sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

‘Convertei-vos e crede no Evangelho!’ – Primeira Pregação da Quaresma de 2021

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  

*Artigo do Frei Raniero Cantalamessa, OFMCap,

pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

Tradução : P. Ricardo Farias, OFMCap

 

Como de costume, dedicamos esta primeira meditação a uma introdução geral ao tempo quaresmal, antes de entrar no tema específico no programa, uma vez concluído o retiro espiritual da Cúria. No Evangelho do primeiro domingo da Quaresma do ano B, ouvimos o anúncio programático com o qual Jesus inicia seu ministério público : ‘O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!’(Mc 1,15). Vamos meditar sobre este apelo sempre presente de Cristo.

De conversão, fala-se em três momentos ou contextos diversos do Novo Testamento. Cada vez, vem à luz uma sua componente nova. Juntas, as três passagens nos dão uma ideia completa sobre o que é a metanóia evangélica. Não está dito que devemos experimentá-las todas as três juntas, com a intensidade. Há uma conversão para cada estação da vida. O importante é que cada um de nós descubra a que serve para si neste momento.

Convertei-vos, isto é, crede!

A primeira conversão é aquela que ressoa no início da pregação de Jesus e que está resumida nas palavras : ‘Convertei-vos e crede no Evangelho’ (Mc 1,15). Procuremos entender o que significa aqui a palavra conversão. Antes de Jesus, converter-se significava sempre um ‘voltar atrás’ (o termo hebraico, shub, significa inverter a rota, voltar nos próprios passos). Indicava o ato de quem, a um certo ponto da vida, percebe estar ‘fora do rumo’. Então se detém, reconsidera; decide voltar à observância da lei e de retornar à aliança com Deus. A conversão, neste caso, tem um significado fundamentalmente moral e sugere a ideia de algo penoso a se cumprir : mudar costumes, deixar de fazer isso ou aquilo...

Nos lábios de Jesus, este significado muda. Não porque ele se divirta em mudar os significados das palavras, mas porque, com sua vinda, mudaram as coisas. ‘Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus!’. Converter-se não significa mais voltar atrás, à antiga aliança e à observância da lei, mas significa mais dar um salto adiante e entrar no Reino, agarrar a salvação que veio aos homens gratuitamente, por livre e soberana iniciativa de Deus.

Arrependei-vos e crede’ não significam duas coisas diversas e sucessivas, mas a mesma ação fundamental : convertei-vos, isto é, crede! «Prima conversio fit per fidem», escreveu S. Tomás de Aquino : a primeira conversão consiste em crer.[1] Tudo isso requer uma verdadeira ‘conversão’, uma mudança profunda no modo de conceber as nossas relações com Deus. Exige passar da ideia de um Deus que pede, que ordena, que ameaça, à ideia de um Deus que vem com as mãos cheias para se dar todo a nós. É a conversão da ‘lei’ à ‘graça’, tão querida a São Paulo.

‘Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças...’

Escutemos agora a segunda passagem em que, no Evangelho, volta a se falar de conversão :

Naquela hora, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram : ‘Quem é o maior no Reino dos Céus?’ Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse : ‘Em verdade vos digo, se não vos converterdes e nãos vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus’’ (Mt 18,1-3).

Esta vez, sim, que converter-se significa voltar atrás, até mesmo a quando se era criança! O próprio verbo usado, strefo, indica inversão de marcha. Esta é a conversão de quem já entrou no Reino, acreditou no evangelho, já está há tempos no serviço de Cristo. É a nossa conversão!

O que supõe a discussão sobre quem é o maior? Que a preocupação maior não é mais o reino, mas o próprio lugar nele, o próprio eu. Cada um deles tinha algum título para aspirar a ser o maior : Pedro tinha recebido a promessa do primado; Judas, a caixa; Mateus podia dizer que tinha deixado mais do que os outros; André, que tinha sido o primeiro a segui-lo; Tiago e João, que estiveram com ele no Tabor... Os frutos desta situação são evidentes : rivalidades, suspeitas, confrontos, frustração.

Jesus, de imediato, tira o véu. Nem como primeiros, deste modo nem se entra no reino! O remédio? Converter-se, mudar completamente perspectiva e direção. A que Jesus propõe é uma verdadeira revolução copernicana. É preciso ‘descentralizar-se de si mesmo e recentralizar-se em Cristo’.

Jesus fala mais simplesmente de um tornar-se criança. Tornar-se criança, para os apóstolos, significava voltar a como eram no momento do chamado às margens do lago ou no posto de arrecadação : sem pretensões, sem títulos, sem confrontos entre si, sem invejas, sem rivalidades. Ricos apenas de uma promessa (‘Farei de vós pescadores de homens’) e de uma presença, a de Jesus; a quando eram ainda companheiros de aventura, não concorrentes pelo primeiro lugar. Também para nós, tornar-se criança significa voltar ao momento em que descobrimos sermos chamados, ao momento da ordenação sacerdotal, da profissão religiosa, ou do primeiro verdadeiro encontro pessoal com Jesus. Quando dizíamos : ‘Só Deus basta!’, e acreditávamos.

‘Não és frio, nem quente’

O terceiro contexto em que recorre, martelante, o convite à conversão, é dado pelas sete cartas às Igrejas do Apocalipse. As sete cartas são dirigidas a pessoas e comunidades que, como nós, vivem há tempos a vida cristã e, ainda mais, exercem nelas uma papel-guia. São endereçadas ao anjo das diversas Igrejas : ‘Ao anjo da igreja que está em Éfeso’. Não se explica este título senão em referência, direta ou indireta, ao pastor da comunidade. Não se pode pensar que o Espírito Santo atribua a anjos a responsabilidade das culpas e desvios que são denunciados nas diversas igrejas, muito menos que o convite à conversão seja dirigido a anjos ao invés de homens.

