*Artigo
de Rômulo Cyríaco
‘A criação do homem
No Evangelho de
São Mateus, lemos que, nos confins da Judeia, para além do Jordão, alguns
fariseus se aproximaram de Jesus com o intuito de o testarem no conhecimento da
lei, perguntando a Ele se era permitido a um homem repudiar a sua mulher, por
qualquer motivo. Assim Jesus respondeu : ‘Não
lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher, e disse : ‘Por
isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois
serão uma só carne’? Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem,
o que Deus uniu, não o separe o homem’. Os fariseus, em seguida, questionaram
Jesus : ‘Por que foi então, perguntarem
eles, que Moisés preceituou dar-lhe carta de divórcio ao repudiá-la?’. Ao
que Jesus replica, concluindo : ‘Por
causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas
mulheres; mas no princípio não foi assim’ (Mt 19,4).
Trata-se, esta, de
uma passagem evangélica que permeia quase a integridade do projeto teológico de
São João Paulo II, na Teologia do Corpo. Cristo, quando remete seus
interlocutores ao princípio, refere-se à indissolubilidade do matrimônio como
fundamentada por Deus Criador no ato mesmo da criação. Pode ser que, numa
determinada cultura, o matrimônio seja dissolvido, na prática, mas no princípio
não era assim, afirmação esta que tem dois sentidos imediatos : não era assim
no princípio da vida, logo após a criação e antes do pecado original; e não é
assim, ainda e sempre, na alma do ser humano, que traz sempre consigo o
princípio, e suas finalidades. Tudo o que Deus estabeleceu para nós no
princípio, a alma humana sente em si mesma não apenas como profunda
necessidade, mas como realidade inalterável, ainda que – por causa do pecado
original – possa tornar-se cega e surda para os chamados interiores, que, de
uma maneira ou de outra, repercutem na consciência, por exemplo : 1) toda alma
humana sabe e sente que está se tornando ‘uma
só carne’ com outra, mesmo numa relação sexual extraconjugal casual, e
todas as sensações estranhas, psíquicas e emocionais, que possam advir depois
da mesma – como a culpa e a repulsa – vêm daí, da percepção profunda de uma
fratura entre a alma e o corpo; muitas psicanálises e terapias, por exemplo,
tentarão extirpar essas sensações da pessoa como sendo efeitos estranhos e ‘neuróticos’, adquiridos de um suposto ‘moralismo’ da cultura, não percebendo
que é a verdade se manifestando ou reclamando; e, assim, colabora-se com a
mentira; 2) toda alma humana sente que seu matrimônio é indissolúvel, ainda que
faça esforço para se adaptar (até discursivamente) a uma cultura em que a
fragmentação das famílias se tornou praticamente a regra, e nisso se pode
incluir não apenas homens e mulheres que são cônjuges, mas também os filhos por
esses gerados, que necessariamente sofrem com o divórcio, pois o que parece uma
‘simples’ separação externa, é a
grave separação interior de uma unidade que, na alma, no princípio, é
indissolúvel e permanecerá sendo, ainda que a aparente ‘dissolubilidade’ de tal vínculo no plano visível da cultura se
torne mais e mais popular. A dessincronização entre a cultura e as necessidades
da alma é uma das tragédias humanas que parecem acentuar-se ao nível do
paroxismo conforme nos aproximamos do fim dos tempos.
Há quase dois mil
anos, naquele diálogo, tratando-se de um grupo de fariseus, Jesus sabia que
estava falando com pessoas que conheciam muito bem o texto das Escrituras.
Refere-se, especificamente, ao Livro do Gênesis, e ao relato da criação do
homem e da mulher, no primeiro e segundo capítulos do mesmo. De forma
complementar, também esses são textos que devemos ter sempre em mente para que
compreendamos com precisão as conclusões do Santo Padre. O Gênesis nos revela
que ‘O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo
e guardá-lo. Deu-lhe este preceito : ‘Podes
comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore
da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás
indubitavelmente'. E continua :
O Senhor Deus
disse : ‘Não é bom que o homem esteja só;
vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.’ Tendo, pois, o Senhor Deus
formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus,
levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o
homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. O homem pôs nomes a
todos os animais, a todas as aves dos céus e a todos os animais dos campos; mas
não se achava para ele uma ajuda que lhe fosse adequada. Então o Senhor Deus
mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela
e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o
Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. ‘Eis agora aqui,
disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará
mulher, porque foi tomada do homem.’ Por isso o homem deixa o seu pai e sua
mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne. O homem e a
mulher estavam nus, e não se envergonhavam (Gn 2,15-25).
