*Artigo
de Dom Leven Harton, OSB,
Vice-Prior de St. Benedict´s Abbey, Atchison, Kansas, EUA
‘Ninguém presuma relatar a
outrem qualquer das coisas que tiver visto ou ouvido fora do mosteiro, pois é
grande a destruição.’ RB 67,5. ‘Raramente
seja concedida aos discípulos perfeitos licença de falar por causa da gravidade
do silêncio...’ RB 6,3.
‘Fora do contexto
do carisma monástico, algumas frases da Regra de São Bento podem aparecer
severas e isoladas. Qual seria o mal que poderia causar o monge, escutando
notícias de fora do mosteiro? E por que a conversa entre os irmãos deve ser
regulada? Monges não são adultos com capacidade de filtrar o que ouvem e
beneficiar-se da interação com as realidades externas? O que pode ser o valor
positivo que São Bento imagina quando coloca estas e outras restrições nas
comunicações do mosteiro?
Admitimos que
nossa cultura seja bem carregada – cheia de comunicação e informação. Vivemos
na era de ‘informação’, um momento da
história em que desfrutamos de acesso sem precedente a conteúdo de toda
variedade. E enquanto recebemos grandes benefícios com informação rapidamente
disponível, há uma grande cilada que ameaça profundamente a dignidade humana :
a distração.
Por ‘distração’ não me refiro ao inseto
perturbante que faz zum-zum na consciência de vez em quanto, causando irritação
temporária pela atenção dividida. Eu quero dizer uma vida de distração, vida
cheia de distração, vida focalizada na distração. A era em que tentamos viver ‘cristianidade’ é uma era que nos oferece
um verdadeiro ‘carisma’ de
secularidade neste tipo de vida – uma vida de distrações.
Viver distraído é
estar habitualmente desconectado da realidade que se encontra à nossa frente.
Para o cristão, distração é um perigo grave. Desvinculado da realidade, está
separado de Deus. Distração cria obstáculo na avenida pela qual Cristo vem até
nós. Assim, a vida de distração pode ser uma forma de revolta, rejeição da
própria vida; e esforços de providência divina são insuficientes, faltosos, sem
eficácia. Um ‘não’ a Deus desta
maneira fica tácito, basicamente não reconhecido. Em vez de viver a vida sem
filtro, cara a cara, vem a intervenção de uma postura confortável de
entretenimento. E iludimos a responsabilidade consciente da nossa vida,
escondendo-nos atrás de centenas de pequenas escolhas para manter distração. O
compromisso assumido, único à ação humana, é descartado neste caso, e nos
entregamos por um nada. A vida distraída, ainda mais, é alienação, não só de
Deus, mas da dignidade de poder fazer verdadeiras escolhas humanas.
Minha oportunidade
para distração veio de uma conversa provocante sobre o time de beisebol de
Kansas City no ano passado, quando se dizia que este time tão calcado estava
para jogar no campeonato nacional. Escutar um jogo na rádio é bom para relaxar
e um entretenimento moralmente neutro. Todavia, houve o risco de tal modo
distraído de vida tornar-se real para mim. Viajando recentemente para uma
reunião de suma importância, aproximando-se do meu destino, estava precisando
rezar e refletir bastante em preparação para esta reunião. Surgiu, então, a
tentação de escutar na rádio este jogo importante do meu time preferido.
Pensando, não poder ser tentação, pois eu gosto de seguir este time. Não é
tentação porque seguir o time não é ‘prazer
do mundo’. A tentação para mim era o desvio de atenção da situação
levando-me a não assumir o que eu deveria. Era tentado a dividir minha pessoa
entre o jogo e a reunião que precisava da minha atenção. Parece brincadeira.
Mas participar do jogo neste momento me tiraria de uma preparação adequada para
uma reunião importante. Será que posso sacrificar algo que gosto muito, um jogo
do meu time preferido em ascensão? Felizmente resisti à tentação e a reunião
saiu ótima.
São Bento
reconheceu tal tentação para humanidade, a vontade de descuidar de nossa
interioridade e viver distraídos. Mesmo sem a tecnologia de comunicação do
século 21, ou jogos de esporte!
São Bento se
preocupava que os monges mantivessem o estado de recolhimento e exortava a
comunidade a guardar silêncio. As primeiras palavras da Regra são emblemáticas
da espiritualidade beneditina : obsculta, ‘escuta’.
