*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
‘O ‘abismo da consciência’ é o núcleo
determinante da conduta humana. É o lugar mais importante da configuração da
personalidade e da definição do caráter, onde se encontra a ‘central de comando’, que pode orientar
uma conduta digna. Por isso, requer permanentes investimentos e cuidados,
fundamentais para que o ser humano não seja instrumento de psicopatias,
dubiedades e descompassos - males que atrapalham a regência adequada das
relações sociais e políticas.
Cada indivíduo é
responsável por sua ‘central de comandos’,
mas conta também com os tecidos institucionais e a rede de relações sociais
para alcançar o equilíbrio necessário à convivência, ao respeito, ao
compromisso com a justiça e com o bem comum. Ainda assim, é oportuno destacar a
dimensão do ‘abismo da consciência’ e
sua relevância. Sua materialidade e formalidade ético-moral são tão amplas que
permitem fazer uma correlação com o número de sinapses cerebrais – semelhante
ao de uma galáxia. Essa complexidade e centralidade torna possível reconhecer
uma necessidade : o ‘abismo da
consciência’ carece de uma luz que não lhe é própria, vem da Luz maior. Sem
a Luz maior, o ‘abismo da consciência’
perde seu rumo, encobre-se de escuridão. E as escolhas tornam-se comprometidas,
os discernimentos não são orientados pelo amor e honestidade. A presidência da
conduta pessoal passa a ser regida por parâmetros desastrosos.
Por isso, há
urgência em deixar que a Luz maior encontre o ‘abismo da consciência’. Abrir mão dessa Luz e pretender reger-se
por conta própria é arriscado. Isso fica comprovado quando são observados os
descompassos que afligem a humanidade, em razão de escolhas obscuras,
mesquinhas, e da indiferença que ameaça a paz mundial. Os fundamentos da
consciência, assimilados sempre nos processos educativos, familiares, culturais
e religiosos, precisam ser tocados pela Luz maior. Para isso as pessoas
precisam vivenciar, no cotidiano, a espiritualidade que reúne o conjunto das
experiências pessoais e comunitárias, sociais e políticas, tocadas pela
presença de Deus. A espiritualidade ultrapassa, assim, o aspecto devocional e
as práticas simplesmente piedosas. É um diálogo permanente e indispensável com
Deus, porque só Deus alcança as profundezas do ‘abismo da consciência’ de todos.
A indiferença e a
ausência de esforço para essa imprescindível busca por Deus são incapacitantes.
Deixam as pessoas sem condições para reger a própria consciência. A dimensão
abissal da consciência precisa ser preenchida com valores e referências capazes
de manter as atitudes individuais nos parâmetros éticos. E o ‘abismo da consciência’ não é
simplesmente controlável por mecanismos sociais. Esses mecanismos têm força
reguladora indispensável, mas o alcance é limitado. O necessário equilíbrio
humano requer mais que a dimensão organizacional e sistêmica da configuração
social, política, cultural e religiosa de um povo ou nação. Mesmo porque está
em permanente ebulição a vida de grupos diversos, segmentos políticos e
culturais, povos e etnias. Rumos inadequados são dados a processos, escolhas
equivocadas enrijecem e enfraquecem as instituições. Há pouca versatilidade
para oferecer respostas aos problemas contemporâneos e priorizam-se as ações
que buscam apenas as benesses, a satisfação da mesquinhez de grupos familiares,
políticos, religiosos e tantos outros. Resultado da desarticulação do ‘abismo da consciência’, que traz
consequência avassaladora para a conduta humana. Sinais de que a luz própria da
razão, que é indispensável, ao mesmo tempo é insuficiente para garantir atos e
escolhas corretos. Essencial é o investimento nas dimensões humana e espiritual
capazes de fazer brilhar, no ‘abismo da
consciência’, a Luz maior.
Esse é um passo
decisivo para evitar que se repitam as muitas irracionalidades que ameaçam a
vida : as guerras, as catástrofes causadas pela ganância que dizimam o meio
ambiente, além das disputas ferrenhas e manipulações que ocorrem nas
instituições e refletem escolhas fundamentadas na mediocridade. É preciso
evitar que a sociedade continue a sofrer com as graves perdas, que atingem, de
modo ainda mais forte, a vida dos pobres. Nesse sentido, vale seguir o exemplo
de Santo Agostinho, apresentado na sua famosa e monumental obra Confissões, do
século V. Nesse livro estão reunidos exercícios oportunos para este tempo da
Quaresma, um investimento, pessoal e comunitário, na qualificação dos ‘abismos da consciência’.
O convite é para a
oração e o diálogo com Deus, de modo semelhante ao que fez Santo
Agostinho. Que cada pessoa possa se
dirigir à Luz maior, Deus, com as palavras e a oração desse Santo : ‘Que eu te conheça, ó conhecedor meu! Que eu
também te conheça como sou conhecido! Tu, ó força de minha alma, entra dentro
dela, ajusta-a a ti, para a teres e possuíres sem mancha nem ruga. Essa é a
minha esperança e por isso falo. Nessa esperança, alegro-me quando sensatamente
me alegro. Tudo o mais nessa vida tanto menos merece ser chorado quanto mais é
chorado, e tanto mais seria de chorar quanto menos é chorado. Eis que amas a
verdade, pois quem o faz, chega-se à luz. Quero fazê-lo no meu coração, diante
de ti, em confissão, com minha pena, diante de muitas testemunhas. A ti,
Senhor, a cujos olhos está a nu o abismo da consciência humana, que haveria de
oculto em mim, mesmo que não quisesse confessá-lo a ti? Eu te esconderia a mim mesmo,
e nunca a mim diante de ti.’ Este é
o caminho, o mais eficaz para iluminar com a Luz maior, que é Deus, o ‘abismo’ da própria consciência.’
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