Das sete cartas do Apocalipse, a que deve nos fazer refletir mais do que as outras é a carta à Igreja de Laodiceia. Conhecemos seu tom severo : ‘Conheço as tuas obras. Não és frio, nem quente... porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca... Sê zeloso, pois, e arrepende-te’ (Ap 3,15ss). Aqui, trata-se da conversão da mediocridade e da tibieza.

Na história da santidade cristã, o exemplo mais famoso da primeira conversão, a do pecado à graça, é Santo Agostinho; o exemplo mais instrutivo da segunda conversão, a da tibieza ao fervor, é Santa Teresa d’Ávila. O que ela diz de si em seu Livro da Vida é certamente exagerado e ditado pela delicadeza da sua consciência, mas, em todo caso, pode servir a todos nós para um útil exame de consciência.

Comecei, pois, assim, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a pôr novamente em risco a minha alma [...]. As coisas de Deus me davam prazer, e eu não sabia desvencilhar-me daquelas do mundo. Queria conciliar estes dois inimigos entre si e tão contrários : a vida do espírito com os justos e os passatempos dos sentidos’.

O resultado deste estado era uma profunda infelicidade :

Caía e me reerguia, e me reerguia tão mal que voltava a cair. Eu estava tão por baixo em relação à perfeição, que quase não me dava conta dos pecados veniais, e não temia os mortais como deveria, pois não fugia de seus perigos. Posso dizer que a minha vida era das mais penosas que se possam imaginar, pois eu não me deleitava nem com Deus, nem me sentia contente com o mondo. Quando estava nos passatempos mundanos, o pensamento daquilo que eu devia a Deus me fazia transcorrê-los com pena; e quando estava com Deus, vinham-se a distrair os afetos do mundo[2].

Muitos poderiam descobrir nesta análise o real motivo da própria insatisfação e descontentamento.

Falamos, portanto, de conversão da tibieza. São Paulo exortava os cristãos de Roma com as palavras : ‘Não sejais lentos na solicitude, sede fervorosos no espírito’ (Rm 12,11). Seria de se replicar : ‘Mas, caro Paulo, justamente aqui está o problema! Como passar da tibieza ao fervor, se alguém fatalmente aí caiu?’ Nós podemos, pouco a pouco, escorregar na tibieza, como se cai na areia movediça, mas não podemos sair sozinhos, quase puxando-nos pelos cabelos.

Esta nossa objeção nasce do fato de que negligenciamos ou interpretamos mal o acréscimo ‘no espírito’ (en pneumati), que o Apóstolo põe na exortação : ‘sede fervorosos’. Em Paulo, a palavra ‘Espírito’ indica, ou inclui, quase sempre uma referência ao Espírito Santo. Jamais se trata exclusivamente do nosso espírito ou da nossa vontade, exceto em 1Ts 5,23, onde indica uma componente do homem, ao lado do corpo e da alma.

Somos herdeiros de uma espiritualidade que concebia o caminho de perfeição segundo as três etapas clássicas : via purgativa, via iluminativa e via unitiva. Em outras palavras, é preciso exercitar-se longamente na renúncia e na mortificação, antes de poder experimentar o fervor. Há uma grande sabedoria e uma experiência secular à base de tudo isso, e ai de se pensar que tudo esteja superado. Não, não está superado, mas não é a única via que segue a graça de Deus. Um esquema assim rígido denota uma lenta e progressiva mudança do acento da graça ao esforço do homem. Segundo o Novo Testamento, há uma circularidade e uma simultaneidade, por isso, se é verdade que a mortificação é necessária para chegar ao fervor do Espírito, é também verdade que o fervor do Espírito é necessário para chegar a praticar a mortificação. Uma ascese assumida sem um forte impulso inicial do Espírito seria um esforço morto, e não produziria nada senão ‘vaidade da carne’. O Espírito nos é dado para estarmos condições de nos mortificarmos, mais do que como prêmio por termos nos mortificado. ‘Se, pelo Espírito, matardes o procedimento carnal, então vivereis’, escreve o Apóstolo (Rom 8,13),

Esta segunda via que vai do fervor à ascese e à prática das virtudes foi a via que Jesus fez percorrer os seus apóstolos. Escreve o grande teólogo bizantino Cabásilas :

Os apóstolos e pais da nossa fé tiveram a vantagem de serem instruídos em toda doutrina e, ainda mais, do Salvador em pessoa. [...] Contudo, mesmo tendo conhecido tudo isso, enquanto não foram batizados [em Pentecostes, com o Espírito], não mostraram nada de novo, de nobre, de espiritual, de melhor do que o antigo. Mas quando veio para eles o batismo e o Paráclito irrompeu em suas almas, então se tornaram novos e abraçaram uma vida nova, foram guia para os demais e fizeram arder a chama do amor por Cristo em si nos outros. [...] Do mesmo modo, Deus conduz à perfeição todos os santos vindos depois deles[3].

Os Padres da Igreja expressavam tudo isso com a sugestiva imagem da ‘sóbria embriaguez’. O que levou muitos deles a retomar este tema, já desenvolvido por Fílon de Alexandria[4], foram as palavras de Paulo aos Efésios :

Não vos embriagueis com vinho, que leva ao descontrole, mas enchei-vos do Espírito : entoai juntos salmos, hinos e cânticos espirituais, cantai e salmodiai ao Senhor, de todo o coração’ (Ef 5,18-19).

A partir de Orígenes, não se contam os textos dos Padres que ilustram este tema, jogando ora com a analogia, ora com o contraste entre embriaguez material e embriaguez espiritual. Quem, em Pentecostes, confundiu os apóstolos como embriagados, tinha razão – escrive São Cirilo de Jerusalém –; erravam apenas em atribuir tal embriaguez ao vinho comum, enquanto que se tratava do ‘vinho novo’, obtido a partir da ‘verdadeira videira’ que é Cristo; os apóstolos estavam, sim, embriagados, mas daquela sóbria embriaguez que mata o pecado e dá vida ao coração[5].

