*Artigo de Paulo Vasconcelos Jacobina
‘É
muito grave perceber que, dentro da crise política que se vive hoje no Brasil,
muitas pessoas têm sérias dificuldades de entender o que é o ‘bem’. É claro que
esta confusão conceitual está muito disseminada em nossa sociedade, e se alguém
pergunta a qualquer um o que é o ‘bem’, encontrará as respostas mais diversas,
todas articuladas em torno da ideia de que o ‘bem’ é aquilo que cada um resolve
definir como ‘bem’, ou se constitui uma noção que não vai além do momento
histórico e dos indivíduos envolvidos, num niilismo evidente que torna
impossível debater o problema do ‘bem’ com algum grau de racionalidade.
(Anotação necessária : niilismo é aquela corrente de pensamento que defende que
todas as crenças, valores, costumes, virtudes e normas, legais e morais, estão,
no fundo, lastreadas no nada, ou seja, não têm outro fundamento senão o puro
poder de quem domina o outro).
O
problema é mais grave do que parece. De fato, no livro ‘Cidade de Deus’ de
Santo Agostinho (Livro IV, capítulo 4), ele expressamente questiona :
Afastada
a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões?
Que é que são, na verdade, as quadrilhas de ladrões senão pequenos reinos?
Estas são bandos de gente que se submete ao comando de um chefe, que se vincula
por um pacto social e reparte a presa segundo a lei por ela aceite. Se este mal
for engrossando pela afluência de numerosos homens perdidos, a ponto de
ocuparem territórios, constituírem sedes, ocuparem cidades e subjugarem povos
arroga-se então abertamente o título de reino, título que lhe confere aos olhos
de todos, não a renúncia à cupidez, mas a garantia da impunidade.
Veja-se,
portanto, a importância e a atualidade do problema. Conforme alguém consiga ou
não acreditar que o bem é real e pode ser compreendido racionalmente, fica mais
fácil ou mais difícil, por exemplo, entender a diferença entre um réu
colaborador da justiça, por um lado, e um delator, traidor e desleal, por
outro. A questão da moralidade da chamada delação premiada, que é um assunto
tão atual, somente se põe neste contexto!
Os
relativistas niilistas e a sua tolerância intolerante.
Isto
posto, há duas posturas básicas das quais se pode partir para entender
exatamente o problema da corrupção, e o problema do ‘bem’, quando relacionado
ao Estado e à sua gestão: os do que defendem a concretude ontológica do bem, e
a dos niilistas relativistas . Estes últimos acreditam, em algum grau, que no
fundo a realidade nada mais é do que aquilo que aparece aos olhos. Se todos os
valores, crenças, normas sociais e legais estão lastreadas no nada, então o bem
e o nada se confundem – ou seja, o bem é nada. Dizendo de modo mais técnico : se
adotamos uma metafísica ‘niilista’ (perdão pelo oxímoro) então concluiríamos
que não há nada, ontologicamente falando, que se possa chamar de ‘bem’.
Restaria apenas admitir que não há mesmo, nem em tese, diferenças entre chefes
de quadrilhas e governantes estatais; que não haveria no fundo diferença entre
um empresário e um grande traficante de morro, senão o fato de que o primeiro
tem de fato o poder, tem o Estado a seu favor, e o segundo conta apenas com
seus comparsas para defendê-lo.
Não
se trata, aqui, de admitir que, algumas vezes, alguns governantes esquecem-se
completamente do bem e passam a agir como bandidos (que é o que Santo Agostinho
está tentando dizer, no texto acima). Trata-se, para os que adotam a metafísica
niilista, de defender que não há mesmo diferenças reais entre eles, senão o
tamanho do poder que eles têm de impor, ou ao menos influenciar, no
comportamento dos outros.
Os
que adotam a metafísica niilista quanto ao bem fazem muito sucesso por aí.
Parte do charme de suas posições decorre, por exemplo, do fato de que se
apresentam como tolerantes (porque se o bem não existe, então todos são
igualmente bons ou igualmente maus, independentemente de serem monstros
egoístas ou a Madre Teresa de Calcutá). Em nome de seu relativismo, o niilista
perdeu absolutamente a noção da diferença tradicional entre respeito (que se
define como a admiração por quem é bom) e tolerância (que é, numa concepção
tradicional, a capacidade de conviver e dialogar com quem pode estar errado). A
tolerância niilista é, portanto, a declaração de que, diante do fato de que a
diferença entre o certo e o errado não é real, mas é apenas o resultado do
poder político, econômico e social que uma quadrilha hegemônica detém na
sociedade em determinado momento, então ninguém deve, em princípio, ser
respeitado, mas todos devem ser tolerados. O tolerante niilista defende que os
únicos que não devem ser tolerados são os intolerantes. Mas quem são, para o
relativista niilista, os intolerantes, e portanto intoleráveis?
