*Artigo
do Padre Paulo Ricardo
‘Pai-Nosso,
a mais perfeita das orações.
Ainda que
percorramos todas as Escrituras, não encontraremos, nem mesmo entre os Salmos,
uma oração mais bela e perfeita do que o Pai-Nosso. Na Oração do Senhor está
contida toda a ciência da vida espiritual.
*
* *
Durante seu
último período de ensino em Nápoles, entre os anos de 1272 e 1273, Santo Tomás
de Aquino dividiu-se entre a cátedra e o púlpito. É a essa época que pertence
uma série de homilias quaresmais pregadas pelo Angélico em dialeto napolitano e
posteriormente transcritas em latim por algum confrade seu. Entre as que
sobreviveram ao tempo, encontra-se uma densa, mas sucinta exposição sobre o
Pai-Nosso (Collationes in Orationem Dominicam), cujo prólogo apresentamos
abaixo em nova tradução ao português. Trata-se de um ‘escrito’ que, com a liberdade típica de um sermão proferido ante um
público de leigos e religiosos, preserva os traços característicos de um gênio
teológico como o de Santo Tomás. Análise minuciosa, clareza expositiva
e, sobretudo, o respaldo constante das Escrituras são algumas das
notas que dão a essa obra uma fisionomia genuinamente tomista; só no pequeno
trecho introdutório com que hoje damos início à sua publicação contam-se mais
de vinte referências bíblicas — citadas pelo Aquinate, provavelmente,
todas de memória.
Depois de
explicar a excelência da Oração do Senhor e as palavras invocatórias ‘Pai nosso que estais nos céus’, Tomás
expõe cada um dos sete pedidos que a compõem, concluindo com uma brevíssima
síntese de todo o Pai-Nosso, semelhante em certos pontos à que se lê em S. Th. II-II, q.
83, a. 9. Resumo de todo o Evangelho e centro a que
converge a riqueza dos Salmos, a Oração dominical ocupa o principal
lugar entre as demais orações; por ela não só aprendemos o que podemos
desejar (cf. De decem præceptis, pr.), mas ainda o modo com que o
devemos pedir, e nisto consiste o fundamento e ponto de arranque de toda a vida
espiritual. Esmiuçando a prece que, por ter em grau sumo as qualidades que uma
boa oração deve possuir, é com justiça a mais perfeita de todas, estas Collationes são
de grande proveito para a nossa meditação diária. E se bem que não tenham sido
vistas e revistas pelo autor, constituem, em todo o caso, uma joia da
literatura cristã medieval que ainda merece ser lida, apreciada e, acima de
tudo, meditada nos dias de hoje, em que rezar nunca foi tão necessário.
Foram esses os motivos que levaram a equipe Christo Nihil Præponere a
dá-las a conhecer a quantos estiverem interessados não só em aprender com o Aquinate,
mas também a orar com ele e com a ajuda dele.
O texto-base
de que nos servimos para realizar essa tradução é o estabelecido na conhecida
edição de Turim (cf. S. Thomæ Aquinatis, ‘In
Orationem Dominicam, videlicet ‘Pater noster’ expositio’, in :
R. M. Spiazzi (org.), Opuscula Theologica, vol. 2. 2.ª ed.,
Taurini-Romæ : Marietti, 1954, pp. 219-235), também disponível aqui, em formato
eletrônico. No que respeita aos critérios adotados, convém observar que, embora
procure manter-se fiel ao fraseado original, a versão portuguesa aqui
disponibilizada não tem a pretensão de ser ‘acadêmica’,
mas uma pequena tentativa de divulgar a obra de Santo Tomás de Aquino sem
trair-lhe o pensamento. Esta tradução, mais do que decalcar ad litteram,
procura dizer em português aquilo e só aquilo que o original diz sinteticamente
em latim. Por isso, as inelegâncias de estilo e a repetição frequente de certas
fórmulas correspondem, na medida do possível, ao sabor e à sobriedade do
original, carente de sutilezas escolásticas, palavras técnicas e voos oratórios
[1]. As palavras entre divisas (< >) são explicitações ou inserções de
nossa parte que visam ora esclarecer o texto, ora torná-lo mais fluido. A
tradução das citações bíblicas foi extraída, na maioria dos casos, das versões ‘Ave-Maria’ (195.ª ed., São Paulo :
Ave-Maria, 2011) e do Pe. Matos Soares (6.ª ed., Porto : Tip. Sociedade de
Papelaria, 1956). Além destas, foram utilizadas também, de quando em quando, as
traduções da CNBB e da Bíblia de Jerusalém.