Como fazer para retomar este ideal da sóbria embriaguez e encarná-lo na presente situação histórica e eclesial? Onde está escrito, de fato, que um tão ‘forte’ de experimentar o Espírito era prerrogativa exclusiva dos Padres e dos primeiros tempos da Igreja, mas que já não o é mais para nós? O dom de Cristo não é limitado a uma época particular, mas oferecido a toda época. É justamente papel do Espírito tornar universal a redenção de Cristo, disponível a cada pessoa, em cada ponto do tempo e do espaço.

Uma vida cristã cheia de esforços ascéticos e de mortificação, mas sem o toque vivificante do Espírito, pareceria – dizia um antigo Padre – uma Missa na qual fossem lidas tantas leituras, cumprissem-se todos os ritos e levassem tantas ofertas, mas na qual não acontecessem a consagração das espécies por parte do sacerdote. Tudo permaneceria o que era antes, pão e vinho.

Assim – concluía esse Padre – é também para o cristão. Se também ele tiver cumprido perfeitamente o jejum e a vigília, a salmodia e toda a ascese e toda virtude, mas não se cumpriu, pela graça, no altar do seu coração, a mística operação do Espírito, todo este processo ascético será incompleto e quase em vão, porque ele não tem a exultação do Espírito misticamente operante no coração[6].

Quais são os ‘lugares’ onde o Espírito age hoje desta maneira pentecostal? Escutemos a voz de Santo Ambrósio, que foi o cantor por excelência, entre os Padres latinos, da sóbria embriaguez do Espírito. Após ter recordado os dois ‘lugares’ clássicos onde sorver o Espírito – a Eucaristia e as Escrituras –, ele acena a uma terceira possibilidade. Diz :

Há também uma outra embriaguez que se opera por meio da penetrante chuva do Espírito Santo. Foi assim que, nos Atos dos Apóstolos, aqueles que falavam em línguas diversas pareciam aos ouvintes como se estivessem cheios de vinho[7].

Após ter recordado os meios ‘ordinários’, Santo Ambrósio, com estas palavras, acena a um meio diverso, ‘extraordinário’, no sentido de que não é determinado antecipadamente, não é algo instituído. Consiste em reavivar a experiência que os apóstolos fizeram no dia de Pentecostes. Ambrósio certamente não queria apontar para esta terceira possibilidade, para dizer aos ouvintes que esta era excluída para eles, sendo reservada apenas aos apóstolos e à primeira geração de cristãos. Ao contrário, ele desejar estimular os seus fiéis a fazer a experiência daquela ‘chuva penetrante do Espírito’ que se verificou em Pentecostes. É o que São João XXIII se repropunha com o Concílio Vaticano II : um ‘novo Pentecostes’ para a Igreja.

Portanto, para nós há a possibilidade de sorver o Espírito por esta nova via, dependente unicamente da livre e soberana iniciativa de Deus. Um dos modos em que se manifesta aos nossos dias este modo de agir do Espírito para além dos canais institucionais da graça é o chamado ‘batismo no Espírito’. Aceno a ele nesta sede sem qualquer intenção de proselitismo, apenas para responder à exortação que o Papa Francisco dirige aos adeptos da Renovação Carismática Católica para compartilhar com todo o povo de Deus esta ‘corrente de graça’ que se experimenta no batismo do Espírito.

A expressão ‘Batismo no Espírito’ procede do próprio Jesus. Referindo-se à próxima Pentecostes, antes de subir ao céu, ele disse aos seus apóstolos : ‘João batizou com água; vós, porém, dentro de poucos dias, sereis batizados com o Espírito Santo’ (At 1,5). Trata-se de um rito que não tem nada de exotérico, mas é feito mais de gestos de grande simplicidade, calma e alegria, acompanhados de posturas de humildade, arrependimento, disponibilidade em se tornar crianças.

É uma renovação e uma atualização não apenas do batismo e da crisma, mas de toda a vida cristã : para os casados, do sacramento do matrimônio, para os sacerdotes, da sua ordenação, para os consagrados, da sua profissão religiosa. O interessado para tal se prepara, além de uma boa confissão, participando de encontros de catequese, nos quais se põe em um contato vivo e alegre com as principais verdades e realidades da fé : o amor de Deus, o pecado, a salvação, a vida nova, a transformação em Cristo, os carismas, os frutos do Espírito. O fruto mais frequente e mais importante é a descoberta do que significa ter ‘uma relação pessoal’ com Jesus ressuscitado e vivo. Na compreensão católica, o batismo no Espírito não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida rumo à maturidade cristã e ao compromisso eclesial.

É justo esperar que todos passem por esta experiência? É ela o único modo possível para experimentar a graça de um renovado Pentecostes, desejada pelo Concílio? Se, por batismo no Espírito, pensarmos em um certo rito, em um certo contexto, devemos responder que não; certamente, não é o único modo para fazer uma experiência forte do Espírito. Houve e há inúmeros cristãos que fizeram uma experiência análoga, sem nada saber do batismo no Espírito, recebendo um evidente incremento de graça e uma nova unção do Espírito após um retiro, um encontro, uma leitura. Até um curso de exercícios espirituais pode muito bem se concluir com uma especial invocação do Espírito Santo, se quem orienta fez uma experiência e os participantes o desejarem. O segredo é dizer uma vez ‘Vinde, Santo Espírito’, mas dizê-lo com todo o coração, deixando o Espírito livre para vir da maneira que ele quiser, não como gostaríamos que ele viesse, possivelmente sem mudar nada em nossa maneira de viver e orar.

O ‘batismo no Espírito’ tem se revelado um meio simples e potente para renovar a vida de milhões de fiéis em quase todas as Igrejas cristãs. Não se pode contar as pessoas que eram cristãs só de nome e, graças a essa experiência, tornaram-se cristãs de fato, dedicadas à oração de louvor e aos sacramentos, ativas na evangelização e prontas a assumir encargos pastorais na paróquia. Uma verdadeira conversão da tibieza ao fervor! É o caso de dizer a nós mesmos o que Agostinho repetia a si mesmo, quase com desdém, ao escutar histórias de homens e mulheres que, em suo tempo, abandonavam o mundo para se dedicar a Deus : ‘Si isti et istae, cur non ego?[8] : Se estes e estas, por que também não eu?

