Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Recentemente,
ajudei na edição do Caderno Fé e Cultura, do jornal ‘O São Paulo’, dedicado
ao pensamento de Bento XVI. Vendo o muito que se escreveu sobre ele, fiquei
impressionado com um certo ‘desvio’ na interpretação de suas ideias. Ele ficou
muito conhecido por sua condenação à ‘ditadura do relativismo’, mas seu amor à
Verdade é bem menos reconhecido. Trata-se de um erro comum entre os cristãos
bem-intencionados. O diabo, no livro de C.S. Lewis, Cartas de Um Diabo
a Seu Aprendiz (Thomas Nelson Brasil, 2017), ensina seu discípulo a não
se preocupar quando as pessoas concentrarem todas as suas energias em
combatê-lo – basta que elas olhem mais para ele do que para Deus, para se
deixarem levar pelo mal. É uma antiga sabedoria cristã : se nos detemos
muito na maldade, deixamos de perceber onde e como a bondade se manifesta.
Ao lutar contra a maldade, nos tornamos maus por perdermos a noção de como ser
bom. Condenando o relativismo, perdemos a intimidade com a verdade.
Neste
tempo de fake news
Infelizmente,
a reação de certos bons cristãos à disseminação de fake news se tornou
emblemática desse problema. Estão mais preocupados em saber de onde saiu a
notícia supostamente falsa e quem está denunciando sua falsidade e/ou seu
autor. Se é de autoria de um adversário político, o caso é tratado como exemplo
da falsidade ideológica do outro – sem maiores escrúpulos em saber se era
verdade ou não. Se é de autoria de um correligionário, invoca-se a liberdade de
expressão e não se adentra nos aspectos verídicos ou falsos da notícia. Tanto
num caso quanto no outro, o amor à própria se impõe ao amor para com a verdade.
É
fato que, após um longo tempo de hegemonia de uma ideologia relativista,
criadora das chamadas ‘pós-verdades’, que imagina que não existem fatos, apenas
narrativas, o mundo começou a se dar conta de que a fidelidade à verdade, mesmo
que nas mínimas coisas, é indispensável tanto para a vida social quanto para a
liberdade pessoal. Numa sociedade que não faça a mínima referência à verdade, o
poder se torna o único critério de decisão. Quem tem poder, não apenas diz o
que deve ser feito, mas diz como as coisas devem ser conhecidas e entendidas.
Trata-se da maior das dominações, pois nem mesmo se tem a liberdade de saber
que as coisas poderiam ser diferentes.
Nesta
situação atual, a tragédia, para muitas pessoas bem-intencionadas, é que ao
invés de aderirem mais à verdade, passaram a buscar com mais afinco ao poder.
Alguns influenciadores parecem ter uma ideia de ‘dobrar a aposta’, deturpando a
realidade para que ela pareça ainda mais assustadora, buscando as situações
mais escabrosas, referindo-se às narrativas mais absurdas. Ao invés de mirarem
a verdade, com a intensão de combaterem a falsidade acabam por difundi-la!
Seguir
o exemplo de um homem que amou profundamente a verdade
Bento
XVI amou profundamente a verdade. Denunciou algumas vezes o relativismo, mas
dedicou muito mais ocasiões a explicitar a verdade. Se procurarmos seguir seus
ensinamentos, o que aprendemos?
Em
primeiro lugar, a verdade é indissociável do amor. Deus é amor; o amor
verdadeiro é o propulsor de todo desenvolvimento humano. Essas duas ideias,
presentes em títulos de suas encíclicas (Deus cartas est e Caritas
in veritate) deveriam orientar todo discernimento cristão. O amor
frequentemente está ausente ou adulterado no mundo, mas nosso olhar para a
realidade ainda não é o de Cristo se não formos capazes de descobrir o amor que
se esconde no real e/ou que pode iluminar o real. Os profetas da raiva e do
ressentimento propagam a si próprios, mas não a Cristo.
Além
disso, Bento XVI sempre associa a fidelidade à verdade com humildade. Ele nos
lembra que não somos ‘donos da verdade’, somos ‘servidores da verdade’ e
que não precisamos temer os acertos dos demais justamente porque se sabe
possuído por essa verdade. Por isso, ser fiel à verdade implica também em
saber reconhecer os acertos dos outros e nos deixarmos corrigir por eles.
Combater o relativismo implica em aceitar a relatividade de nossas posições
humanas para aderir sempre mais ao único absoluto que reside em Deus.
O
amor humilde de Bento XVI à verdade e ao outro chega a ser vertiginoso. Para
ele, o único lugar a partir do qual o cristão pode dialogar com as outras
religiões, sendo respeitoso para com elas, mas sem renunciar à verdade, é o
da kenosis de Cristo na cruz – o esvaziamento radical de
sua divindade, culminando na morte como homem, que Ele faz por amor a nós.
Lutamos tanto para não sermos cancelados, para que nossas posições sejam
respeitadas… Mas será nosso amor, que até mesmo se humilha para buscar o bem do
outro, que comunica a verdade!
Que
possamos viver o amor de Deus por nós com tal intensidade que tenhamos a
humildade e a liberdade que Bento XVI nos propôs. O mundo precisa da verdade,
mas ela será comunicada pela beleza de rostos humanos transfigurados pelo amor.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2023/02/19/o-amor-a-verdade-e-o-medo-do-relativismo/
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