Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Padre Stephen Saffron, administrador paroquial, reza durante uma tradicional missa em latim em 18 de julho na Igreja de St. Josaphat, no bairro de Queens, na cidade de Nova York
*Artigo do Monsenhor Kevin Irwin, da Arquidiocese de Nova York
Qualquer cisma que possa ocorrer não foi gerado pelo papa, mas já existia de modo silencioso
‘Durante o verão de 1968,
frequentei a Universidade de Notre Dame e fiz os dois primeiros cursos exigidos
para um mestrado em estudos litúrgicos. Um deles era sobre livros e fontes
litúrgicas, ensinada pelo padre beneditino Aelred Tegels. Repetidamente, ele
chamou nossa atenção para o fato de que quase todas as orações nessas fontes
estavam no plural – quaesumus – ‘pedimos’.
O outro curso foi sobre a
Eucaristia e era ministrado pelo padre beneditino Aidan Kavanagh. Um de seus
refrões repetidos foi que a Eucaristia era o Corpo de Cristo sempre edificando
e servindo a Igreja.
Quando voltei ao seminário para
meu segundo ano de teologia, encontrei o professor de teologia moral no
corredor. Ele me disse : ‘Diga algo para mim sobre a liturgia’.
Eu respondi : ‘Igreja’.
Isso é o que me ensinaram naquele verão e tenho aprendido e ensinado até hoje. Liturgia
e Igreja são inseparáveis.
Apresento aqui algumas
reflexões que contextualizam e exploram a carta apostólica Traditionis
custodes do papa Francisco de 16 de julho, que impõe restrições às
celebrações da missa de acordo com o rito latino pré-Vaticano II.
Um tríptico papal
Em meio a todas as discussões
sobre o papado nos últimos anos, acho útil considerar São João Paulo II, o papa
Bento XVI e o papa Francisco como um tríptico papal. Cada um trouxe seus pontos
fortes particulares ao papado e, especificamente, à questão da unidade da
Igreja.
Nenhum papa deseja ter um cisma
como parte de seu legado. João Paulo II viu isso como uma séria ameaça dos
seguidores de Marcel Lefebvre, que ensinava que o Missal de Paulo VI, emitido
em 1970 após o fim do Concílio Vaticano II (1962-65), era herético. Eles também
apontaram que as aberturas do Concílio para outras igrejas cristãs, comunidades
e para o diálogo inter-religioso eram profundamente falhas e suspeitas, na
verdade heréticas.
Portanto, João Paulo II
estendeu um ramo de oliveira muito significativo aos lefebvrianos em 1988 e
permitiu a celebração da missa pré-Vaticano II sob certas restrições. Da noite
para o dia, a questão do missal revisado após o Vaticano II foi descartada.
Curiosamente, o título do
documento que dá essa permissão é A Igreja de Deus (Ecclesia
Dei) e não, por exemplo, ‘A Liturgia de Deus’. Este é o mesmo nome
que João Paulo II deu à comissão cuja responsabilidade era trabalhar pela
reconciliação com os lefebvrianos. A permissão para a missa pré-Vaticano II era
sobre a Igreja e a restauração da unidade da Igreja.
Missa e ensino da
Igreja
No outono de 1996, eu estava
residindo na paróquia Maria Mãe de Deus, no centro de Washington, D.C. Certa
manhã de domingo, estava indo dar uma corrida no National Mall. Minha saída do
prédio coincidiu com a chegada da comunidade que se reuniria para a missa
tridentina das 9h em latim.
Um cavalheiro perguntou se eu
celebraria a missa ‘deles’. Respondi que não, porque não tinha a
permissão do arcebispo. Acontece que quase todos os que compareceram eram da
Diocese de Arlington, Virgínia, porque o bispo de Arlington na época, John
Keating, não permitia a missa tridentina de forma alguma.
Depois da missa, as crianças
participavam das turmas de catequese, mas o texto era o Catecismo de Baltimore
(primeira edição 1885). Consequentemente, não houve ensino do Vaticano II ou
das encíclicas sociais.
Julgo que a preocupação de
Francisco com a doutrina é muito profunda e real. O papa exige que aqueles que
celebram a missa tridentina aceitem ‘o caráter obrigatório do Vaticano II’.
A frase lex orandi, lex
credendi (o que rezamos é/deveria ser o que acreditamos)
ressurgiu um pouco durante os debates sobre a tradução para o inglês do Missal
Romano. Em sua carta apostólica Traditionis custodes, Francisco
reafirma que os livros litúrgicos aprovados pelo papa Paulo VI e por São João
Paulo II ‘constituem a expressão única da lex orandi do Rito
Romano’.