Quando as
Escrituras inspiradas revelam que Deus criou o ser humano à sua imagem e
semelhança, conforme nos aponta São João Paulo II, é evidenciada a ‘impossibilidade
absoluta de reduzir o homem ao ‘mundo’,
isto é : o homem não pode e nem deve ser compreendido, nem explicado, com as
categorias deduzidas do mundo, isto é, do ‘conjunto
visível dos corpos’ (Teologia do
Corpo, 2). Esta conclusão é grandiosa, pois trata-se mesmo de um elemento
que aparece, de formas contrárias, nas escolas de pensamento que conflituam no
mundo moderno : a maioria delas, de um lado, parece querer reduzir o homem ao
mundo, repudiando qualquer explicação da vida humana que recorra a um plano
transcendente – assim mundanizando-nos, animalizando-nos; outras, enraizadas em
tradições antigas como o cristianismo ou a filosofia grega aristotélica,
reafirmam e defendem que é precisamente isto que caracteriza o ser humano em
sua especificidade, a saber, que o mesmo possui semelhanças físicas ou
biológicas com os outros animais, mas possui uma alma racional que, como diz
Aristóteles, eleva-o acima das outras espécies, que só possuem alma vegetativa
e alma sensitiva. A parte racional da alma humana, para o Estagirita, estava
claramente enraizada no eterno, num plano transcendente, isto é, no divino,
ainda que nosso corpo visível esteja presente na natureza, juntamente dos
outros seres e coisas. A perfeição da revelação bíblica, no entanto,
explica-nos também o por quê do surgimento de tantas escolas de pensamento que
tentam negar a transcendência, e desumanizar o homem, no período moderno, e
também por que essa negação se faz presente na prática de tantos seres humanos :
trata-se de uma consequência do pecado original; Adão, com medo, esconde-se de
Deus nos arbustos do jardim. A isto veremos melhor em outro artigo; por ora
sigamos com os fatos do princípio.
As narrativas do
Gênesis supracitadas descrevem o estado do ser humano logo após a criação, em
comunhão com seu Criador : a felicidade dos primeiros homens, e sua inocência
original, antes da primeira queda. O ser humano foi criado como sujeito de uma
aliança, constituído como pessoa – superior aos animais, os quais, na verdade,
nomeia – e à altura de ‘companheiro do
Absoluto’ (Teologia do Corpo, 6).
Dotado de alma – onde está impressa a imagem e a semelhança de Deus, seu
Criador – e de liberdade, é dado ao homem ‘discernir
e escolher conscientemente entre o bem e o mal’, quando Deus estabelece o
limite que o ser humano deveria respeitar para permanecer em plena aliança.
Tratava-se de uma escolha entre a vida e a morte : comer da árvore da ciência
do bem e do mal, barraria-lhe o acesso à árvore da vida. É da vontade de Deus
que o homem viva plenamente, e esteja absorvido inteiramente pela aliança – mas
a permanência na relação com Deus deve ser uma escolha livre do ser humano.
Como Adão sentiu-se sozinho, desejando uma semelhante que pudesse estar com ele
em relação, Deus é pleno e não precisa de nada além de Si mesmo, mas quis, por
amor, criar-nos livres, para viver uma relação pessoal com cada alma por Ele
criada. Não há verdadeira relação quando uma das partes é privada de liberdade,
e mesmo os vínculos humanos mais definitivos, como o casamento, expressam isso :
nesses, não há perda de liberdade, mas o ganho de uma realidade relacional
rica, com o livre consentimento da pessoa. Como a pessoa permanece livre para
rejeitar a aliança, é preciso que a sua afirmação seja livremente mantida e
reafirmada, diariamente, e ao longo do tempo. E como a intimidade mútua de um
casal aumenta e se enriquece com o tempo e a convivência, também assim acontece
entre a alma de uma pessoa e Jesus Cristo.
