Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja
‘O caso Viganò continua tomando as manchetes dos
jornais. E não é para menos. Além das fortes acusações que o arcebispo
apresenta contra membros do alto escalão do Vaticano, desta vez é o papa, em
primeira pessoa, a ser responsabilizado no relatório que o ex-núncio dos
Estados Unidos chama de ‘testemunho’.
Não é necessário adentrar de novo na questão porque, certamente, você já deve
estar saturado com a quantidade de informações sobre o caso. Porém, não dá para
ignorar que, em meio ao excesso, informações importantes acabam passando
despercebidas, um prato cheio para a instrumentalização do caso. Primeira coisa
: suponhamos que a acusação de acobertamento que pesa contra Francisco venha a
ser confirmada. Qual suposto acobertamento seria esse? Um acobertamento em
relação ao ex-cardeal arcebispo de Washington, Theodore McCarrick. E o que ele
fez? Foi acusado pelo assédio de seminaristas, o que não se enquadra em crime
de pedofilia. Ainda que para o catolicismo seja algo que fere a moral e a
disciplina do sacerdócio, é necessário separar as coisas. Francisco não é
acusado de acobertar pedófilo, como muitos meios de comunicação, inclusive no
Brasil, divulgaram. Ele tem sido acusado, na verdade, de estar a par da má
conduta de McCarrick desde 2013, algo que, até agora, não tem sequer
documentação que ateste. Aliás, vale salientar que as lacunas e inconsistências
em relação ao envolvimento de Bento XVI e Francisco nesse caso, apresentadas
pelo documento de Viganò, ainda não foram esclarecidas por ele mesmo. Em
entrevistas a jornais italianos, ele apenas se limitou a repetir que ‘não faz isso por vingança’.
O papa, por sua vez, já demonstrou, pelo menos até
agora, que não pretende se pronunciar diante de pessoas que só fazem semear ‘a discórdia, o escândalo e a confusão’,
como disse esta semana em missa na casa Santa Marta. Porém, cogita-se que será
a Santa Sé a dar uma resposta frente às denúncias, em breve. Neste caso, ficará
a cargo secretário de estado - e papável
-, Pietro Parolin, elaborar uma
resposta.
A polêmica serviu para suscitar uma reflexão, a qual
complementa algo já levantado por um artigo sobre o neo-ultramontanismo,
publicado há algumas semanas. Uma parcela da Igreja americana ostenta um
espécie de ‘romanismo mais romano que o
de Roma’, algo que tem influenciado muita gente, inclusive no Brasil. No
caso dos Estados Unidos, como já lembrou o historiador italiano Massimo
Faggioli, que atua como professor no país, muitos desses ‘romanos romaníssimos’ são ex-protestantes que migraram recentemente
para a Igreja Católica. Essas pessoas, renunciando ao que consideram ‘um passado sombrio’ por causa da fé
protestante, acabam aderindo não À tradição católica na sua totalidade, mas a
UMA tradição católica ideologizada e, por conseguinte, contraditória na
essência, já que justifica a hostilidade - velada ou não - ao (atual) pontífice
em nome da ‘preservação da sã doutrina’.
Trata-se de
um romanismo sem o romano pontífice, o qual, no século XVI, seria chamado de
tudo, menos de catolicismo.
Nem Trento, convocado em pleno renascimento, e
precedido por dois pontífices bastante controversos, como Alexandre VI e Júlio
II, foi capaz de conceber um romanismo sem papa. Você pode perguntar : mas esse
movimento tem força? Não teria se parte da mídia católica americana não o
sustentasse. E é ela que tem fomentado, ainda mais, essa ‘busca pela verdade’; uma exigência de esclarecimento bastante
parcial que recai única e exclusivamente sobre uma pessoa : o papa. E os outros
nomes citados pelo dossiê de Viganò? Ao que parece, pouco importam. O
importante é levar o papa à renúncia a todo custo, já que, para eles,
finalmente, há clima que favoreça. Sem contar que o pedido de renúncia não é
motivado por questões doutrinais, mas por um documento que, pelo fato de
referir-se ao papa negativamente, tornou-se tão sagrado que sequer pode ser
contestado. No mínimo, o contestador será chamado de papista - título que, no
século XVI, era atribuído aos católicos pelos protestantes, diga-se de
passagem.
No meio disso tudo, tomando como base a própria história
da Igreja, vem o questionamento : qual a verdadeira motivação para se chegar ao
extremo de se pedir a renúncia de um papa nos tempos de hoje? Na última vez que
um romano pontífice se sentiu forçado a renunciar foi no século XV, em pleno
cisma do Ocidente. Será o início de uma ‘guerra
civil católica’, desta vez não convocada por cardeais conciliaristas, mas
por católicos que deturparam o romanismo? Talvez, para essa facção da igreja
americana que tanto defende ‘a verdade’,
deveria ser mais urgente dar uma resposta sobre o dossiê da Pensilvânia em vez
de propagar militância pró-renúncia.’
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