Acabaram as acrobacias
gramaticais que exigiam o uso de frases como ‘a forma ordinária’, ‘a
forma extraordinária’ e ‘o novus ordo’ – sem mencionar a mágica dos
sinos de igreja ou manchetes do jornal paroquial anunciando uma ‘missa
latina’, disponíveis em algum lugar, mas o que estavam realmente dizendo é
que a forma então extraordinária da missa deveria ser a forma ordinária da
celebração.
‘Enriquecimento mútuo’?
Quando o papa Bento XVI em 2007
emitiu sua carta apostólica Summorum pontificum, ampliando as ocasiões
em que aquilo que o papa chamou de ‘forma extraordinária da missa’
poderia ser celebrado, o sumo pontífice também emitiu uma carta para regrar o
falado no documento.
Nessa carta, Bento XVI indicou
que poderia imaginar um ‘enriquecimento mútuo’ da missa de 1570 e da
missa de 1970. Li isso com total surpresa.
Quem decidiria quais elementos
e com base em quê? Bento XVI não criticou severamente a ‘seleção e escolha’
que estava acontecendo na década de 1960 e com razão? Lembro-me de ter visto
orações clandestinas circulando para substituir os textos do missal daquele
dia. (Isso foi em uma cultura de leituras em papel. Eu só posso imaginar o que
pode acontecer e acontece em uma cultura da Internet).
A liturgia é como estar em um
lugar e espaço familiares. Não é reinventar a roda de acordo com
caprichos e gostos ou desgostos individuais. A liturgia simplesmente é.
Honestamente, nesta época
de Summorum, o vento já havia deixado de empurrar as velas sobre a
permissão tridentina para a reconciliação com os lefebvrianos. Mas é curioso
que Bento XVI tenha notado que vários jovens ‘se sentem’ atraídos por
essa forma de missa. A frase é ‘sentiam sua atração’ (em italiano : ‘anche
giovani persone scoprono questa forma liturgica’). Desde quando um
documento oficial da Igreja sobre a liturgia diz respeito aos sentimentos de
alguém ser atraído para a missa A ou para a missa B? A liturgia é.
Quando o Kennedy Center foi
inaugurado em D.C., há 50 anos, a apresentação principal foi a missa
recém-encomendada por Leonard Bernstein. Em cerca de cinco minutos de música, a
orquestra pára abruptamente e um solista canta algo que é exatamente o oposto
da missa. Ele canta : ‘Faça as pazes à medida que avança’ (‘Make it up as
you go along’, que tem um sentido de ‘prepare-se’).
Essa é a antítese completa do
que é a liturgia. Na verdade, não planejamos nenhuma liturgia. Devemos nos
preparar para cada liturgia. Infelizmente, algumas das coisas que devemos
preparar com muito cuidado são coisas que os católicos criticam repetidamente
em muitas pesquisas : a qualidade das homilias e da música.
Um dos primeiros exemplos da
missa tridentina sendo celebrada em DC foi a pedido do candidato presidencial
republicano Pat Buchanan em 1992. Em seu livro Right from the
beginning, Buchanan disse que mesmo durante a missa tridentina ele lia
um livro durante a homilia porque depois do Vaticano II, a Igreja Católica se
tornou ‘a primeira Igreja de Cristo socialista’.
É um grande trabalho para o
Espírito Santo, guiar os bispos como responsáveis pelo ensino do Vaticano II.
Ao mesmo tempo, Buchanan pode ter estado à frente de seu tempo ao ‘contratar’
um padre para celebrar ‘sua’ missa particular na capela de uma escola
secundária. Lamento dizê-lo, mas posso vislumbrar com tristeza a quantidade de
pedidos que farão às escolas e aos seminários aqueles que desejam que se
celebre a forma litúrgica (então) extraordinária.
O fato de que a partir de agora
um seminarista que deseja celebrar a missa Tridentina precisa da permissão da
Sé Apostólica significa que o papa considera esta restauração da liturgia do
Vaticano II com maior seriedade. Com efeito, isso vai esgotar o número de
padres treinados e dispostos a celebrar a missa tridentina.
Alguns dirão (e já o fizeram em
blogs) que essa decisão causará um cisma, o tipo de coisa que João Paulo II
queria evitar em primeiro lugar. Mas minha opinião é que quaisquer ações que as
pessoas tomem simplesmente desmascararão o cisma silencioso que ocorreu e
continua na Igreja Católica sobre uma numerosa série de coisas, incluindo as
preferências litúrgicas.
Voltemos para Notre Dame e para
as premissas básicas que são sobre o ‘nós’ em ‘pedimos’ e que o
Corpo de Cristo na Eucaristia alimente o Corpo de Cristo que é a Igreja. Na
verdade, estamos nisso juntos.
Como isso funciona em uma
cultura que tirou as pessoas do ‘nós’ e presume que o hino nacional
é I did it my way?
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1528680/2021/07/a-igreja-e-um-nos-reflexoes-sobre-a-restricao-de-francisco-a-missa-em-latim/
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