Peçamos à Mãe de Deus que nos obtenha a graça que obteve do Filho em Caná da Galileia. Por sua oração, naquela ocasião, a água se converteu em vinho. Peçamos que, por sua intercessão, a água da nossa tibieza se converta no vinho de um renovado fervor. O vinho que em Pentecostes provocou nos apóstolos a embriaguez do Espírito e os tornou ‘fervorosos no Espírito’.

 

Fonte :

*Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2021-02/primeira-pregacao-quaresma-raniero-cantalamessa.html

------------------------

[1] S. Tomás, S.Th, I-IIae, q. 113, a. 4.

[2] Cf. Teresa d’Ávila, Livro da Vida, cc. 7-8.

[3] Cf. N. Cabásilas, Vita in Cristo, II,8 : PG 150,552ss.

[4] Cf. Fílon de Alexandria, Legum allegoriae, I,84  (methē nefalios).

[5] Cf. S. Cirilo de Jerusalém, Cat. XVII,18-19 (PG 33, 989).

[6] Cf. Macário do Egito, in Filocalia, 3, Torino 1985, p. 325).

[7] Cf. Santo Ambrósio, Com. ao Salmo 35,19.

[8] Santo Agostinho, Confissões, VIII, 8,19.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Quaresma, a grande limpeza da nossa vida interior

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Entrevista realizada por Luc Adrian 


‘Para Yves Boulvin, psicoterapeuta cristão, a Quaresma é uma oportunidade maravilhosa para voltar o olhar para si mesmo, para a própria vida interior, para os outros e redescobrir a Deus. A seguir, ele nos dá alguns conselhos sobre o assunto.

Como você vê a Quaresma?

Este tempo é uma grande oportunidade para trabalhar sobre si mesmo e discernir do que é preciso se libertar. ‘Eu vim para libertar os cativos’, garante Jesus. No entanto, vivemos apenas em semi-liberdade, presos a muitos condicionamentos. Durante a Quaresma, Cristo nos diz : ‘Eu vim para te libertar, você me aceita?’. A boa nova é muito grande!

Se a Quaresma não existisse, teria que ser inventada?

Sim, é um momento de fazer um inventário e uma limpeza. Livramo-nos do desnecessário, daquilo que pesa. Fazemos isso em nossas casas, nossos carros, nossos escritórios, por que não em nossas vidas?

Qual é a primeira dica para uma Quaresma frutífera?

Saia da culpa e entre em verdadeira contrição. Sentir-se culpado e apenas culpado é se julgar em um perfeccionismo moral onde você quer ser perfeito. Há até quem se alivie da culpa sentindo-se culpado : ‘Sou uma boa pessoa porque me sinto culpado!’. A culpa que não leva à fertilidade nos faz andar em círculos; ao contrário da contrição, esta lágrima do coração que nos atravessa ao perceber o que está errado com a nossa vida e que levará à decisão por uma mudança, sabendo que vai demorar, que é preciso paciência e verdadeira perseverança e, portanto, verdadeira humildade para ter sucesso.

O que é preciso mudar primeiro em si mesmo?

Nosso ‘perfeccionismo’, justamente. Somos prisioneiros de uma interpretação ‘moralizante’ do convite de Cristo : ‘Sede perfeitos como o vosso Pai é perfeito’. Acreditamos que podemos ser perfeitos como Deus, e no agora. Fizemos de um objetivo a ser alcançado uma obrigação imediata. E como não somos capazes de ser perfeitos no hoje, nos sentimos culpados, não nos amamos, nos criticamos, e nos desesperamos. Admito que não sou perfeita e nunca serei. Mas decido ir de imperfeição em imperfeição, aceitando-as cada vez mais no amor de Deus. Não há perfeição, exceto na imperfeição perfeitamente aceita. Jesus nunca acusou um pecador, mas condenou os orgulhosos fariseus que se colocavam acima dos outros.

Por que temos tanto medo da Quaresma?

Trazemos em torno da Igreja um legado de medos, muitos dos quais ainda não emergiram : medo de um Deus juiz, do inferno, do castigo… E então, temos medo de mudar hábitos. As velhas rotinas nos tranquilizam; elas até geram em nós um efeito de consolação. A Quaresma oferece a oportunidade de nos questionar sobre esses hábitos.

Por exemplo?

Quais são os comportamentos prejudiciais que tenho tido há muito tempo no meu estilo de vida : vou para a cama tarde demais, como irregularmente enquanto mordisco a toda hora, não faço exercícios, entre outros. Como posso imaginar uma mudança que seja gradual, que não seja muito frustrante e que seja adequada com o meu dia a dia? O que eu gostaria de mudar em minhas relações com os outros? O hábito de evitar confrontos; o caráter muito submisso, muito gentil ou muito rebelde; a tendência de caluniar, criticar, de desconfiança perpétua… Aceitemos sem nos justificar, sem nos sentir culpados, enfrentar as inclinações das quais gostaríamos de nos livrar. Me deixo aprisionar por esse hábito e sofro com isso? Então preciso buscar não me deixar dominar pela culpa, não adianta. Decidir mudar algo e manter minha decisão dia após dia. Não esquecendo que uma resolução deve ser assumida diariamente, aceitando erros, valorizando o progresso, incentivando-se a cada dia.

Podemos assim buscar o axioma observação-ação-reação para uma conversão autêntica?

Sim. Um dos principais obstáculos para melhorar nossa vida é justamente admitir que temos dificuldades, conflitos internos, mas paramos comumente na observação. Isso não leva a nenhuma mudança, nenhuma ‘conversão’. Dizemos a nós mesmos : ‘Não é na minha idade que vou mudar!’; ‘Eu sou assim’; ‘Jamais farei isso’. Porém, como há um necessário abandono dos acontecimentos para os quais nada posso mudar, há também uma reação necessária para ter que expulsar a passividade, a inércia, a recusa em questionar a si mesmo, que nos paralisa.

