*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico
e escritor
Uma imagem me vem
frequentemente à lembrança : Cristo diante de Pilatos, na farsa de julgamento
em que a sentença já estava previamente decidida, mas onde o julgador temia
pronunciá-la diante de um réu tão instigante. E uma de suas perguntas surgiu
quando o réu lhe disse : ‘... vim ao
mundo para dar testemunho da verdade’. Ao que Pilatos retrucou : ‘O que é a
verdade?’. E na descrição do evangelista João, ele saiu sem esperar a
resposta. Questiono-me, então : por que fazer uma pergunta, se não se quer uma
resposta?
Aliás, coisa muito
comum nos dias atuais. E ao mesmo tempo, pergunto a mim mesmo o que Jesus iria
respondê-lo. Creio que a resposta já estava diante de Pilatos, pois antes Jesus
já lhe dissera que viera para dar testemunho da verdade. Portanto, a verdade
era quem o enviou : o Pai. E fico com a dúvida : será que Pilatos entenderia
essa resposta, se Cristo a tivesse dado?
Tudo isso me traz
aos dias em que vivemos, onde essa cena certamente se repetiria em cada casa,
em cada esquina, em cada lugar deste imenso mundo conturbado pela ausência da
verdade. O que é a verdade? Confesso que, se me perguntarem, saindo da esfera
do transcendental eu não tenho uma resposta. Contudo, permito-me algumas
reflexões sobre isso.
Creio que existem
duas verdades. Sei que esta afirmação soa como enorme incoerência, pois a
verdade, por excelência e por necessidade, só pode ser uma. Todavia, a verdade
absoluta e imutável pertence, com exclusividade, ao universo do transcendente,
que ultrapassa (transcende) toda a nossa compreensão, toda a nossa ciência, e
consequentemente todas as nossas explicações. Essa, é a VERDADE. Mas existe
outra, a verdade que é própria da nossa realidade, que não é absoluta nem
imutável, mas com um consenso tal, que legitimamente a situa no ápice da
imanência. Para melhor distingui-la, vou denominá-la de ‘verdade humana’. Esta verdade, enquanto revestida da pureza que aos
humanos é possível, é o objetivo de todas as pessoas de caráter, de todos os
pesquisadores éticos, de todos os pensadores de boa vontade, de todos os
idealistas que imaginam um mundo quase perfeito, o único capaz de abrigar essa
verdade em nosso universo marcado pelas limitações.
O problema é que
essa verdade é sujeita a manipulações e interpretações oportunistas, a
disfarces muito bem engendrados, capazes de apresentar deslavadas mentiras,
dela transvestidas, enganando à grande multidão por longo tempo, e aos pequenos
grupos com maior discernimento, por pouco tempo. Pode-se então dizer que existe
uma verdade afirmada honestamente, mas que é transitória pelas limitações de
conhecimentos; e uma pseudoverdade, que é apresentada como tal, contudo
propositadamente acobertada por disfarces e justificativas.
Na ciência ela é
constantemente procurada, por vezes até parece ter sido encontrada, mas tem
duração transitória. Algum tempo depois, novas descobertas, novos conhecimentos,
substituem a antiga verdade. Exemplificamo-la com o átomo, que em grego
significa ‘indivisível’, pois assim
era corretamente considerado, mas que teve essa verdade (transitória) desfeita,
quando o avanço da ciência demonstrou suas partículas constitutivas. Já a pseudoverdade é exemplificada pelo
ladrão, que mesmo trazendo o produto do seu roubo nas algibeiras, afirma de
forma incisiva que é inocente. Ou o marido pego em flagrante de adultério,
argumentando para provar que tudo é um engano, que não existe traição alguma.
Multiplicam-se assim as malversações da verdade humana.
Mas o exemplo mais
evidente é demonstrado pelos políticos brasileiros, assim como por grande parte
dos proprietários de enormes fortunas, para os quais a manipulação e a distorção
da verdade fazem parte inerente de suas negociações, de suas ações, e
especialmente dos seus discursos. Dizia Galbraith em ‘A Sociedade Afluente’ : ‘Quanto
maior a riqueza, tanto maior a sujidade’. Se fizermos cálculos simples,
descobriremos que é quase – eu disse quase – impossível alguém sair do nada e
alcançar píncaros de fortuna, exclusivamente pelo seu trabalho honesto.
Contudo, hoje multiplicam-se os novos ricos, que aboletados em cargos públicos,
ou conduzindo empresas que trabalham majoritariamente para o governo, saltam
das classes mais baixas para as listas de grandes fortunas. E quando num
descuido, são surpreendidos pela mão dura da lei, juram de pés juntos que ‘fizeram tudo de forma legal’, e que ‘sempre cumpriram a lei’, tentando provar
suas pseudoverdades. A sorte deles, e a infelicidade da nação, é que sempre
encontram parceiros de espúrios caminhos para manipular as leis através de
atalhos ignotos, conservando-os soltos em verdadeiras pantomimas judiciárias.
A verdade humana,
ainda que transitória, é legítima, e deve ser o farol a iluminar a rota de
navegação dos cidadãos exemplares, mesmo atravessando mares bravios. Nessas
jornadas, às vezes descobre-se que a verdade alcançada não é plena, nem a
ideal, todavia nesse momento não se deve valer de vaidosas coerências para
persistir no erro. Cabe lembrar Gandhi, quando afirmou : ‘Meu compromisso é com a verdade, não com a coerência’. E eu
complemento : se acredito em alguma coisa, aquilo é, para mim, a verdade, e meu
compromisso é com ela. Contudo, se em qualquer momento da minha caminhada, eu
descobrir que estou enganado, não devo ter vergonha alguma em mudar minha
direção. Meu objetivo deverá ser a busca incessante da verdade. A humana, nesta
vida onde só ela é possível. E ela será, certamente, o caminho para alcançar a
verdade absoluta, essa sim, muito além desta realidade em que nos encontramos.’
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