*Artigo
de Nara Rúbia Ribeiro
‘Nos olhos da
infância, a dimensão tanto da dor quanto da alegria tem proporções gigantescas.
O que nem desconfiamos é que esses gigantes ficarão tatuados em nossos olhos
para sempre e muito dirão daquilo que, em essência, seremos.
O meu pai, durante
boa parte de sua vida, trabalhou com barro, formas e fornos, forjando tijolos
para a construção de mundos alheios e provendo o pão de cada dia nosso.
Morávamos no interior de Goiás. Ele acordava sempre às quatro da manhã e se
dirigia ao trabalho, passando, antes, na casa de meus avós, onde a vó
Bernardina já teria deixado prontos o seu café e, em regra, o seu bolo frio de
polvilho, quentinho, feitos naquela hora.
Meu pai seguia ao
trabalho e amassava o barro. Colocava esse barro em pequenas formas e em
seguida o desenformava, colocando-o para secar. Sempre sob o sol escaldante.
Sempre banhado de suor. Após seco, o barro formatado era empilhado em fornalhas
imensas e recebia calores exaustivos do fogo, para que se consolidasse. Algumas
vezes fui ao trabalho dele, quando menina. Era uma aventura… e eu achava o
máximo quando ele me permitia virar algum tijolo, de sorte que ele pudesse
tomar sol dos dois lados.
O que ele ganhava
era pouco. Minha mãe fazia trabalhos de crochê para complementar a renda. Eram
trabalhos tão bonitos e tão bem feitos, que me cortava o coração quando os
vendia.
Não raro o meu pai
saía do trabalho e chegava em casa sujo e cansado, tomava um rápido banho e
brincava comigo e com o meu irmão. Brincadeiras de menino : finca, bola de
gude. No final da noite, nos deitávamos para ouvir o rádio de pilha, momento em
que brincávamos de acertar qual a próxima música da programação da emissora.
Daí, muitas vezes, se dava a surpresa. Ele geralmente passava na rádio e
deixava registrado músicas dedicadas à família toda. Ouvir o nosso nome na
rádio recebendo música era a glória maior.
Era uma vida
contrastada de dor e ternura, onde eu fingia não perceber o sacrifício do meu
pai e a frustração silenciosa da minha mãe, por não poder nos ofertar o que
gostaria.
Mas os pais são
sempre desprovidos de bom senso e doam-nos mais do que pensam ter doado;
ofertam-nos mais do que julgam ofertar.
Penso que o ofício
do meu pai foi sempre o mais bonito de todos. Talvez até divino, posto que a
própria divindade, conforme a crença judaico-cristã, teria formatado o homem do
barro. Mas o que aprendi, observando o ofício do meu pai, é que a vida também
nos macera até o ponto de estarmos aptos à forma que a própria vida escolheu. E
que, uma vez formatados, sempre haverá em nós alguma ranhura, algum desalinho,
algum amassado que nos difere dos outros. Os tijolos nunca são exatamente
iguais. Alguns tijolos se quebram e se, enquanto expostos ao sol, tomam chuva,
derretem-se, desfazem-se e voltam à terra.
Aprendi que as
dores são fornos cujo calor consolida a nossa disposição interior. Aqueles que
se permitiram magoar pelos arranhões e os amassados poderão consolidar essa
mágoa na dor da fornalha do tempo. Mas aquele que sabe que as intempéries da
vida nos dão a oportunidade de sermos ímpares, que sabe mensurar a grandeza de
ser único, a alegria de ainda mostrar-se inteiro, esse faz consolidar a
gratidão por sua própria existência, ainda que esta seja por demais dolorida.
Importa é saber
que, ao final, o que nos vale no mundo é fazer parte dele. Não importa se se é
um barro mal macerado e pobre, um tijolo derretido na chuva, ou um outro seco,
ou queimado, ou quebrado a servir de caco em algum canto de um terreno baldio.
Importa que aqui estamos todos, reconstruindo-nos e recriando-nos a cada dia.
Inspira-me saber
que o meu pai, embora em contato direto com a aspereza da vida, detinha-se na
sutileza de dedicar-nos seu tempo e, não raro, uma música. Alguma fortuna no
mundo poderia legar-nos algo maior do que isso? Que a compreensão de que, mesmo
no chão árido e grosseiro de uma existência sofrida ainda possa florir, nas
frestas que entremeiam as dores, as mais surpreendentes delicadezas? Eu creio
que não. Escolhi as mãos calejadas do meu pai para acariciar o meu mundo
interior. Mãos sulcadas pela vida, cujas rachaduras guardam barro e dor, mas
que também tangenciam e entregam-nos, na agrura dos dias, as mais belas
melodias.’
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