Os conflitos internos que nos enchem de pensamentos dependem especialmente de mim mesmo : eles só existem porque eu os alimento. Mesmo que eu acredite que sou infeliz pelo que aconteceu com determinada pessoa, na verdade, sou eu quem cultiva o sofrimento. Em primeiro lugar, tenho de ver com humildade como contribuo para a minha infelicidade : entendo que sou o autor do que sinto. Não sou responsável pela parte dos outros, mas apenas pelo que faço.

Como discernir nossas verdadeiras falhas? Existem muitas defesas dentro de nós.

Um teólogo ortodoxo disse : ‘Você não desce ao porão sem acender a luz, senão quebra a cara’. Entrar no exame das camadas psicológicas de alguém sem a Luz de Deus é perigoso, porque muitas vezes pode gerar grande desespero. Se eu permanecer no julgamento, acusarei a mim mesmo ou a outros. E vou jogar o jogo do Acusador. Se procuro esse discernimento no amor de Deus, ele me enriquece, entendo melhor os outros, fico mais humilde e mais tolerante.

Você acredita em uma Quaresma decididamente positiva?

Estou aprendendo a ver as coisas de forma diferente! Por exemplo, eu olho para esse colega de trabalho, meu chefe, meu cônjuge, essa criança, de forma diferente. Não o vejo mais como um perseguidor, mas como um ser ferido, igual a mim. Sem dúvida, levará meses, até anos, mas não posso mais me contentar em ver a existência de meus tormentos e os danos físicos que eles causam sem modificar nada em minha vida. Agora eu realmente quero mudar e treino dia após dia para não ser mais oprimido por pensamentos negativos.

‘Eu quero’… Posso realmente querer, já que nunca consigo?

Aqui está uma frase bem simples que sugiro que você escreva em um pedaço de papel que verá todos os dias : ‘Vou chegar lá!’. Essa frase é importante, pois serve de contrapeso às reflexões que o terapeuta ouve diariamente : ‘É impossível’; ‘Eu nunca vou conseguir’ ; ‘Sou incapaz’. Existem em nós, portanto, frases venenosas, palavras com que nos entregamos ao sofrimento, que nós alimentamos em vez de as combater com determinação. Pare de complacência, pare com essas injunções negativas que impedem a ação de Deus. Diga a si mesmo : eu vou chegar lá!

Porém, nem tudo é possível.

Não, mas o possível, ao invés de me desvalorizar e reclamar, pode ser optar por implementar uma estratégia real de mudança. Vai demorar, vai passar por etapas, mas é possível, e vou chegar lá com a ajuda de Deus! Isso diz respeito tanto às mudanças de comportamento quanto à redução de certas compensações : alimentação, álcool, tabaco, trabalho; como mudanças profissionais, mudanças na minha vida privada, ou ao reequilíbrio da minha vida profissional, minha vida familiar e minha vida pessoal, porque um desses três planos está sobrerrepresentado.

Você acredita que é possível mudar de vida?

Com a condição de passar pela realização concreta e progressiva de uma meta que terei estabelecido para mim. Se não tenho um objetivo, não posso mudar; se eu tiver muitos objetivos, eu não tenho foco. Terei que discernir o objetivo que o Senhor me dá, considerando quem eu sou. O reequilíbrio que ele nos propõe é bastante pessoal. Quando Deus fala, sua palavra é breve : fique, aceite a mudança, aprenda a amar, vá em frente, confie, eu estou com você, persevere, ouse… Porém, na maioria das vezes, nos afogamos em uma quantidade grande de palavras e não nos limitamos a nenhuma. Outras pessoas ancoraram nelas um versículo bíblico : ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ ; ‘Eu vim para libertar os cativos’ ; ‘Levante-se e ande’ ; ’Eles colocam tudo em comum’ ; ‘Não tenha medo, estou com você em tudo que você fizer e onde quer que você vá’.

Você costuma dizer : ‘Meu treinador é o Senhor’. Isso é apenas uma bricadeira?

É sério (risos)! O Senhor não está ao meu lado para me punir, mas para me ajudar, junto com os anjos e os santos, a realizar muito mais plenamente para que fui feito. Para atualizar profundamente o que sou, para mim e para os outros. Gosto da imagem do xadrez : todas as peças são igualmente importantes. O importante é que me sinto bem no meu lugar : não é melhor nem pior do que o vizinho, é meu. A comparação é um veneno mortal : ou eu me desvalorizo ​​ou me supervalorizo. Dói quando ouço estes pensamentos : Como sou estúpido’ ; ‘Eu sou terrível!’ O problema não é saber se sou mais ou menos inteligente, mas qual é o meu tipo de inteligência – sabemos hoje que são pelo menos oito delas -, de sensibilidade e de memória, que será utilizada para frutificar os dons que Deus colocou em mim.

No final de uma conferência uma pessoa me fez a seguinte pergunta : ‘As coisas ainda estão muito piores do que melhores no mundo, não é?’ Eu disse : ‘Você provavelmente pode dizer isso!’. Mas também podemos dizer : em vez de resmungar contra as nuvens, podemos maravilhar-nos de ter olhos que as vêem; em vez de protestar contra o que está errado com nosso corpo, podemos agradecer por essa maravilha que é o corpo e por tudo que ele nos permite realizar, etc. A atitude do pequeno filho de Deus que está em nós é olhar para o que temos e não para o que não temos, e maravilhar-se com isso.

Essa visão da vida e do mundo não depende de cada um? Podemos mudá-la?

