Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ
‘Os discípulos regressaram da
missão à qual Jesus os tinha enviado e Herodes acabara de assassinar João
Batista. Jesus se retirou para descansar com os discípulos, do outro lado do
lago. Precisavam tomar distância, conversar juntos e de maneira tranquila sobre
esse momento dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a
urgência permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo
tempo nem para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que procuravam
Jesus. Diz o texto de Marcos que saíram ‘de todos os povoados’ e foram ‘correndo’,
com pressa, com expectativa e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se
comoveu até as entranhas, porque ‘andava como ovelhas sem pastor’, com
fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo
difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes
longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se
darem conta.
Jesus não só transmite um
ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros,
segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu
inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal
maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria
história pessoal, com os outros e com toda a criação.
O ensinamento de Jesus
revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar
de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega
dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens
exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão
simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.
Nesse sentido, o novo
ensinamento de Jesus tem a marca da compaixão. Um dos sintomas de
desumanização, que está revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato
de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos
outros, blindar-nos uns frente aos outros, ou seja, incapacitar-nos para a
compaixão.
A compaixão está cada vez mais
ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o
outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade
para responder aos desafios atuais.
Vivemos num contexto social
onde somos ameaçados por uma forma sutil de apatia. Aqui a compaixão se quebra
com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em ‘sem-paixão’.
Com isso, as nossas relações se desumanizam.
Tal ‘sem-compaixão’ é
uma enfermidade social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e
mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e
unicamente com quem faz parte do seu ‘gueto’.
Acostumamo-nos com a lógica
deste mundo, que esvazia nossa capacidade de nos surpreender ou de nos
inquietar; impermeabilizamos o coração frente à magnitude das feridas sociais,
conformando-nos em responder ‘não há nada que fazer’. Vão desaparecendo
os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer implicação com o
outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito...
Não basta a sensibilidade ou o
sentimento. Não ficamos indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas
salas de estar. Mas, tão rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos
mobiliza porque não tem pontos de conexão com a realidade da exclusão.
A ‘privatização da vida’,
a sensação de impotência diante das tragédias, a distância midiática
(informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa paixão), a
distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os
eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos
outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou
encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença
(transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos,
modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos
produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc..
Quem olha para as manchetes de
notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que
a compaixão está perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais
nobre. Afinal, produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se pobres de
atitudes compassivas.
No entanto, somos
seguidores(as) do Compassivo; Jesus não passa friamente por nada. Ele não passa
indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte, não passa
friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu
sentimento está sempre engajado : Ele é o homem da prontidão de sentimentos,
que deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se tocado pela dor e
miséria.
E jamais fica em
sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se em ações
comandadas pela compaixão : ela flui e jorra de seu coração.
Os Evangelhos destacam os
profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e
solidariedade misericordiosa de Jesus. Muitas vezes é mencionado que o Senhor
foi ‘comovido até as entranhas’ e teve ‘frêmitos de compaixão’;
trata-se de sentimento eminentemente humano.
Até podemos fazer referência
origem etimológica da palavra compaixão. E aqui é muito pouco o apelo ao
vocábulo latino cum-passio (padecer com). É preciso um novo
passo. Para ‘compaixão’ é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão
está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os
termos ‘compaixão’ e ‘útero’ são equivalentes. Assim como o
ventre materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo
semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas ‘ovelhas sem pastor’ :
suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação
generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova vida.
Num mundo em que o anonimato
impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é preciso
ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos,
desmontando os pré-juízos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua
vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender
seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los.
Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão permite
que do coração humano brote a ‘excentricidade’.
A experiência cristã não nos
imuniza contra a contaminação do ‘amor próprio, querer e interesse’; mas
a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e excluído, permanente e
profunda, se converte na fornalha que purifica a insaciável autoafirmação e
interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a pouco, personalidades
excêntricas, livres do domínio despótico do ego.
Texto bíblico : Mc 6,30-34
Na oração : Ser compassivo implica buscar e ativar uma disposição em sair das
fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos familiares e das dinâmicas
mais rotineiras, para entrar em sintonia com as pessoas que são vítimas de
estruturas sociais e políticas que geram miséria, dor e exclusão.
- Compaixão
ou indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância
em seu dia-a-dia?’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1527923/2021/07/ensinamento-com-a-marca-da-compaixao/
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