sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Louvado sejas, meu Senhor

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém, PA


O pobrezinho de Assis, Francisco, livre e franco pelo nome e pela transparência de vida, há séculos ilumina com o fulgor de seu exemplo a humanidade. Uma das muitas tradições relativas ao Cântico das Criaturas dá conta de que o santo estivesse cego quando, em 1224, redigiu a maior parte do magnífico texto posto à luz pelo Papa Francisco, em sua recente e magistral Encíclica, chamada justamente ‘Laudato si’, pelas palavras iniciais do poema de São Francisco, da qual desejo trazer alguns ensinamentos. É que o olhar interior de São Francisco ou do Papa Francisco, quiçá de todos nós, consegue enxergar a obra de Deus em ato. A proximidade da Festa de São Francisco nos conduza a rezar e cantar com alegria.

 ‘Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas. Só a ti é devido o louvor, ó Altíssimo Deus Criador. Altíssimo, onipotente, bom Senhor, são teus o louvor, a glória, a honra e toda a bênção. Só a ti, Altíssimo, são devidos, e homem algum é digno de pronunciar teu nome. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor, irmão sol que clareia o dia e com sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante com grande esplendor : de ti, Altíssimo, é a imagem. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas que no céu formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, pelo ar nublado ou sereno e por todo o tempo, pelo qual, às tuas criaturas, dás alimento. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite. Ele é belo e alegre é vigoroso e forte. Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz frutos diversos e coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações. Felizes os que sustentam as provações em paz : por ti, altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem separados de ti. Felizes os que a morte encontrar realizando a tua santíssima vontade! Criaturas todas, louvai e bendizei ao meu Senhor! Dai-lhe graças servindo a Deus com grande humildade!

 O Papa Francisco, no decorrer da Encíclica na qual quis falar à Igreja e ao mundo sobre o cuidado com a ‘casa comum’, oferece a contribuição da Escritura e da  Igreja para suscitar diálogo e empenho conjunto, no qual todas as forças atuantes na sociedade podem colaborar (Cf. ‘Laudato si’, capítulo II). É bom, para a humanidade e para o mundo, que conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções. Chama de ‘Evangelho da criação’  e afirma que a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento contemporâneo, permitindo várias sínteses entre fé e razão e motivações altas para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis.

Na primeira narração da obra criadora, no livro do Gênesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se que ‘Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa’ (Gn 1, 31). Cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (Cf. Gn 1, 26). Como é maravilhosa, afirma extasiado o Papa, a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer : ‘Antes de te haver formado no ventre materno, eu já te conhecia’ (Jr 1, 5).

Para a Encíclica, a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas : com Deus, com o próximo e com a terra. Estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. É o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este fato distorceu também a natureza do mandato de ‘dominar’ a terra (Cf. Gn 1, 28) e de a ‘cultivar e guardar’ (Cf. Gn 2, 15). É significativo que a harmonia vivida por São Francisco com todas as criaturas tenha sido interpretada como uma cura daquela ruptura.

Não somos Deus. A terra existe antes de nós e nos foi dada. Os textos bíblicos nos convidam a ‘cultivar e guardar’ o jardim do mundo (Cf. Gn 2, 15). Enquanto ‘cultivar’ quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, ‘guardar’ significa proteger, cuidar, preservar, velar o que implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. Em última análise, ‘ao Senhor pertence a terra’ (Sl 24/23, 1), a ele pertence ‘a terra e tudo o que nela existe’ (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe toda a pretensão de posse absoluta : ‘Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra me pertence, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes’ (Lv 25, 23). Isso implica que o ser humano respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo.

Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um dado fundamental : Deus é Pai (Cf. Mt 11, 25). Jesus convidava os discípulos a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos dele : ‘Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus’ (Lc 12, 6). ‘Olhai as aves do céu : não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste as alimenta’ (Mt 6, 26).

E o Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo; mostra-o também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação com o seu domínio universal. ‘Foi nele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão no céu’ (Cl 1, 19-20). Isto nos lança para o fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas ‘a fim de que Deus seja tudo em todos’ (1 Cor 15, 28). Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude.

Fique apenas o convite, vindo do exemplo de São Francisco e da Encíclica do Papa, à glorificação da obra de Deus e a uma nova e fecunda responsabilidade diante da criação!’


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