*Artigo
do Padre Jaldemir Vitório, SJ
‘A palavra ‘esmola’ assumiu conotações negativas, a
serem superadas por uma correta compreensão bíblica, teológica e espiritual
desse antiquíssimo ato de piedade, considerado pelas religiões como gesto de
misericórdia e expressão de fé.
A visão distorcida pensa quem dá e quem recebe
a esmola em relação assimétrica. Quem a dá, é superior a quem a recebe. Quem a
pede ou dela necessita, é um pobre coitado, dependente da boa-vontade e do
humor alheios. A esmola é uma migalha do que se possui, dada, às vezes, com má
vontade.
Assim pensada, a
esmola mantém a desigualdade socioeconômica e despoja o necessitado de sua
dignidade, pela incapacidade de estabelecer vínculos de verdadeira humanidade
entre quem a dá e quem a recebe. Isso é tanto mais verdade, quando a esmola é
dada para se livrar do outro ‘importuno’
que, contente com os tostões recebidos, vai-se, deixando em paz quem lhe deu
alguns trocados.
A fé judaico-cristã considera a esmola sob
outro viés. A palavra grega eleemosyne, donde vem o vocábulo latino eleemosyna
e o português esmola, significa compaixão. A mesma compaixão que os fiéis, na
liturgia, imploram a Deus, ao dizerem : Kyrie, eleison – Senhor, tende
compaixão! Portanto, a esmola é verdadeiro ato de piedade quando expressa misericórdia
por parte de quem se deixou tocar pelo sofrimento alheio e se dispôs a abrir o
coração para repartir os bens recebidos de Deus. Em outras palavras, quando o
doador age como Deus, em sua imensa ternura pela humanidade. Por conseguinte, o
simples fato de dar dinheiro a um pedinte não se configura como esmola, no
sentido cristão.
O termo usado por
Mateus na bem-aventurança da misericórdia é eleemones, ou seja, ser
misericordioso (eleemon) é abrir o coração para repartir (Mt 5,7). Citando duas
vezes o profeta Oseias – ‘Quero
misericórdia e não sacrifício’ – (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7), o evangelista usa
o vocábulo eleos, para sublinhar que Deus se compraz com a solidariedade com o
próximo necessitado e não com as liturgias sofisticadas de seus adoradores.
A tradição
sapiencial bíblica contém excelentes intuições a respeito da esmola,
perfeitamente atuais, apesar da distância no tempo e no espaço. Pr 19,17
vincula o necessitado a Deus, de modo que : ‘Quem é compassivo com o pobre empresta a Deus e ele dará a sua
recompensa’. Pr 22,9 afirma : ‘O
homem generoso será abençoado, porque dá de seu pão ao fraco’; Pr 28,27 : ‘Para quem dá ao pobre não há necessidade,
mas quem dele esconde seus olhos terá muitas maldições’. O colecionador da
sabedoria de Israel no livro do Eclesiástico também insistiu no tema da esmola.
Eclo 4,1-6 é uma síntese da misericórdia para com os necessitados, onde um pai,
entre outros conselhos, adverte o filho : ‘Não
rejeites o pedinte oprimido, não desvies teu rosto do pobre’ (v. 4; cf.
3,30; 7,10; 17,22). Uma apresentação extraordinária do tema bíblico da esmola
está em Tb 4,7-11, onde Tobit, estando às portas da morte, adverte o filho
Tobias : ‘Regula tua esmola segundo a abundância de teus bens : se tens muito, dá
mais; se tem pouco, dá menos, mas não tenhas receio de dar esmola’ (v. 8).
Dois elementos importantes servem de pano de fundo da vida virtuosa, na
sabedoria bíblica : a liberdade e o desapego diante dos bens que se possui,
superando a tentação de absolutizá-los e torná-los verdadeiros ídolos; o
cuidado e a atenção com os empobrecidos, na contramão da atitude dos ricos
egoístas, descritos nas parábolas de Lc 12,16-21 e 16,19-31.
No evangelho,
Jesus ensinou a dar esmola de maneira discreta, sem alardes, para que ‘a mão esquerda não saiba o que faz a direita’
(Mt 6,3). E, mais, ‘dai o que tendes em
esmola e tudo ficará puro para vós’ (Lc 11,41). Para combater o
materialismo crasso, o Mestre exortava os discípulos apegados ao dinheiro a
tomarem uma decisão radical : ‘Vendei
vossos bens e dai esmolas. Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro
inesgotável nos céus, aonde o ladrão não chega nem a traça rói’ (Lc 12,33).
Zaqueu é o grande exemplo evangélico de obediência à ordem do Mestre (Lc
19,1-10), contrapondo-se ao homem ‘muitíssimo
rico’, incapaz de partilhar seus bens com os pobres (Lc 18,18-23).
A cena de At 3,1-9
é sugestiva. Ao aleijado de nascença, que pedia esmola diante do Templo de
Jerusalém, Pedro oferece mais que dinheiro. Em nome de Jesus, devolve-lhe a
capacidade de caminhar e, assim, poder ganhar a vida de outra maneira, com as
próprias forças. Tabita, cristã das primeiras comunidades, destacava-se por
suas boas obras e a largueza de suas esmolas (At 9,36). Dar esmolas não era
exclusividade dos cristãos. Cornélio, centurião romano, ‘dava muitas esmolas ao povo judeu’ (At 10,2.4.31). Preocupado com a
situação econômica dos cristãos de Jerusalém, Paulo promoveu uma coleta entre
as demais comunidades. Este deveria ser um exercício de cuidado com os irmãos
na fé e de generosidade. A orientação do apóstolo era : ‘Cada um dê como dispôs em seu coração, sem pena nem constrangimento,
pois Deus ama a quem dá com alegria’ (2Cor 9,7).
A parábola do bom
samaritano (Lc 10,29-37), sem dúvida, é a melhor ilustração evangélica a
respeito da esmola. Em face ao homem semimorto, jogado à beira da estrada, o
viajante, esquecendo seus afazeres, coloca-o no centro de seus cuidados. E
partilha com o desconhecido seu óleo, seu vinho, sua montaria, seu tempo e seu
dinheiro, numa partilha radical, sem medidas. O dinheiro empregado para salvar
aquela vida tornou-se um dos muitos elementos do cuidado pelo outro. E,
certamente, não foi o mais importante. Fundamental, mesmo, foi a oferta que o
samaritano fez de si a quem carecia de misericórdia, cuja sobrevivência
dependia da decisão que tomaria, pois o sacerdote e o levita já o haviam
desprezado, por não se deixarem afetar pelo homem vitimado pelos cruéis
assaltantes.
A compreensão
cristã de esmola vai muito além do simples ato material de dar algo a um necessitado.
Tudo depende da atitude que a reveste. O outro é um irmão, em quem reconheço o
rosto interpelante de Jesus (Mt 25,40.45), e a quem me doo, com gratuidade e
generosidade, no gesto de partilhar, não apenas o dinheiro, mas o que possuo e
o irmão necessita para reconstruir sua dignidade. Então, a ‘esmola’ poderá ser um sorriso, um ombro
amigo, uma palavra de consolo, um ouvido para escutar, uma companhia solidária
ou uma ação para defender o outro aviltado em sua dignidade. Em última análise,
para o cristão, dar esmola é doar-se, nos passos do Mestre Jesus de Nazaré,
cuja vida foi inteiramente doada, como eleemosyne, pela salvação da humanidade.’
Fonte :
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