Exposição
sobre a Oração do Senhor [2]
Santo Tomás
de Aquino
PRÓLOGO [3]
I. A
excelência do Pai-Nosso
1․
As cinco qualidades da oração․ —
A Oração do Senhor ocupa, entre as demais orações, o principal lugar, já que
possui as cinco qualidades de que <toda> oração se deve revestir. Com
efeito, a oração deve ser confiante, reta, ordenada, devota e humilde.
a)
Deve ser confiante, para que nos ‘aproximemos confiadamente do trono da graça’ (Hb 4,
16), como está escrito na Epístola aos Hebreus, e também firme na fé, como diz
São Tiago : ‘Peça com fé, sem nada hesitar’ (Tg 1, 6). A Oração do
Senhor é com razão a mais confiável, porque (i) foi instituída pelo nosso
advogado, o mais sábio dos pedintes, ‘no
qual estão escondidos todos os tesouros de sabedoria’ (Cl 2, 3)
e de quem diz São João : ‘Temos um
intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo’ (1Jo 2, 1).
Por isso, diz Cipriano : ‘Uma vez que
temos a Cristo como advogado junto ao Pai por nossos pecados, ao pedirmos
perdão de nossos delitos apresentemo-nos com as palavras do nosso defensor’
[4]. Ela parece ser, além disso, ainda mais confiável (ii) pelo fato de nos ter
ensinado a rezar aquele que com o Pai presta ouvidos à nossa oração, de acordo
com o Salmo : ‘Quando me invocar, eu o
atenderei’ (Sl 90, 15). Por isso, diz Cipriano : ‘Rogar ao Senhor com suas próprias palavras é
dirigir-lhe uma oração amiga, familiar e piedosa’ [5]. Daí que nunca se
saia desta oração sem fruto. De fato, como diz Agostinho, por ela são
perdoadas as faltas veniais [6].
b)
A nossa oração deve também ser reta, de maneira que o orante peça a
Deus o que lhe convém, pois, segundo Damasceno, ‘a oração é um pedido a Deus dos bens adequados’ [7]. Com efeito, a
oração deixa muitas vezes de ser atendida porque se pedem coisas inapropriadas :
‘Pedis e não recebeis, porque pedis mal’
(Tg 4, 3) [8]. De fato, é dificílimo saber o que se deve pedir, já
que tampouco é fácil saber o que se deve desejar. Igualmente, é permitido
aspirar ao que na oração é lícito pedir. Por isso, o Apóstolo reconhece : ‘Não sabemos o que devemos pedir, nem orar
como convém’ (Rm 8, 26). Ora, é a Cristo, nosso Mestre, que
toca ensinar o que temos de pedir, e por isso lhe rogaram os discípulos : ‘Senhor, ensina-nos a orar’ (Lc 11,
1). Por conseguinte, o que Ele nos ensina a pedir na oração é o que mais
retamente podemos desejar : ‘Quaisquer
que sejam as nossas palavras’, diz Agostinho <a esse propósito>, ‘nada diremos que já não esteja contido nessa
oração, contanto que rezemos de
modo justo e adequado’ [9].
c)
Em terceiro lugar, a oração tem de ser ordenada como o desejo
do qual é expressão. Pois bem, a ordem devida é que em nossos desejos e orações
prefiramos os bens do espírito aos da carne e as coisas celestes às terrenas,
conforme o que se lê no Evangelho segundo Mateus : ‘Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão dadas em acréscimo’ (Mt 6, 33). É isso o que o
Senhor nos ensinou a observar nessa oração, em que primeiro se pedem os bens
celestiais e só depois os terrenos.
d)
Deve também ser devota, pois a devoção em abundância torna
aceitável a Deus o sacrifício da oração, de acordo com o Salmo : ‘Invocando o vosso nome, levantarei as minhas
mãos. Como de banha e de gordura será saciada a minha alma’ (Sl 62,
5s). Ora, acontece muitas vezes de a devoção enfraquecer-se por causa do
excesso de palavras. Por esse motivo, o Senhor ensinou a fugir à excessiva
prolixidade da oração, ao dizer : ‘Nas
vossas orações, não multipliqueis as palavras’ (Mt 6, 7). E
Agostinho escreve a Proba : ‘Que a oração
não tenha excesso de palavras, mas de súplicas, se continua fervorosa a atenção’
[10]. Por isso, o Senhor instituiu essa breve oração. Mas a devoção, por sua
vez, nasce da caridade, que é amor a Deus e ao próximo, ambos os quais estão
presentes nessa oração. Com efeito, para manifestarmos nosso amor a Deus,
chamamos-lhe Pai; e para manifestarmos nosso amor ao próximo, oramos por todos
em comum dizendo : ‘Pai nosso’ e ‘Perdoai-nos as nossas ofensas’. A isso
nos move, pois, o amor aos semelhantes.
e)
A oração precisa, enfim, ser humilde, conforme o que diz o Salmo : ‘Ele se voltou para a súplica dos indigentes’
(Sl 101, 18), a parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18,
9-15) e o que se lê no Livro de Judite : ‘Sempre
vos foram aceitas as preces dos mansos e humildes’ (Jt 9, 16).