Os animais, por
sua vez, não são livres, pois, não tendo alma racional, apenas obedecem a seus
instintos; nós, humanos, temos instintos – alma vegetativa, alma sensitiva –
mas também respondemos a Deus, com nossa alma propriamente humana. Nisso tudo
encontra-se a irracionalidade da concepção pós-moderna de ‘liberdade’, que seria algo como não estar limitado por nenhuma
restrição (seja interna, ou externa) e, logo, não precisar responder por nada.
Enquanto isso, a realidade de nossa verdadeira e inescapável liberdade –
enraizada em nossa alma, e em sua semelhança, e relação, com o Criador – apenas
estabelece que somos livres para escolher o mal, mas jamais isentos das
consequências dessa escolha; e, portanto, a escolha do bem também deve
necessariamente ser livre, intencional, consciente e proposital. Todos os esforços
políticos de escolas modernas como o socialismo marxista, entre outras utopias,
nada mais é do que a imaginação de um estado de coisas em que a vida humana
seria essencialmente boa, e socialmente perfeita, sem que fosse necessário um
esforço consciente para o bem : o último esforço seria o da implementação de
tal sistema de poder que tornará a vida ‘perfeita’
e sem tensões, dificuldades ou desigualdades, e para isso também basta permitir
que os seus representantes tomem o domínio de tudo. Trata-se, precisamente, do
falso paraíso na terra, o verdadeiro ópio do povo, que na prática só resulta no
seu contrário, e a tantos infernos concretiza em nossa realidade. Para não cair
nestas perigosas iscas, deve-se reconhecer duas coisas sobre a alma humana :
ela traz em si a semelhança com Deus, e a relação com Ele, a memória e o desejo
do paraíso; mas também, intrinsecamente, traz as más inclinações, inextirpáveis
nesta vida, herdadas do pecado original. Portanto, qualquer regulação legítima
da vida humana, individual e social, deve partir dessa percepção, e da
necessidade de uma educação para a liberdade, para a responsabilidade, e para o
amor.
Mas, como vimos, o
homem é também corpo, e o corpo do homem – muito diferentemente do que queriam
os heréticos gnósticos – é realidade do vínculo do homem com o seu Criador, em
vez de ser algo de que o homem devesse se desvencilhar, para restar somente a
alma, esta sim boa e divina. O corpo do homem possui uma dimensão de
sacramento, isto é, de realidade e sinal visível daquilo que ocorre em sua alma
– pense, especialmente, no rosto humano, e suas finas expressões emocionais,
assim como seus sorrisos, reveladores, na dimensão visível, de algo que somente
o ser humano vive na dimensão invisível. Com o ser humano, no princípio – e, em
especial, antes do pecado original – entrou a santidade no mundo visível, que,
por sua vez, foi criado por Deus para o homem. Aí também se expressa o amor
especial que Deus tem para conosco, diante de toda a criação. ‘Na criação, antes do pecado original, o
homem se constitui como que um primordial sacramento, entendido como sinal que
transmite eficazmente ao mundo visível o mistério invisível, oculto em Deus
desde a eternidade. (…) O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o
que é invisível : o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a
realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e
assim d’Ele ser sinal’ (Teologia do
Corpo, 19). A inocência original do ser humano no princípio, ligada à
experiência do significado esponsal do corpo – isto é, feito para desposado,
para ser doado, do homem para a mulher, da mulher para o homem, em sua
complementaridade biológica e subjetiva – ‘é a santidade que permite ao homem
exprimir-se de modo profundo com o próprio corpo, e isso precisamente mediante
o ‘dom sincero de si mesmo’. O corpo
humano é lugar de santidade, lugar onde Deus se torna visível à totalidade da
criação. ‘A consciência do dom [de si
mesmo, corpo e alma] condiciona, nesse caso, ‘o sacramento do corpo’ : o ser
humano se sente, no seu corpo de varão e de mulher, sujeito de santidade’ (Teologia do Corpo, 19).
