Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Fabrício Veliq,
teólogo protestante
‘Se
pensarmos bem, o conceito de tolerância é um conceito extremamente vago e
geralmente utilizado com um viés ideológico em demasia problemático. Se
observarmos, por exemplo, o discurso de Martin Luther King, (quem quiser pode
baixar o discurso e ler online) em hora nenhuma ele menciona que deveria haver
tolerância quanto ao racismo. Em hora nenhuma ele propõe um ‘diálogo’
para resolver os problemas, pois ele sabia que em determinadas situações o
diálogo não é mais possível. Ele sabia que o discurso da ‘tolerância’
conduz não, raras vezes, exatamente ao oposto do que ele se propõe. É por isso
que precisamos sempre deixar claro a nossa posição, é preciso ser firme contra
os discursos de ódio, contra os discursos que ferem a dignidade do sujeito,
quer ele seja um discurso religioso, moral, institucional, etc. Não podemos
jamais permitir que esses discursos encontrem eco entre nós. Para isso não há
diálogo, pois a mínima abertura, nesse caso, pode abrir as portas para o que há
de pior em nós.
É
exatamente neste sentido que qualquer discurso de ódio que vem seguido da fala ‘foi
brincadeira’, ou ‘não quis dizer isso’ deve ser imediatamente
interditado. Não deve haver espaço entre nós para que tais discursos de ódio
sejam minimizados, pois sob a fala do ‘humor’ e da ‘brincadeira’
se revela uma face cruel do sujeito.
É
sabido de todos nós que ninguém nasce odiando ninguém, ninguém nasce com
preconceito com ninguém, mas isso é sempre ensinado por uma cultura que tem
determinados valores. Valores estes que nunca são ‘eternos’, mas sempre
criados socialmente para cumprir demandas específicas no desenvolvimento de
cada comunidade humana. É neste sentido que qualquer discurso em nome de ‘valores
eternos’ não raramente costuma cair em discursos de ódio contra os
semelhantes, ou contra aqueles que não compartilham de tais valores.
É
interessante notar que o discurso de ódio também é construído socialmente e vai
encontrando eco à medida que é propagado, de tal forma que entre nós, em pleno
mundo contemporâneo, eles se tornaram a tônica até mesmo entre os cristãos que
supostamente deveriam ser os primeiros a irem contra tais discursos. Um
movimento interessante que se percebe é que se começa apenas flertando com o
ódio; isto é, começa-se com a pura negligência em relação às questões
estruturais que envolvem a situação do outro, que acaba sendo responsabilizado
sem levar em consideração toda a estrutura que o assola; obviamente que a
estrutura que envolve o sujeito de forma alguma o determinará de maneira
última, mas qualquer análise do comportamento do sujeito que não leve em conta
o seu meio não passa de pura análise ideológica.
Em
um segundo momento, quando o sujeito assusta, já está tomado pelo ódio de uma
forma tal que surgem os discursos de ‘penas mais duras para bandidos’, ‘bandido
bom é bandido morto’, ‘tem que matar esses judeus todos’. Assim como
esse discurso não nasceu do nada, ele também não cresce do nada. De alguma
forma esse discurso alimenta em grande medida um desejo do próprio sujeito, há
uma espécie de identificação violenta nesse indivíduo que vê que bandido bom é
bandido morto, há uma identificação violenta desse sujeito com o discurso de
ódio que ele propaga. Se quisermos podemos até mesmo utilizar as palavras
bíblicas de que ‘a boca fala do que tá cheio o coração’. Quando alguém
corrobora um discurso violento, um discurso em que despreza o outro, que pede a
morte do outro, um discurso em que torna a causa alheia uma causa não digna o
que se percebe é que esse sujeito de fato pensa assim, no entanto ele não se vê
pensando assim; ele pensa que de fato está corroborando uma causa justa. Como
aquela criança que realmente acredita que há soluções simples para causas
complexas. Na realidade, o que se pede é a morte do
diferente, a morte daquele por quem se tem preconceito, por quem o sujeito
julga ser menos humano que a si próprio de forma que pode ser tratado apenas
como um animal.
Flertar
com o mal é sempre perigoso, ainda mais porque (como já dizia o mito bíblico)
ele nunca chega para o sujeito com sua face má, mas travestido de promessas de
segurança. Essa é a mesma tentação do jardim do Éden. A tentação de que por
meio de uma ação simples, por meio de uma ação infantilizada, por meio de uma
escolha do mais fácil será possível ter um poder maior, uma visão melhor das
coisas, um mundo melhor, etc. É por isso que se flerta com o mal. A promessa de
segurança que o discurso violento traz se mostra para o sujeito uma solução
última devido ao ‘caos do jardim’. ‘É certo que não morrereis’ é
ao mesmo tempo a promessa e a crença desse sujeito propagador do discurso de
ódio. Ele acredita que ele estará isento do ódio propagado socialmente, ele
acredita infantilmente que os odiadores saberão diferenciar o ‘cidadão de
bem’ do ‘bandido’; eles acreditam infantilmente que há uma linha
divisória nítida entre eles, quando na realidade não há linha nenhuma que os
separa. É neste sentido que nunca se deve aceitar os discursos de ódio sob pena
de que a banalização do mal seja a tônica. Tal banalização do mal nunca deve
ser a tônica de nenhuma sociedade, pois a partir do momento que ela se torna a
tônica estamos à beira do colapso civilizacional.
Uma
tática conhecida do nazismo foi transformar todos os judeus em bandidos, em
animais, para que a partir da desumanização deles a população não visse que
estavam atacando aos seus semelhantes, mas sim a uma espécie menor, a um ‘não-humano’,
que por isso ‘merecia’ ser tratado de forma desumanizada. E na maioria
das vezes não eram pessoas ‘ignorantes’, não eram pessoas ‘iletradas’,
‘alienadas’, etc. Vários oficiais da SS possuíam diplomas de curso superior,
possuíam doutorados em suas áreas, mas mesmo assim aderiram ao discurso
propagado de Hitler na desumanização dos judeus, dos gays, etc. O discurso de
ódio é construído socialmente assim como qualquer outro discurso, e se
aproveita dos momentos de agitação política para se propagar. Este é o mesmo
movimento que culminou no holocausto, mas que alguns entre nós insistem em não
enxergar a semelhança. É exatamente neste sentido que temos que admitir que não
é uma questão de ignorância do sujeito, mas sim de uma identificação do sujeito
com tal discurso, de forma que ele ‘de fato’ pensa assim. E isso talvez
seja o que mais assusta, ainda mais quando vindo de pessoas que supostamente
deveriam propagar o amor ensinado por Jesus, aquele bandido segundo Roma; aquele
presidiário, etc. É por isso que nunca devemos aceitar e nem
tolerar os discursos de ódio. Devemos sim lutar contra eles e impedir, no que
depender de nós, que eles se propaguem.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1497661/2021/02/o-perigo-de-se-flertar-com-o-mal/
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