Ora, na Oração do Senhor se guarda a verdadeira humildade, que consiste
em nada presumir das próprias forças, mas tudo esperar da virtude
divina.
2․
Os três
efeitos da oração․ —
Deve-se notar, além disso, que a oração produz três bons efeitos.
a)
Em primeiro lugar, ela é um remédio eficaz e útil contra os
males. A oração livra-nos, pois, (i) dos pecados cometidos, como canta o
salmista : ‘E vós perdoastes a pena do
meu pecado. Assim também todo fiel recorrerá a vós’ (Sl 31,
5s). Desse modo orou o ladrão pregado à cruz, obtendo o perdão : ‘Hoje estarás comigo no paraíso’ (Lc 23,
42) e o publicano, voltando para casa justificado (cf. Lc 18,
9-14). Livra-nos também (ii) do medo dos pecados futuros, das tribulações e das
tristezas : ‘Alguém entre vós está
triste? Reze!’ (Tg 5, 13). Livra-nos, enfim, (iii) das
perseguições e dos inimigos : ‘Em
resposta ao meu afeto, acusaram-me. Eu, porém, orava’ (Sl 108,
4).
b)
A oração, em segundo lugar, é um meio eficaz e útil de obter
tudo o que se deseja : ‘Tudo o que
pedirdes na oração, crede que o tendes recebido’ (Mc 11, 24).
Mas se porventura não somos ouvidos, isto se deve a que ou não pedimos com
insistência, pois ‘é necessário orar
sempre sem jamais deixar de fazê-lo’ (Lc 18, 1), ou não pedimos
o que mais convém à nossa salvação : ‘O
bom Senhor’, diz Agostinho, ‘negando-nos
muitas vezes o que queremos, dá-nos o que deveríamos querer’ [11].
Assim sucedeu a Paulo, que três vezes rogou a Deus que lhe apartasse um espinho
na carne e não foi atendido (cf. 2Cor 12, 7s).
c)
Em terceiro lugar, é útil, porque nos torna amigos íntimos
de Deus : ‘Que minha oração suba até
vós como a fumaça do incenso’ (Sl 140, 2).’
Referências
- Cf. J.-P.
Torrell, Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Trad. port. de
Luiz P. Rouanet. 3.ª
ed., São Paulo : Loyola, 2011, p. 86.
- Ao presente
opúsculo se atribuem outros títulos em diferentes edições: Expositio
devotissima Orationis Dominicæ, Collationes de Pater noster, Expositio
de Pater noster. P. Mandonnet (1858-1936), importante historiador da
filosofia medieval, data-o do tempo da Quaresma de 1273 (cf. Bibliographie
Thomiste, Le Saulchoir, Kain, 1921, p. XVII, n. 72. A sua
autenticidade não é posta em dúvida por nenhum estudioso (cf. P.
Mandonnet, Des écrits authentiques de Saint Thomas d’Aquin. 2.ª ed., Freibourg, 1910, p. 107, n. 72;
A. Michelitsch, Thomas Schriften, vol. 1, Graz, 1913, p. 186,
n. 78; M. Grabmann, Die echten Shriften des hl. Thomas von Aquin, 3.ª ed., Münster i. W. 1949, p. 318). Pertence aos Reportata,
isto é, ao conjunto de obras que, não tendo sido escritas de próprio punho
por Santo Tomás, foram passadas ao papel seja por ditado, seja pela
transcrição (reportatio) de alguma homilia; a desta nos foi legada,
provavelmente, por Reginaldo de Piperno (c. 1230 – c. 1290), amigo e
secretário do Aquinate. Trata-se de escritos nem sempre revistos e
corrigidos pelo autor, mas recebidos, em todo o caso, de sua própria boca.
- Cf. Tomás
de Aquino, S. Th. II-II, q. 83,
a. 9; III Sent.,d. 34, q. 1,
a. 6; Compend. Theol. II, cc. 4ss; In
Matth., c. 6.
- Cipriano de
Cartago, De or. dom. 3 (PL 4, 521B).
- Id., ibid.
- Cf. Agostinho de
Hipona, Ench. 78․21 (PL 40, 270). É doutrina comum que os pecados veniais podem ser perdoados, mesmo sem contrição
perfeita, fora do sacramento da Penitência, desde que o fiel se
encontre em estado de graça (cf. E. Genicot; I. Salsmans, Institutiones
Theologiæ Moralis. 17.ª ed., Bruxelas : Universelle, 1951, p. 153, n.