O valor
inestimável da Teologia do Corpo, de São João Paulo II, no momento histórico
preciso em que a realizou, oferecendo ao homem do Século XX, através das
palavras de Jesus Cristo (que é, Ele mesmo, a Palavra de Deus viva e encarnada)
a rememoração do que nós somos, como humanos, em princípio, deve-se ao fato de
que ‘a situação interior e, ao mesmo tempo, cultural do homem de hoje parece
afastar-se daquele ‘princípio’ e
assumir formas e dimensões que divergem da imagem bíblica do ‘princípio’ em pontos evidentemente cada
vez mais distantes’ (Teologia do Corpo,
23).
No meio da
rebelião social e sexual da sociedade moderna e contemporânea, a teologia
católica do corpo e da sexualidade, e sua aplicação direta na vida humana como
um firme critério educacional (para nós mesmos e nossos filhos) no sentido do
reencontro da plenitude e da verdadeira realização, é, de fato, ‘uma ilha de valor em uma mar de preços’
– uma possível recuperação de dimensões humanas cada vez mais negligenciadas e
repudiadas pelo homo economicus, e pelo exército multiculturalista e
politicamente correto do poder global, que visa ao controle massivo das
respostas humanas. Serve também como fonte de conhecimento da reta doutrina
cristã para todos aqueles que vivem nesta civilização em crise e ignoram a
realidade de seus antigos fundamentos, conhecendo-a somente através dos
estereótipos equivocados do senso comum anti-cristão e, mais especificamente,
anti-católico. A religião católica é comumente referida pelo homem moderno
tomado pelo ethos da rebelião como sendo uma instituição ‘repressora da sexualidade’, ou que considera tudo o que é ‘sexual’ como ‘pecado’, e nada está mais distante da verdade do que essa visão.
Como veremos, através da obra de São João Paulo II, e em seguida através de
outros documentos da Igreja, o que Jesus Cristo realmente nos trouxe, na Nova
Aliança, é a possibilidade de recuperarmos o verdadeiro valor do corpo e da
sexualidade, um altíssimo, sagrado valor – e da vida humana em si mesma.
Aqui vale também,
ainda que rapidamente, um aceno à tendência da ‘nova era’ de afirmar uma espiritualidade desinstitucionalizada,
destacada da religião : em primeiro lugar porque, do ponto de vista cristão, é
bíblica e fundamental a indissociabilidade entre Cristo e a Sua Igreja, que é
sacramento de Sua presença viva na terra; em segundo lugar, porque aquela, da
nova era, é uma espiritualidade rebelde, e a rebeldia é o oposto da frutificação
virtuosa do espírito, que só pode reencontrar a árvore da vida na obediência ao
Criador autorrevelado. Deus quer fazer uma aliança com as almas; enquanto isso,
o demônio quer, de um lado torná-las materialistas, de outro apenas ‘espiritualiza-las’, sustentando um
discurso anti-religioso que deve seriamente nos preocupar, já que, assim,
tantas almas ficam em terreno turvo e vulnerável, presas nas ilusões do Satanás
que se transfigura em anjo de luz. ‘Eu,
ser batizado por um homem pecador? Eu, me confessar para um homem, pecador?
Deus se manifesta em todas as religiões, ou basta que eu converse com Deus,
diretamente’. Essa é a mentalidade moderna e pós-moderna, para a qual se
tornou inaceitável a verdade de um Deus que, intencionalmente, fundou uma
instituição, que instituiu, Ele mesmo, uma economia sacramental, ministrada por
homens, a qual devemos humildemente recorrer. Afinal, o próprio testemunho de
Cristo, não apenas em palavras mas em ações, é aquele da humildade inigualável
do Deus que se fez Homem e que antes disso se fez Menino, em tudo dependente de
uma Mãe – mostrando-nos que a humildade, aos homens, é o caminho para se
aproximar de Deus – e que vai, Ele mesmo, aquele que a todos batiza, ser
batizado por um homem. ‘João recusava-se :
Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim! Mas Jesus lhe respondeu : Deixa
por agora, pois convém cumpramos a justiça completa’ (Mt 3,14-15).’
Fonte :
* Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2017/09/06/introducao-a-teologia-do-corpo-parte-2-no-principio-nao-era-assim/
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