfrentar os dramas do passado para dar
lugar a um presente e futuro melhor.
Atendida pela Missão Paz em São Paulo, Prudence
Kalambay Libonza saiu da República do Congo em 2006, fugindo de
perseguições políticas. Ela atuava na política local, e ajudava mulheres que
engravidavam antes e fora do casamento a não serem excluídas socialmente. O deslocamento de Prudence foi da fantasia
das telenovelas a dura realidade de um país preconceituoso e racista.
O caminho para o Brasil incluiu uma passagem por
dois anos em Angola, país vizinho do Congo, onde Prudence aprendeu a falar
português. ‘A vida era muito dura lá, eu
via as novelas brasileiras e tinha o sonho de vir para cá. Em Angola eu tinha a
sensação que iriam atrás de mim a qualquer momento, então eu achei melhor me
separar pelo mar. Eu estava cansada e angustiada, não dormia, comia mal, mas
tinha muita esperança com a vida aqui.’
A congolesa conseguiu o status de refugiada poucos
meses após desembarcar no Rio de Janeiro em 2008, época em que para ela o
Brasil estava aberto a receber e acolher pessoas com problemas. Prudência tinha
dificuldade para dormir e síndrome do pânico, o que se somava ao medo de não
conseguir uma vida melhor no país novo. Os filhos a ajudaram a revitalizar a
coragem, além da ajuda humanitária recebida no Brasil.
‘Minha
primeira crise aqui foi com o preconceito. Eu e meus filhos fomos chamados de
macacos muitas vezes. Minha autoestima ficou totalmente abalada, mas eu tinha
de fazê-los (os filhos) acreditar que poderíamos superar. Aprendi a viver no
Brasil e a me cuidar, e isso faz diferença para conseguir ter uma vida boa.
Conseguir documentos é o início de uma travessia muito mais profunda.’
A República Democrática do Congo é a terceira
colocada no ranking do deslocamento forçado. São 4,4 milhões de congoloses
deslocados internamente, 620.800 refugiados e 136.400 requerentes de asilo.
A doutora em psicologia clínica e coordenadora da
ONG Habitare Tereza Marques de Oliveira, parceira da Missão Paz, em São Paulo,
e afirma que um dos principais desafios é fazer com que o processo de escuta os
ajude a reorientar os sentimentos mais presentes, como vergonha, impotência,
desamparo, humilhação e desorientação.
‘Os imigrantes
são fortes,corajosos e cheios de esperança. Buscam melhores condições de
vida. Embora saibam que terão que enfrentar condições adversas para garantir
minimamente a própria sobrevivência . No trabalho com eles acolhemos o
sofrimento pelas perdas e também pela incerteza da vida que começa no país de
acolhida. Procuramos então , resgatar os sonhos,a força de vida para começar
uma nova história, sem contudo abrir mão de suas raízes’, conta.
Tereza conta ainda que é muito comum os refugiados e
imigrantes apresentarem desorganização psíquica assim que chegam, e em alguns
casos surtos psicóticos. ‘Eles perdem
tantas referências que muitas vezes não sabem bem que são. Temos de fazê-los
recuperar o sentimento de si. O trauma de ter visto familiares morrerem, de
serem perseguidos, faz eles sentirem algo como dormir e acordar sem saber
direito onde está e quem é. Eles ficam despersonalizados. E a maneira como eles
são acolhidos é fundamental para que esse surto não progrida’, afirma a
psicanalista.
O passado escravagista e xenofóbico brasileiro afeta
de maneira decisiva em como o refugiado irá sentir e lidar com a própria dor,
segundo o pesquisador da área Pedro Paulo Bicalho, do Conselho Federal de
Psicologia. Bicalho afirma que a aflição não é apenas psíquica e individual,
mas um sofrimento associado a falta de políticas públicas de acolhimento.
‘O Brasil tem
leis razoáveis para que os imigrantes e refugiados venham para cá, mas não para
que permaneçam. Isso tem muito a ver com a construção subjetiva da nossa
sociedade, que é escravagista e muito preconceituosa. Por isso é tão comum,
como estamos vendo em Roraima - porta de entrada para venezuelanos -, um
discurso fomentado pelas próprias autoridades locais de repelir o outro, alguém
estranho a nós e que deve ir embora o mais rápido possível’.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.missaonspaz.org/noticias/cpmm/25-06-2018/como-ser-refugiado-em-um-pas-de-herana-escravocrata-como-o-brasil
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