238). É o que se deduz das seguintes palavras do Concílio de Trento : ‘Os
<pecados> veniais, pelos quais não somos excluídos da graça de Deus
e nos quais caímos com frequência, posto que com retidão e utilidade, e
sem qualquer presunção, se digam na confissão […], todavia podem ser calados sem culpa
e expiados por muitos outros meios’ (14.ª sessão, de 25 nov. 1551, c. 5;
DH 1680).
- João
Damasceno, De fide orth. 3․24 (PG 94, 1090). Por ‘bens adequados’ ou ‘convenientes’
(decentia) se entende o que é necessário à salvação. Isto não
significa, porém, que o cristão não possa pedir bens temporais a Deus;
pode pedi-los, mas não principalmente (principaliter), como se
fossem o fim da oração, mas de modo secundário, subordinado-os ao bem da
alma. De fato, os bens deste mundo, como o alimento, o vestuário etc.,
devem ser pedidos na condição de instrumentos (adminicula), isto é,
na medida em que nos auxiliam a chegar à bem-aventurança eterna, a conservar
a vida corporal, a dispor-nos com mais facilidade ao exercício das
virtudes e a servir melhor a Deus (cf. S. Th. II-II, q. 83,
a. 6, co.).
- Muitos autores
ensinam, baseados no claro testemunho das Escrituras (cf., por
exemplo, Mt7, 7s; 21, 22; Jo 14, 13s; 15, 7․16; 16,
23s; 1Jo 5, 14s), que a oração possui uma eficácia infalível, desde que cumpra quatro condições
imprescindíveis : (1) pedir para si mesmo (2) coisas necessárias à
salvação, como graças atuais eficazes, (3) de modo piedoso — o que abrange
a humildade, a firme confiança, a atenção e a petição em nome de Cristo
(cf. Jo 14, 13s; 15, 16; 16, 23s) — e (4) com perseverança. Se observados estes pré-requisitos, a oração
‘obtém infalivelmente o que pede em virtude das promessas de Deus’ (A.
Royo Marín, Teología de la Perfección Cristiana. Madrid : BAC, 2012, p. 425, n. 287).
Cf. S. Th. II-II, q. 83,
a. 7, ad 2; a. 15, ad 2; a. 16, co.
- Agostinho de
Hipona, Ep. 130, 12․22 (PL 33, 502); para uma explicação detalhada de todo
o Pai-Nosso, v. também, do mesmo autor, Serm. Dom.
2․4-11․15-39 (PL 34, 1275-1287). Santo Tomás repete esta
mesma tese em S. Th. II-II, q. 83, a. 9, co. : ‘Visto que a oração, com efeito, é como um
intérprete do nosso desejo diante de Deus, só podemos pedir retamente o
que retamente nos é permitido querer. Pois bem, na Oração dominical não
apenas se pedem todas as coisas que retamente podemos desejar, mas ainda
na ordem em que elas devem ser desejadas. De modo que esta oração não só
nos ensina a pedir, mas também retifica todos os nossos afetos’.
- Id., Ep.
130, 10․20 (PL 33, 502). De acordo com Santo Tomás, a atenção é
absolutamente necessária à oração, sobretudo à vocal, de modo que distrair-se deliberadamente (ex proposito) ao
rezar não só é pecado como também impede o fruto da oração, o que não se dá com a distração involuntária
(cf. S. Th. II-II, q. 83, a. 13, co. e ad 3). O Angélico distingue ainda, na resposta a
esta mesma questão, três tipos de atenção que se podem dar à oração vocal,
em graus crescentes de perfeição : a) atenção ad verba,
ordenada à correta enunciação das palavras; b) atenção ad
sensum, com a qual nos atemos ao sentido delas; e c)
atenção ad finem, ‘que atende ao fim da oração, ou seja, a
Deus e à coisa que se pede’ (A. Royo Marín, op. cit.,
p. 654, n. 494). No que respeita à duração, Santo Tomás afirma que a
oração deve, por um lado, ser a) contínua, na medida em que
procede da virtude da caridade — cujo influxo atual ou habitual perpassa
todos os atos de quem está na graça de Deus e os transforma, assim, em ‘oração’
incessante (cf. 1Ts 5, 17) — e, por outro, b)
transitória e proporcionada ao seu fim, ou seja : convém que a oração dure
o necessário para excitar o fervor interior (cf. S. Th. II-II, q. 83,
a. 14, co.; A. Royo Marín, op. cit., p.
655, n. 495).
- Id., Ep.
31, 1 (PL 33, 121).
Fonte :
* Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2017/09/27/rezando-o-pai-nosso-com-sao-tomas-de-aquino-parte-1/
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