Não há escuta, percepção com os olhos da fé, ou atenção com o coração se a
pessoa estiver distraída, perdida nas imaginações, ansiedades ou jogos
esportivos. A tarefa de permanecer-se ligado e colocar-se a si mesmo frente à
realidade é aplicar-se a escutar e prestar atenção. Cremos que a realidade é
portadora da presença de Deus em nossa vida. Tal experiência é impossível ao
coração distraído.
Monges no século
21, em geral, têm mais acesso ao mundo do que São Bento podia imaginar. Hoje,
há mais comunicação interna na maioria dos mosteiros do que no mosteiro onde
ele morava – Monte Cassino. O valor de ficar recolhido, face à realidade,
porém, é ainda bom para o monge hoje. É um testemunho ao mundo contemporâneo
que cegamente incentiva relações superficiais. Mas o coração humano, que
precisa da realidade e é feito para comprometer-se com ela, não é enganado pela
distração.
Um exemplo de um ‘santo’ pela fidelidade à realidade vem
de uma forma improvável de um falecido magnata da moda. O ex-editor da revista
Elle, Jean-Dominique Bauby, foi submetido a uma mudança de sorte quando sofreu
Síndrome do Encarceramento (Locked-in Syndrome), que paralisou seu corpo
inteiro, exceto o olho esquerdo que ainda podia piscar. Neste estado de
paralisia, após um ritmo de vida agitado e glamoroso, ele piscou, letra por
letra, a um fonoaudiólogo, sua autobiografia, o livro com o título Le Scaphandre et le Papillon. (1)
‘Pelas cortinas desfiadas da minha janela uma
luminosidade pálida anunciou o dia. Meu calcanhar dói, minha cabeça pesa uma
tonelada, e algo como um enorme escafandro invisível mantém meu corpo prisioneiro.
Meu quarto aos poucos clareou : fotos dos queridos, desenhos dos filhos, o
suporte do soro suspenso sobre minha cama onde fiquei confinado estes últimos
seis meses, como um caranguejo eremita cravado ao seu rochedo. Até agora nunca
ouvi falar do tronco cerebral. Aprendi que é o componente essencial em nosso
computador interno, o elo inseparável entre o cérebro e cordão espinhal. Fui
brutalmente introduzido a este vital pedaço de anatomia quando o AVC atrapalhou
meu tronco cerebral.’
Aos poucos, tornando
aclimatada a sua situação, Bauby começa a descobrir esperança. Ele descreve seu
lugar favorito no Hospital Naval de Berck, no terraço, a um protetor ao qual
ressegura : ‘Saindo do elevador no andar
errado, eu o vi : alto, robusto e tranquilizador, com listras vermelhas e
brancas que me fez lembrar a camisa de rúgbi. Coloquei-me de novo sob a
proteção deste símbolo tão fraterno, guardião não só de marinheiros, mas dos
doentes – aqueles jogados nas praias da solidão. O farol e eu permanecemos em
contato constante, e frequentemente o visitei, pedindo alguém a me levar ao
terraço na cadeira de rodas.’
Paralisado, este
homem se encontra na posição de enxergar a realidade de uma maneira nova. A sua
vida de distração lhe foi retirada, e ele se viu forçado a olhar e escutar de
forma diferente. Ele reconheceu no farol a presença de um benigno e poderoso
guardião, ao qual eu chamo Deus. Esta nova posição, nova capacidade de perceber
a realidade e o que a realidade contém, é o que São Bento estava pensando
quando colocou limites na comunicação e interação entre os membros da
comunidade. Claro, ele não quer e não espera que seus monges sejam impedidos de
conseguir isso. Não precisamos nos separar uns dos outros para experimentar a
diferença em sermos livres de distrações. Para todos nós, em qualquer estado de
vida em que o Senhor tem nos colocado, podemos ter a certeza de que Ele quer
nos encontrar em nossa própria realidade. Se conseguirmos cultivar aquele
silêncio e aquela paz que nos são dados, O encontraremos em nossas
circunstâncias. E encontrando-O, Ele nos traz aquela paz que o mundo não nos
pode dar.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.cimbramonastica.org.br/cimbra/index.php/vida-monastica/assuntos-monasticos/191-distracoes#edn1
(1) O
Escafandro e a borboleta. França, Éditions Robert Laffont, 1997
Tradução
: Duane G. Roy, OSB
Revisão :
Josias Dias da Costa, OSB
Priorado
São José, Mineiros-GO