Não
é difícil perceber que a palavra tolerância adquire, para o relativista
niilista, um sentido muito distorcido : uma pessoa que, partindo de uma visão
não relativista, defenda a existência ontológica do bem, e veja a real
diferença entre um governante que busque o bem comum e um chefe de quadrilha
que eventualmente se aproprie do Estado, declarando que o segundo pode ser
eventualmente tolerado, enquanto o primeiro deve ser louvado e respeitado, é
imediatamente rotulado, pelo niilista ‘tolerante’, como alguém intolerante e
que portanto não deve ser tolerado. O relativista niilista acredita que não há
nenhuma racionalidade em defender que existe algo como o bem e o mal, e que
portanto qualquer pessoa que defenda isto tem, no fundo, uma posição irracional,
e, portanto, religiosa. Se eles partem, a priori, da ideia de que não há nada
além da realidade visível, pensam que somente uma pessoa religiosa seria capaz
de acreditar que bem e mal são realidades. E bradam instantaneamente o seu
grito de guerra ‘o estado é laico!’ tão logo alguém lhes proponha demonstrar
que a razão humana pode, mesmo além ou fora de crenças religiosas estritas,
vislumbrar e debater o bem, e, embora incapazes de apreendê-lo, dominá-lo ou
esgotá-lo, são racionalmente capazes de discernir quando estão se aproximando e
quando estão se afastando dele. Esta é uma posição que, embora não seja
essencialmente religiosa, os tolerantes relativistas niilistas não toleram! Os
niilistas morais, muitas vezes, estão tão cegos pela sua ideologia que não percebem
enxergar a contradição nesta atitude!
Os
relativistas niilistas e a denúncia do poder.
Outro
charme da posição dos relativistas niilistas é a sua facilidade em denunciar
estruturas de poder. Como eles acham que não há diferença entre quadrilhas e
governos, nem sequer no plano teórico, então eles acreditam que toda ética,
toda moral, enfim, toda lei, tem seu fundamento, essencialmente, no poder, e
portanto, por definição, atende aos interesses de quem está no poder. É claro
que, não sendo ingênuos, eles sabem que a estrutura de poder não é estática, e
por isso o grupo que está no poder pode, eventualmente, fazer concessões
estratégicas ao grupo que está fora do poder (ou que tem menos poder) para
facilitar a sua própria dominação. Mas, como creem que a ética, a moral e o
direito não teriam nada a ver com o bem e o mal, mas com estar no poder ou
estar fora do poder, então trata-se de alcançar o poder, para possibilitar que
os seus próprios interesses transformem-se em padrão, em norma, em lei. A regra
de conduta, seja moral, seja legal, justifica-se sempre pela vontade do mais
poderoso, não por representar uma medida de razão no sentido do bem (que ele
não crê que exista, afinal). Por isto, um relativista niilista na oposição
tende sempre a ser um sabotador desleal, e, no poder, tende sempre a ser um
ditador. Ainda que, por motivos estratégicos, oculte estas duas posições sob o
manto de qualquer discurso capaz de fazer os outros acreditarem, se necessário,
que ele encarna a vontade da maioria, ou os interesses dos oprimidos, ou
qualquer outro título que permita fazer seus interesses tornarem-se normativos
de forma mais efetiva – ou seja, que lhes dê mais poder. Mas o relativista
niilista nunca denuncia o adversário pela eventual falta de coerência racional,
intelectual, da proposta de bem feita pelo outro, senão pelo que vê como um uso
do poder em detrimento deste ou daquele interesse que considera mais legítimo
ou adequado à sua vontade, ou à vontade de seu grupo, ou à vontade da maioria.
Vista assim, a democracia se transforma, no limite, num duelo de vontades para
descobrir quem é mais forte ou mais esperto, mais capaz de legitimar seus
próprios interesses, ou de sua categoria, pelo exercício do poder. Qualquer um
que esteja no poder, com o qual o relativista discorde, é sempre um opressor.
Por definição!
Qual
a posição dos que defendem a concretude ontológica do bem? Será necessário
debatê-la em outro artigo.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.zenit.org/pt/articles/as-quadrilhas-e-os-estados-de-direito-1
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