Acredito que ela também depende da cultura familiar; da atmosfera mais ou menos positiva em que somos inseridos enquanto crianças; se fomos amados, esperados, desejados ou não; como éramos amados… Mas se depende do nascimento, depende muito também do renascimento. Como posso mudar minha visão, posso converter minha visão negativa da vida e, aos poucos, mudar minha visão sobre o que vivi para me libertar e ajudar outros? Porque exatamente onde me machuquei, posso ajudar outras pessoas. Somente alcoólatras sóbrios podem realmente ajudar os alcoólatras a abandonar o álcool.

A conversão da Quaresma seria principalmente a do olhar?

De minha parte, vou olhar com lucidez. Pode doer, posso me sentir uma bagunça, mas longe de me culpar, vou chorar pelo que perdi, nos braços de Deus. Posso descobrir então que a melhor maneira parar de sofrer pelo meu filho problemático ou meu marido que se foi é entrar em uma atitude de consciência, de arrependimento positivo. E, em vez de querer mudá-lo, primeiro vou mudar a mim mesmo, descobrindo o que em minha vida está na origem de meus próprios ferimentos.

Encontrarei a verdadeira alegria interior sempre que me aprofundar nessa noção de bagunça interna, onde não se trata de acusação, mas de entender o que realmente aconteceu. Felizes os que choram quando realmente compreendem a fonte de sua dor, pois vão descobrir a alegria!

A Quaresma é também um momento de combate?

Pode ser a luta contra a sabotagem interna que continua me trazendo de volta ao negativo. A luta contra a culpa esterilizante. Tenho muitas pessoas com TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) causado pela culpa não resolvida da infância. Não é nada fácil desalojar essas obsessões, é uma verdadeira luta! É a luta de uma criança que aprende a andar – pois o Senhor me convida a ser uma criança novamente. Em passos pequenos, às vezes cambaleantes, às vezes caindo. Dizia Santa Teresinha : ‘Os pequeninos dão pequenos passos’. Apenas devo começar, dando meu pequeno passo! Saber que os pais divinos estão ao meu lado, prontos para me segurar. Theresa acrescentou : ‘Uma criança nunca cai de uma grande altura’. Somos vulneráveis, mas quão vulnerável Deus também se fez em relação a nós! Quanto mais amamos, mais vulneráveis ​​somos. Mas ele nos ama infinitamente!

Estamos vulneráveis ​​e feridos?

Todos nós fomos feridos, machucados. Todos nós já experimentamos, em algum momento de nossa vida, uma sensação de abandono, rejeição, injustiça, traição ou humilhação quando palavras depreciativas nos fazem sentir vergonha. Essas são as nossas cinco grandes feridas : Traição, Rejeição, Abandono, Humilhação, Injustiça.

Se você tem dificuldade em estabelecer laços emocionais duradouros, em manter relações de confiança com amigos ou colegas, se passa mal com o que as pessoas te falam, se tem medo de julgamentos, se demonstra excesso de prudência nos seus compromissos, é porque você acumulou ‘experiências ruins’ que se referem a uma dessas feridas. Portanto, temos que encontrar um lugar para conversar sobre o que doeu. Mas a próxima pergunta é : o que eu faço com minhas feridas, como posso torná-las fecundas?

Elas podem se tornar uma fonte de graça?

Sim, se eu conseguir enxertar o amor de Deus de volta em minhas feridas, em vez de fazer duas pilhas : Deus perfeito de um lado, e eu imperfeito do outro, escondendo cuidadosamente meus erros, meus pecados, meu ‘lado ruim’. A santidade é enxertada em uma pequena brecha. São Paulo fala de lascas na carne. Uma falha feliz, um espinho feliz que nos permite ser mais humildes e que nos leva à compreensão do outro, porque já não podemos julgar da mesma maneira. Em vez de sermos santos por nós mesmos, sabemos que só podemos receber a santidade de Deus. Ser cristão é permitir que Deus passe por tudo o que vivemos : luto, separação, dependências, para nos tornarmos um transeunte da luz de quem sofre ou sofreu do mesmo mal.

Transmissores de luz?

Gosto desta anedota : Existe uma mãe que vai à missa com o filho. Este detalha a arquitetura da igreja durante a liturgia e questiona sua mãe enquanto aponta o dedo para um vitral : Quem é aquele? A mãe, imersa na oração, responde : ‘Ele é cristão’. Cinco minutos depois, o menino aponta para outra janela : ‘Quem é esse?’, e recebe a mesma resposta. Depois, uma terceira vez, a mesma pergunta, a mesma resposta. Na semana seguinte, no catecismo, o líder pergunta : ‘O que é um cristão?’ E o menino responde : ‘É alguém através de quem vemos a luz’. O santo não é alguém que é leve por si mesmo – alguém tão limpo que brilha, porque um vitral muitas vezes fica um pouco sujo – ele é alguém que deixa ser ultrapassado pela luz de Deus. Um pobre homem que aceitou que em toda a sua vida, todas as suas faltas fossem cruzadas por essa luz.

Essa é a sua definição de santidade?

Acredito que sim. Não é uma plenitude que damos a nós mesmos, mas um vazio, às vezes doloroso, que Deus vem preencher. Não posso me tornar um santo sozinho, levando meu ego em direção a um ideal, ficando tenso no perfeccionismo. Mas se eu consentir no vazio ao dizer sim a todos os acontecimentos da minha vida, mesmo os mais infelizes, os mais intoleráveis, então haverá uma abertura em mim, uma lacuna. Se eu tentar preencher esse buraco com minhas compensações habituais, minhas pequenas ‘manchas’ da alma, não vou deixar tempo nem espaço para o Espírito vir ao meu encontro. Porque só o ouro da santidade de Deus pode transfigurar todas as falhas da minha vida.

Ele é um Deus que acolhe infinitamente?

Fiquei chocado ao redescobrir o mundo cristão há 35 anos, ao ver como algumas pessoas projetavam na face de Deus seus próprios problemas, o que não haviam resolvido por si mesmas, a forma como viveram a educação dada pelos pais : por que permitiu isso, por que tanto sofrimento, por que me privou de tanto? Se eu deixasse meu filho aprender a dirigir e ele se matasse no carro alguns anos depois, não ‘permiti’ que ele se matasse, apenas ‘deixei’ que ele fosse livre!

