Por
Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
* Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano
Quando nasce uma vocação? Onde situar a sua origem? Qual
é o seu primeiríssimo instante? À pergunta poderíamos dar uma resposta de certo
modo óbvia: a vocação nasce no coração de Deus! Como e quando, porém, se
manifesta ela no coração da pessoa?
‘Viria espontâneo pensar que, dado
tratar-se de um ‘chamamento’ (vocação
provém do verbo latino vocare, ‘chamar’),
ela é semeada pela ‘boca’ de quem
chama e brota no ‘ouvido’ de quem
escuta. Na origem da vocação estaria pois a ‘palavra’.
Eu acho, porém, que antes da palavra
(pronunciada e escutada) está o... olhar! Ou melhor, dois olhares que se
cruzam, que comunicam e estabelecem uma relação particular.
A vocação nasce de um olhar
Encontramos no Evangelho numerosos
exemplos. Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu Simão Pedro e seu irmão André e chamou-os; mais adiante viu os filhos de Zebedeu,
Tiago e João, e chamou-os também (Marcos 1). Passando por ali de novo, no dia
seguinte, viu Levi, filho de Alfeu,
sentado ao posto da cobrança e disse-lhe : ‘Segue-me’;
e este levantou-se e seguiu-o (Marcos 2).
Não sempre este olhar conseguiu o seu
intento, como quando Jesus fitou com
amor o jovem rico e o convidou a segui-lo. O jovem abaixou os olhos e
afastou-se triste, cabisbaixo (Marcos 10). Mas já assim não foi com outro rico, Zaqueu, alcançado também
ele pelo olhar de Jesus : ‘Chegando Jesus
àquele lugar e levantando os olhos, viu-o e disse-lhe : Zaqueu, desce depressa,
porque é preciso que eu fique hoje em tua casa. Ele desceu a toda a pressa e
recebeu-o alegremente’ (Lucas 19).
Esta relação entre vocação e visão não
aparece só com Jesus que chama, Ele que é a Palavra que se tornou visível (1
João 1). Podemos comprovar que tal sucede também em algumas vocações do Antigo
Testamento. Recordemos Moisés, por exemplo : vendo a sarça ardendo,
aproximou-se para ver de perto; o Senhor
viu Moisés que se aproximava para observar e, do meio da sarça, o chamou : ‘Moisés, Moisés’ (Êxodo 3).
Embora o antigo testamento privilegie a
escuta, é dito que no Sinai ‘todo o povo viu as vozes’ (Êxodo 20,18, segundo
o texto hebraico). A palavra não se opõe à visão, ela habita também no olhar!
O olhar de Jesus
O Evangelho nada diz sobre o rosto de
Jesus, as suas feições, a cor dos seus cabelos ou dos seus olhos, mas fala
frequentemente do seu olhar. A sua intimidade passa através do seu modo de
olhar. Com efeito, nós falamos e comunicamos com os olhos; até sentimentos e
emoções íntimas que, por vezes, a palavra não consegue transmitir. Este olhar
de Jesus tinha um efeito singular. Um simples trocar de olhares e tudo muda.
Quando Jesus chamou os seus apóstolos, não se diz que tenha dialogado com eles
ou tentado persuadi-los. O seu olhar tinha um tal poder de convicção ou de
atracção que dispensava palavras ou discursos retóricos. Jesus chamou-os, e
eles abandonaram tudo e seguiram-no imediatamente. O seu olhar tocara-lhes o
coração e a vida deles mudou para sempre.
O Papa Francisco comentava, há tempos,
o impacto deste olhar sobre Mateus. Jesus olha Mateus nos olhos, um cobrador de
impostos, um pecador público. O dinheiro é a sua vida, o seu ídolo. Mas agora,
afirma o papa, sente ‘no seu coração o
olhar de Jesus dirigido a ele’. ‘E
aquele olhar envolve-o totalmente, transformou a sua vida. Nós dizemos :
converteu-o. Assim que viu aquele olhar, levantou-se e seguiu-o. E isso é
verdadeiro : o olhar de Jesus sempre nos levanta. Um olhar que nos leva para
cima, que jamais nos abandona. Jamais humilha. Convida a levantar-se. Um olhar
que leva a crescer, a ir em frente, que encoraja, porque nos quer bem’
(Santa Marta, 21.9.2013).
Um olhar que interpela
Dir-se-ia que a palavra não basta para
suscitar uma vocação. É necessário um olhar que nos ‘interpele’ e dê consistência e força à palavra. Isto tem a sua base
antropológica. Nós comunicamos, antes de mais, com o olhar. Uma verdadeira
comunicação requer um encontro face a face, um olhar-se nos olhos. Não basta
uma simples troca de palavras através do ecrã do iPhone!...
O homem Adão precisa de ter diante de
si um interlocutor, alguém que lhe ‘corresponda’
(um ‘face-a-face’, parece indicar o
texto de Génesis 2,20) para poder compreender-se a si próprio. O olhar do outro
torna-se o espelho em que nos contemplamos. Quando negamos ou suprimimos esse
olhar, como no caso de Caim com o seu irmão Abel, o nosso olhar obscurece-se e
caminhamos nas trevas.
O nosso olhar é interpelado mas também
interpela o mundo e os outros que nos rodeiam. Recebe e exerce uma influência,
positiva ou negativa. Um olhar pode fazer desabrochar quanto de melhor existe
no coração de quem se olha. Tem o poder de fazer renascer a vida e a esperança,
de suscitar potencialidades inimagináveis. Como pode amarfanhar, abater, semear
a morte.
