*Artigo de Dom Jean Benjamin Sleiman,
Arcebispo de Bagdá
A perseguição sofrida pelos
cristãos no Iraque não é somente o resultado do fundamentalismo islâmico, que
atingiu o seu apogeu com o autoproclamado Estado Islâmico, mas responde
igualmente a cálculos políticos e projetos de desintegração do Médio Oriente
que remontam aos anos 50 do século XX.
‘A
perseguição dos cristãos no Iraque alcançou o seu apogeu com a invasão do país
pelos jihadistas do autoproclamado Estado Islâmico. Assistiu-se a uma longa
sucessão de atentados com carros-bomba contra lugares de culto cristãos,
sequestros, assassínios, expropriações, assaltos à mão armada, ameaças para os abater,
discriminação para os desalentar, pressões psicológicas para os exasperar,
discursos cheios de ódio para incitar ao exílio, etc.
Entre
1 de Agosto de 2004 – em que várias igrejas foram atacadas com bombas – e a
invasão do Estado Islâmico, os cristãos do Iraque foram alvo de três grandes
ondas de perseguição : Dora, um subúrbio da capital, no período 2006-2007,
esvaziou-se de cristãos; em Outubro de 2008, Mossul e a província de Nínive;
aldeias cristãs com Mossul novamente em Junho, Julho e Agosto de 2014. Em todos
os casos, os extremistas advertiram os cristãos a tornarem-se muçulmanos ou a
pagar o jiziah, a taxa dos dhimmis para a sua sobrevivência, ou a irem-se
embora sem levar nada. O imposto poderia ser substituído pelo recrutamento de
jovens cristãos para a guerra ou de raparigas para o nikah e a jihad [as noivas
da Jihad, isto é, para se unirem à milícia e terem filhos para os educar em
combate – ndr.]. Os cristãos tiveram de ir para o exílio, deixando tudo. Se
tivessem ficado, seria legítimo matá-los, ato justificado por Deus de acordo
com a lei Sharia, o código das leis e da jurisprudência islâmicas.
A
perseguição é, portanto, o resultado do fanatismo religioso muçulmano que faz
estragos no Iraque. Todavia, a perseguição não parece uma criação espontânea.
Parece-me a ponta de um grande icebergue. Em vista disso, tem de se explorar
esta montanha para encontrar um melhor diagnóstico, e um remédio efetivo. Para
isso, proponho responder a três perguntas : de onde nasce a perseguição? Quem
são os seus patrocinadores? Como detê-los?
De onde nascem as perseguições?
Uma
das características fundamentais da perseguição é que não se produz por
casualidade. É organizada de forma voluntária, às vezes de maneira premeditada
– é o produto de uma história, de um processo, de uma evolução, num contexto
cultural particular. A perseguição dos cristãos no Iraque, que marca a evolução
deste país desde 2003, vem de muito longe.
Em
2003, cai a ditadura [de Saddam Hussein – ndr], e a sociedade fica entregue a
si mesma. Os seus conflitos, os seus muitos problemas congelados durante
demasiado tempo… tudo rebenta. Privada do Estado, que sucumbe à anarquia, uma
regressão inexorável, sem nenhum tipo de refúgio... O tribalismo tem o
protagonismo. A religião, a dominante, «fundamentaliza-se»,
«confessionaliza-se» e legitima assim
a perseguição.
Em
vez de proteger a cultura e a mentalidade da regressão, a religião já não
enfrenta a violência para reconciliar. Este tipo de violência incide na cultura
e nas estruturas que nunca perderam o seu fundo tribal, no sentido etnológico.
Em
lugar da fundação da alteridade, de aceitar a diferença, para recriar a relação
entre unidade e pluralidade, deixa-se monopolizar pelos fanáticos, pelos
ignorantes, pelos oportunistas, pelos líderes em busca de legitimidade, pelos
homens da religião, sedentos de poder, a religião dos muçulmanos que se
reproduz todos os dias para legitimar os excessos, a discriminação, a
perseguição. Das novas estruturas políticas – entre as quais a Constituição –
apesar da sua abertura à modernidade, apesar do progresso sério em favor da
liberdade, o que resta é para se imbuir da religião, e utilizaram-na para a
explorar. Acerca deste ponto, o artigo 2 da Constituição di-lo amplamente [o
artigo 2 da Constituição iraquiana estabelece que o Islão é a religião do
Estado; a alínea A determina que nenhuma lei que contradiga o Islão pode ser
promulgada. Segundo vários especialistas, é possível que se use este parágrafo
para ir contra outras liberdades – que também a Constituição defende – ndr].
Quem patrocina a perseguição?
A
perseguição é um fenômeno complexo. A nossa história no Médio Oriente
ensina-nos que pode ser óbvia ou subtil, sistemática ou ocasional, como uma
torrente ou um sussurro furioso. Pode envolver diferentes atores sociais ou
políticos. Pode ser o trabalho de um grupo ou de uma ação individual. O
nacionalismo árabe, que chegou ao poder em alguns países, recorre à violência e
à perseguição. O fundamentalismo religioso, que quer substituir-se nisso, não é
menos ardente em recorrer à violência e à perseguição. A política
internacional, que se desdobra para assegurar os seus interesses na região, contribui
para a instabilidade e incita às ações extremistas e à perseguição.
O
que vemos são os executores e não os seus patrocinadores. Vemos as tragédias e
nunca estamos seguros do quê ou a quem vão servir.
Olhando
superficialmente para o Iraque, não se pode não estar consciente da «limpeza étnico-confessional». E por
detrás dos protagonistas visíveis não são visíveis as forças dos facilitadores
e «desfacilitadores» da história
humana?
Desde
os anos 50 do século XX que se fala de um novo Médio Oriente, dilatado,
grandioso, etc. Este projeto de remodelação da sociedade, de homogeneizar os
grupos humanos, de os transferir, eliminar, de exilar outros, não prepara o
caminho para a perseguição?
Perseguir
os cristãos no Iraque e obrigá-los a exilar-se, a cortar as pontes entre os
grupos étnicos e confissões durante a reconstrução, sempre os cristãos;
eliminar os mediadores e moderadores que eram cristãos; provocar as comunidades, que se
distanciarão umas das outras em direção a um narcisismo político-social-cultural.
A violência será – como diz a Bíblia acerca de Caim – essa besta selvagem que
atingirá um e outro, porque as contendas não mais acabarão: «Porque te encolerizaste? Porque descaiu o
teu semblante? Se procedes bem, não serás enaltecido? Mas se não procedes bem,
o pecado está à porta; para ti é o teu instinto, mas é preciso dominá-lo»
(Gn 4, 6-7).
Como conter a perseguição?
Parece
claro que vamos ter de lutar em duas frentes. No interior, é essencial voltar a
examinar a cultura e as estruturas. Temos de trabalhar muito na educação, na
formação contínua dos valores e comportamentos da população civil… é um grande
trabalho para fazer no âmbito das leis para eliminar a discriminação. Mas
também para refundar a cidadania a fim de estabelecer «a igualdade, a fraternidade e a liberdade».
Na
frente externa, o principal é deter a desestabilização política da guerra
através de terceiros, a nível regional e internacional, recordando que a paz é
a melhor forma de conceber os seus próprios interesses e de coexistir em
condições de segurança. Voltando ao Iraque, isto é necessário para ajudar o
Estado a ser novamente a instituição fundamental da sociedade, que anima,
regula, dá abrigo e a salva da sua própria violência. O Estado, apesar de todos
os limites possíveis, será a melhor garantia para uma convivência entre os
cidadãos.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuuEElAlEAuMtPmUAC
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