O Deus que conheci não é um Deus que acusa e pune. Ele é um Deus como Mons. Bienvenu, o bispo de Os miseráveis, de quem Jean Valjean acaba de roubar os talheres e que, longe de censurá-lo, oferece-lhe dois castiçais : um Deus que sempre dá mais, renovando sua confiança constantemente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/cp1/2021/02/23/quaresma-a-grande-limpeza-da-nossa-vida-interior/

domingo, 21 de fevereiro de 2021

O perigo de se flertar com o mal

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Se pensarmos bem, o conceito de tolerância é um conceito extremamente vago e geralmente utilizado com um viés ideológico em demasia problemático. Se observarmos, por exemplo, o discurso de Martin Luther King, (quem quiser pode baixar o discurso e ler online) em hora nenhuma ele menciona que deveria haver tolerância quanto ao racismo. Em hora nenhuma ele propõe um ‘diálogo’ para resolver os problemas, pois ele sabia que em determinadas situações o diálogo não é mais possível. Ele sabia que o discurso da ‘tolerância’ conduz não, raras vezes, exatamente ao oposto do que ele se propõe. É por isso que precisamos sempre deixar claro a nossa posição, é preciso ser firme contra os discursos de ódio, contra os discursos que ferem a dignidade do sujeito, quer ele seja um discurso religioso, moral, institucional, etc. Não podemos jamais permitir que esses discursos encontrem eco entre nós. Para isso não há diálogo, pois a mínima abertura, nesse caso, pode abrir as portas para o que há de pior em nós.

É exatamente neste sentido que qualquer discurso de ódio que vem seguido da fala ‘foi brincadeira’, ou ‘não quis dizer isso’ deve ser imediatamente interditado. Não deve haver espaço entre nós para que tais discursos de ódio sejam minimizados, pois sob a fala do ‘humor’ e da ‘brincadeira’ se revela uma face cruel do sujeito.

É sabido de todos nós que ninguém nasce odiando ninguém, ninguém nasce com preconceito com ninguém, mas isso é sempre ensinado por uma cultura que tem determinados valores. Valores estes que nunca são ‘eternos’, mas sempre criados socialmente para cumprir demandas específicas no desenvolvimento de cada comunidade humana. É neste sentido que qualquer discurso em nome de ‘valores eternos’ não raramente costuma cair em discursos de ódio contra os semelhantes, ou contra aqueles que não compartilham de tais valores.

É interessante notar que o discurso de ódio também é construído socialmente e vai encontrando eco à medida que é propagado, de tal forma que entre nós, em pleno mundo contemporâneo, eles se tornaram a tônica até mesmo entre os cristãos que supostamente deveriam ser os primeiros a irem contra tais discursos.  Um movimento interessante que se percebe é que se começa apenas flertando com o ódio; isto é, começa-se com a pura negligência em relação às questões estruturais que envolvem a situação do outro, que acaba sendo responsabilizado sem levar em consideração toda a estrutura que o assola; obviamente que a estrutura que envolve o sujeito de forma alguma o determinará de maneira última, mas qualquer análise do comportamento do sujeito que não leve em conta o seu meio não passa de pura análise ideológica.

Em um segundo momento, quando o sujeito assusta, já está tomado pelo ódio de uma forma tal que surgem os discursos de ‘penas mais duras para bandidos’, ‘bandido bom é bandido morto’, ‘tem que matar esses judeus todos’. Assim como esse discurso não nasceu do nada, ele também não cresce do nada. De alguma forma esse discurso alimenta em grande medida um desejo do próprio sujeito, há uma espécie de identificação violenta nesse indivíduo que vê que bandido bom é bandido morto, há uma identificação violenta desse sujeito com o discurso de ódio que ele propaga. Se quisermos podemos até mesmo utilizar as palavras bíblicas de que ‘a boca fala do que tá cheio o coração’. Quando alguém corrobora um discurso violento, um discurso em que despreza o outro, que pede a morte do outro, um discurso em que torna a causa alheia uma causa não digna o que se percebe é que esse sujeito de fato pensa assim, no entanto ele não se vê pensando assim; ele pensa que de fato está corroborando uma causa justa. Como aquela criança que realmente acredita que há soluções simples para causas complexas. Na realidade, o que se pede é a morte do diferente, a morte daquele por quem se tem preconceito, por quem o sujeito julga ser menos humano que a si próprio de forma que pode ser tratado apenas como um animal.

Flertar com o mal é sempre perigoso, ainda mais porque (como já dizia o mito bíblico) ele nunca chega para o sujeito com sua face má, mas travestido de promessas de segurança. Essa é a mesma tentação do jardim do Éden. A tentação de que por meio de uma ação simples, por meio de uma ação infantilizada, por meio de uma escolha do mais fácil será possível ter um poder maior, uma visão melhor das coisas, um mundo melhor, etc. É por isso que se flerta com o mal. A promessa de segurança que o discurso violento traz se mostra para o sujeito uma solução última devido ao ‘caos do jardim’. ‘É certo que não morrereis’ é ao mesmo tempo a promessa e a crença desse sujeito propagador do discurso de ódio. Ele acredita que ele estará isento do ódio propagado socialmente, ele acredita infantilmente que os odiadores saberão diferenciar o ‘cidadão de bem’ do ‘bandido’; eles acreditam infantilmente que há uma linha divisória nítida entre eles, quando na realidade não há linha nenhuma que os separa. É neste sentido que nunca se deve aceitar os discursos de ódio sob pena de que a banalização do mal seja a tônica. Tal banalização do mal nunca deve ser a tônica de nenhuma sociedade, pois a partir do momento que ela se torna a tônica estamos à beira do colapso civilizacional.