Pensemos no olhar enamorado que faz com
que a amada ou o amado se sinta uma ‘fada’
ou um ‘príncipe’. Naquele olhar,
crescendo, nasce a vocação ao matrimónio. Mas quando aquele olhar começa a
redimensionar o outro, vendo-o com olhos que o diminuem até o anular, aí começa
a tragédia. Basta que apareça um outro olhar em que uma pessoa se sinta
valorizada e estimada para pôr em perigo tal matrimónio.
Um olhar que ama
Ver não é uma tarefa fácil. Hoje
vivemos na época do show planetário, com um dilúvio contínuo de imagens que nos
submergem com o seu poder de sedução. É preciso aprender a ver, pois podemos ‘ter olhos e não ver’ (como diz Jesus dos
seus discípulos, a certa altura). Isto implica uma caminhada espiritual de
purificação do nosso olhar para evitar uma visão superficial, utilitária,
manipuladora...
A pureza do olhar está ligada à do
coração. ‘Os puros de coração verão a
Deus’, diz Jesus. Esta pureza é a do Amor. O ‘bem ver’ é uma questão de ‘bom
coração’. Citando O Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry, ‘Só se vê
bem com o coração’. É o coração que dá profundidade ao olhar, porque ‘o essencial é invisível aos olhos’.
Para purificar o nosso coração
precisamos de nos ver na pupila dos olhos de Deus. Só eles reflectem a imagem
do que somos realmente : ‘Tu és precioso
a meus olhos, porque eu te aprecio e te amo’ (Isaías 43,4). Só assim
descobrimos a nossa verdadeira identidade e a nossa vocação, no olhar
apaixonado do coração de Deus. Por isso os pequenos e os humildes, os pecadores
e as prostitutas se sentiam acolhidos e estimados pelo olhar de Cristo. Fora de
tal olhar o homem desce à fossa : ‘Não me
oculteis a vossa face, para que não me torne como os que descem à sepultura’
(Salmo 142,7).
A vocação nasce e cresce na
contemplação. Aliás São Paulo diz que através do olhar nos transformamos em
espelho de Cristo. A sua imagem impregna o nosso coração e transforma-nos
n’Ele. Grande é o poder desta Imagem! ‘Todos
nós, a rosto descoberto, reflectimos como num espelho a glória do Senhor e nos
vemos transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecentes, pela acção
do Espírito do Senhor’ (2 Coríntios 3,18).
Olhar e deixar-se olhar por Cristo, é o
segredo de uma vocação cristã vivida com paixão. O Papa Francisco, na tal
homilia a que acenámos antes, concluía dizendo : ‘Todos nós nos encontraremos diante daquele olhar, aquele olhar
maravilhoso. E vamos em frente na vida, na certeza de que Ele nos olha. Mas
também Ele nos espera para nos olhar definitivamente. E aquele último olhar de
Jesus sobre a nossa vida será para sempre, será eterno. Eu peço a todos esses
santos que foram olhados por Jesus, que nos preparemos a deixar-nos olhar na
vida, e que nos preparemos também para aquele último... e primeiro olhar de
Jesus’.
Um olhar que vê
Um olhar purificado pelo amor, o olhar
do coração, vê o mundo e os outros com outros olhos! Não com um olhar
indiferente ou concupiscente mas... com olhos de ver!
Eis um bonito exemplo, que tem algo de
fantástico e incrível. Trata-se de uma criança, Vivienne Harr, uma menina
californiana de apenas 8 anos, que deu início a um projecto com o objectivo de
acabar com a exploração infantil.
Um dia a sua mãe fez-lhe ver, com
comoção, uma foto de duas crianças nepalesas, de mãos dadas, transportando nas
costas enormes pedras. Vivienne ficou profundamente chocada. E decidiu ‘fazer alguma coisa’ para mudar tal
situação. A única coisa que sabia e podia fazer era… vender limonada! Com a
ajuda da família, Vivienne construiu a sua barraquinha de limonada, com a
finalidade de amealhar... 100 000 dólares para financiar a libertação de
meninos escravos.
Durante semanas, meses, um ano
inteiro... levou adiante o seu propósito. O seu olhar de um coração de criança
e a sua tenacidade fizeram o milagre.
O seu projecto tornou-se famoso quando
um cronista do The New York Times, tendo recebido uma mensagem de Vivienne, a
publicou no Twitter : ‘Olá, sou uma
criança de 8 anos e vendo limonada contra a escravidão, todos os dias, até
quando alcançar 100 mil dólares.’ Em pouco tempo tão insólita notícia
ganhou destaque em várias emissoras e jornais. Viajando com a sua barraquinha,
convidada a espectáculos e actividades de beneficência…, o sucesso da
iniciativa foi tal que em breve alcançou o objectivo que se propusera.
Quando os pais lhe fizeram notar que
agora podia dar-se por satisfeita, ela perguntou : ‘Mas será que acabou a escravidão das crianças?’ ‘É claro que não’, lhe responderam eles. ‘Então também eu não terminei!’ Continuou
a sua campanha, e chegou a um milhão de dólares. Hoje a sua limonada artesanal
é vendida em muitos lugares do país.
Da venda da limonada Vivienne aprendeu
uma coisa : ‘Pensava que o máximo da vida
fosse outra coisa, e ao invés sou tão feliz servindo e ajudando : é a coisa
mais bela do mundo!’’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAupkkpykZcEZjFgJ