‘Segundo
a revista mensal dos missionários combonianos, Nigrizia, o governo da RDC
proibiu a projeção do documentário ‘O
Homem que Conserta as Mulheres’ que devia ter lugar nesta terça 8 e
quata-feira 9 de Setembro no Instituto francês, em Kinshasa.
Da
autoria da renomada jornalista belga Colette Braeckman e realizado pelo
cineasta, Thierry Michel, ele também belga, o documentário é centrado sobre a
figura do médico ginecologista, Denis Mukwege, que vem, desde há
anos, ‘consertando’,
por assim dizer, as mulheres e meninas severamente violadas por diversos grupos
armados, incluindo o próprio Exercito oficial da República Democrática do
Congo, ao ponto de passar a ser conhecido precisamente como ‘o Homem que
Conserta as Mulheres’. É
que não só essas mulheres são violadas sexualmente, mas são-lhes destruídos os
órgãos genitais por razões que vamos recordar mais adiante.
A
projeção do filme documentário, que apresenta também os testemunhos de muitas
vítimas dessas violências, foi
proibida porque,
segundo o Ministro congolês da comunicação, Lambert Mende, dá uma má imagem das Forças Armadas Congolesas.
Além disso, o Ministro considera que algumas passagens do filme são ‘inaceitáveis’,
assim como seria inaceitável que os soldados sejam acusados de estupro.
Surpreendido
com esta atitude do Ministro, o Doutor Mukwege reagiu com estas palavras
referidas pela nossa fonte, a revista Nigrizia, que cita a Rádio France
Internacional :
‘Creio que a população congolesa tenha o
direito de conhecer a sua história e de ser informada. E acho que há muitas
maneiras de o fazer. Neste caso trata-se de testemunho de atores da sociedade
civil, de mulheres vítimas de violências sexuais. Creio que não podemos evitar que
certos fatos se repitam se não tivermos uma memória coletiva que nos leve a
dizer ‘nunca mais’. Esta é uma demonstração da vontade do governo de negar ao
povo congolês o direito de acesso à informação a fim de o manipular e de o
controlar melhor’.
Recorde-se
que, pela sua ação no Hospital de Panzi, Sul do Kivu, e pelo seu forte empenho em denunciar a
violência contra as mulheres, o Doutor
Denis Mukwege foi prestigiado em 2014 com o prêmio europeu Sakharov sobre a
liberdade de pensamento e foi candidato ao Prémio Nobel da Paz. O ginecologista
já foi diversas vezes ameaçado e, em 2012 foi vítima de um atentado na sua
casa, em Bukavu, atentado no qual perdeu a vida o seu guarda-costas.
Sobre
a questão da proibição da projeção do filme, interveio – informa ainda
Nigrizia – a organização ‘Jornalistas sem
Fronteira’ condenando firmemente a decisão do governo de Kinshasa. Numa
nota a responsável do setor África dessa organização, Clea Khan-Sriber,
declarou :
‘O comportamento do governo congolês é
ultrajoso e indicativo da sua limitada visão das coisas. Como pode o governo
negar a realidade de uma violência que causou sofrimentos a milhares de homens
e mulheres congoleses nos últimos vinte anos no leste do país? Como pode o
governo negar o direito fundamental do público de ter acesso à informação e
conhecer a história do próprio País?’
Segundo
um relatório publicado em 2011 pela American
Public Health Association, na
República do Congo 1.152 mulheres eram em média estupradas por dia, ou seja 48
em cada hora, quatro em cada cinco minutos. Números estrondosos que levaram a etiquetar
a RDC de capital do estupro no mundo. Os numerosos conflitos pela
monopolização dos minerais de que é rico o país, têm criado um clima propício
para isso. E de fato, numa sua intervenção no Parlamento Europeu em Julho de
2011, o Dr. Denis Mukwege Mukengere
dizia que o ‘carimbo’ dessas
violências tem variado conforme as fases da guerra no país, requerendo uma
monitorização, para melhor se combater o fenômeno. A essa sua intervenção
tínhamos dado espaço, nesse ano (2011) na rubrica ‘África. Vozes Femininas’ de que vos propomos aqui um extrato…
Umas
trezentas mulheres foram violadas em meados de Junho por soldados armados em
fuga de varias localidades no Sul do Kivu, na RDC. A notícia foi dada na
primeira semana de Julho por diversas mídias que citaram fontes médicas,
confirmadas pela ONU.
Em
finais de Maio a representante especial da ONU para a luta contra a violência
sexual nos conflitos, Margott Wallstrom, esteve no Parlamento Europeu para
fazer o ponto da situação sobre a questão da violação de mulheres no mundo em
contextos de guerra. A RDC foi um dos países que chamou em causa, como um dos
fulcros mais graves desta chaga hoje no mundo. Na mesma ocasião o médico
ginecologista congolês, Denis
Mukwege Mukengere falou da situação concreta no país frisando que não se trata
dum fenômeno cultural como muitos pensam, mas de consequências da guerra. São crimes sistemáticos que
afetam aldeias inteiras e que não levam em consideração o sexo ou a idade da
pessoa. Pelo teor das feridas ou danos provocados aos órgãos sexuais da mulher,
pode-se identificar o autor desses crimes, pois que – disse aquele ginecologista congolês - cada
um dos grupos violadores têm, por assim dizer, o seu carimbo, o seu método.