Uma tática conhecida do nazismo foi transformar todos os judeus em bandidos, em animais, para que a partir da desumanização deles a população não visse que estavam atacando aos seus semelhantes, mas sim a uma espécie menor, a um ‘não-humano’, que por isso ‘merecia’ ser tratado de forma desumanizada. E na maioria das vezes não eram pessoas ‘ignorantes’, não eram pessoas ‘iletradas’, ‘alienadas’, etc. Vários oficiais da SS possuíam diplomas de curso superior, possuíam doutorados em suas áreas, mas mesmo assim aderiram ao discurso propagado de Hitler na desumanização dos judeus, dos gays, etc. O discurso de ódio é construído socialmente assim como qualquer outro discurso, e se aproveita dos momentos de agitação política para se propagar. Este é o mesmo movimento que culminou no holocausto, mas que alguns entre nós insistem em não enxergar a semelhança. É exatamente neste sentido que temos que admitir que não é uma questão de ignorância do sujeito, mas sim de uma identificação do sujeito com tal discurso, de forma que ele ‘de fato’ pensa assim. E isso talvez seja o que mais assusta, ainda mais quando vindo de pessoas que supostamente deveriam propagar o amor ensinado por Jesus, aquele bandido segundo Roma; aquele presidiário, etc. É por isso que nunca devemos aceitar e nem tolerar os discursos de ódio. Devemos sim lutar contra eles e impedir, no que depender de nós, que eles se propaguem.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1497661/2021/02/o-perigo-de-se-flertar-com-o-mal/

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

4 conselhos de um monge para vermos o invisível desta pandemia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Álvaro Real,

Jornalista


‘O mundo de hoje quer respostas fáceis e modelos ‘low-cost’. Muita gente se concentra nos ‘influencers’ e no que eles vendem. Mas há muito mais além disso. Há muitas pessoas além daquelas representadas nas séries, nos nossos programas favoritos, nas redes sociais. São, de fato, aqueles seres humanos dotados de uma sensibilidade especial : os ‘ouvintes’ do mundo.

Neste universo em constante movimento, atormentado pelas mil e uma atividades, além do ideal de produtividade e renda, há pessoas que, aparentemente, não fazem nada. São aqueles enviados por Deus para permanecer em silêncio, para não ter que desempenhar um papel, mas contemplar, ver, esperar.

Se realmente existisse um comitê de especialistas que nos permitisse sair melhor desta pandemia, certamente eles seriam os que vislumbram o que se vê no invisível, no essencial – aquilo que, nas palavras de Saint-Exupery é ‘invisível aos olhos’.

A pandemia através dos olhos de um monge

Grandes escritores e pensadores buscaram paz e serenidade no exemplo destes homens. Dostoiévski, Gógol e Tolstói, por exemplo, procuraram respostas ao drama do homem no famoso mosteiro de Optina Poustinia. Buscaram os conselhos dos famoso ‘starets’, ou seja, os anciãos dos mosteiros ortodoxos russos. Então, por que não podemos fazer o mesmo hoje? Por que não buscarmos respostas em uma abadia? Por que não vermos a pandemia através dos olhos de um monge?

Talvez assim poderíamos encontrar respostas para questionamentos como : Para onde vamos? Por que tanto sofrimento? O que é mais importante na vida? Sairemos melhores desta pandemia? O que realmente é essencial neste momento?

A fé em tempos de pandemia

Mauro-Giuseppe Lepori, abade geral da Ordem de Cister, reflete sobre essas perguntas no livro La fe en tiempos de Pandemia (‘A Fé em Tempos de Pandemia’). Seu texto é denso, profundo e enriquecedor. Na obra, ele oferece quatro grandes reflexões sobre este momento de pandemia :

1 – A importância do coração

O autor define o coração do homem como uma ‘espinha na carne do mundo’ e mostra que esse coração está na consciência. Sem o coração humano nada teria sentido.

O coronavírus e a economia têm suas próprias leis, seus próprios processos, que, geralmente, parecem enlouquecer, rebelar-se contra o homem. Mas nenhuma lei física, biológica ou econômica é maior que a liberdade de um só coração humano’.

2- A obra de Deus nos gestos humanos

Deus está em cada gesto. Isso é o que faz com que cada uma das pequenas ações que realizamos em casa tenham sentido. Alguém acha que perde tempo ao ficar em casa? Você acha que quando você fica em casa na quarentena está desperdiçando o tempo?

Mauro-Giuseppe Lepori explica :

Até o menor gesto, até a obra mais oculta, como a oração na cela de um ermitão ou o mais humilde serviço no âmbito familiar se converte em um acontecimento que introduz uma semente de novidade humanamente impossível no processo histórico, já que é uma novidade divina e eterna’.

3 – A vivência do presente

Durante o confinamento, percebemos que era ruim fazer nada. De repente, nos vimos sem capacidade de pensar no futuro. Tudo é presente. E, para muitos, isso é um pesadelo.

O relógio não corria e todas as nossas metas tinham desaparecido. Um ritmo que não era real. Só o presente e o agora passaram a existir. Lepori faz uma ligação disso com o capítulo 43 da Regra de São Bento :

É uma forma de viver, de concebermos a nós mesmos, ao tempo, às coisas, às relações, ao dever, ao prazer, a toda nossa relação com a realidade, que nos fazem humanamente intensos’.

4- Viver com a consciência de que Deus está presente

Lepori termina sua reflexão confessando que não tem uma solução para os problemas do homem. Mas nos oferece uma maneira de enfrentá-los : dar testemunho da presença de Deus a todo momento.

‘Não se trata de impor a fé, mas de propor a intensidade humana que a fé produz em quem a experimenta’.

Enfim, em seu texto, Lepori serve como vigia noturno do mar, um farol na escuridão e, embora não nos ofereça repostas concretas, apresenta uma nova maneira de enfrentar os desafios. Vale a pena recorrer à sabedoria de um «starters» e à reflexão dos monges para sairmos das confusões da história.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/02/19/4-conselhos-de-um-monge-para-vermos-o-invisivel-desta-pandemia/