Métodos que levam a pensar – segundo ele – em crimes planificados e por detrás
dos quais deve haver um objetivo bem preciso : a seu ver, expulsar as
populações para se apoderar ilegalmente dos recursos minérios, pois que as
violências verificam-se sobretudo em zonas ricas em minerais. E em tudo isto a
mulher é o principal grupo alvo, pois que é o pilar da família, da sociedade, e
quando ela é destruída é mais fácil deslocar toda a comunidade.
O Dr. Mukengere disse terem observado no
hospital que há cerca de 15 anos quando a guerra começou as feridas que as
pessoas apresentavam eram feridas comuns de guerra, mas depois passou-se a verificar a partir de 1999
feridas nos órgãos sexuais feminino que mostra que foram torturadas e
submetidas a métodos de violência que visam a destruição dos órgãos genitais. E
durante esse período, continuou, houve mesmo mulheres que foram sepultadas vivas sobretudo na
localidade de Kasika. Depois entrou-se numa terceira fase da
guerra, em que a população civil se tornou alvo dos conflitos entre o movimento
de resistência congolês – os mai mai e os refugiados hutus ruandeses que se
constituíram em foças politico-militares. E tanto uns como outros violavam as
mulheres, as quais apresentavam lesões graves nos órgãos genitais.
O Dr. Denis sublinhou no seu discurso
que há crianças soldado que foram integradas no exercito sem que tivessem
passado por nenhum processo de formação e de cura dos dramas por que passaram,
e constituem por isso um perigo para a sociedade…
‘Estas crianças
têm uma cultura de ódio, violência, mas quando se fez a mistura dos
soldados não se teve em conta este aspecto da destruição mental por que estas
crianças passaram e, algumas uma vez adultas, foram integradas no Exercito
nacional, sem que nunca tivessem tido um programas psico-sociais tendentes a libertá-los
psicologicamente do drama por que passaram enquanto crianças-soldado. E o
resultado é o que vimos em localidades como Fizi, Baraka… isto é, que cometem
violências contra mulheres, violências que permanecem impunes. Quem são os
autores dessas violências? Acho que no espírito da prevenção deveria haver uma
monitorização para se saber quem faz o quê, quando e de que modo. Atualmente,
não se sabe quantas mulheres são violadas na RDC. As estatísticas não têm
fundamento e não dizem o que se está a passar realmente. Com uma monitorização
constante é possível saber que crimes estão a ser cometidos. Se hoje pegamos
numa ex-criança soldado e metemo-la na sociedade sem um processo de
destraumatização, é um perigo que pomos na sociedade porque temos que ter em
conta que não foram nunca educadas ao respeito da mulher na comunidade’.
‘Temos também de ter em conta as crianças que
viram os pais violentados e mortos e que viram como os pais não eram
respeitados. Essas crianças são um perigo para a sociedade. Creio que chegou o
momento de pensarmos seriamente nesta situação das crianças que viram os pais
martirizados, as próprias mães ser violadas em sua presença… não podemos
pretender que essas crianças respeitem as mães dos outros…
Há crianças que estão a nascer da
violência e que não dispõem de referências na comunidade. As mães dessas
crianças foram levadas mediante a ajuda de psicólogos e sociólogos a assumir a
gravidez e a estabelecer uma relação com o filho. Geralmente consegue-se
atingir essa meta, com excepção duma pequena percentagem de mulheres que encara
a questão de forma muito negativa. Mas desde há alguns anos para cá, temos verificado
que com o tempo essas mulheres mostram vontade de querer continuar a própria
vida e pensam que o homem com quem vão viver uma nova vida não vai aceitar essa
criança. Então procuram confiá-la aos avós, os quais dizem não, o pai dessa
criança foi quem matou familiares nossos. Então a criança fica sem referências
na sociedade. Não podemos, portanto, maravilhar-nos que se torne num novo
violador de mulheres quando for grande. Acho, portanto, que a prevenção tem de
ser considerada uma estratégia por forma a que estas crianças sejam
acompanhadas e encontrem o seu lugar na sociedade’.
Não dispomos de notícias claras se os estupros,
violências e destruição dos órgãos sexuais femininas tem diminuído na RDC, mas
o certo é que essa forma de violência é, muitas vezes, usada para submeter o
adversário no conflito. São cometidas não só por homens pertencentes a grupos
armados e milícias, mas também por soldados do Exercito regular de Kinshasa, em
muitos casos mal pagos, mas treinados, e também pelas forças policiais – escreve a revista Nigrizia num
artigo publicado no passado dia 4 na sua página web. A revista
acrescenta que o grande obstáculo à extirpação desta praga na RDC é o
clima de impunidade que reina no país perante os autores desses atos. A este respeito a revista refere
algumas informações da Campanha Internacional contra os Estupros e Violências
de Gênero nos países em conflito :
‘Autores conhecidos de violações em massa dos
direitos humanos permanecem no exercito, assim como continua também a estar
muito longe a possibilidade de oferecer aos congoleses uma força de segurança
que seja um protetor em vez de ser um instigador de violências de gênero.’
A decisão do governo de Kinshasa de
proibir a projeção esta terça e quarta-feira do filme-documentário sobre ‘O
Homem que Conserta as Mulheres’ continuará – remata a revista Nigrizia no seu
artigo – a falar do assunto e a alimentar dúvidas sobre a imagem do exercito,
aquela imagem que o Ministro da Comunicação, Lambert Mende queria, pelo
contrário, proteger de acusações e conjecturas.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.news.va/pt/news/documentario-o-homem-que-concerta-mulheres-proibid
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