Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
'Manuscritos do Mar Morto' são os mais antigos registros bíblicos
*Artigo de Marcelo Rede,
professor
‘A Bíblia
hebraica pode ser considerada um documento para escrever a história do antigo
Israel ou para analisar outros fenômenos históricos, como a formação do
monoteísmo ou a figura divina de Yahweh?
A
indagação é parte de uma questão maior, sobre a presença da Bíblia no ambiente
acadêmico e universitário. Do ponto de vista institucional e curricular, o
panorama é diversificado.
O
debate já é antigo nos centros universitários norte-americanos ou europeus.
Entre nós, é ainda incipiente. No Brasil, a Bíblia penetrou na academia pela
via dos estudos literários, que privilegiaram a análise de seus diversos
gêneros e a interpretação linguística. Na arqueologia, a situação é ambígua :
embora a arqueologia bíblica seja popular nos meios de comunicação, ela jamais
se estabeleceu como disciplina por aqui, antes de ter praticamente desaparecido
das universidades em todo o mundo para dar lugar a uma arqueologia do
Oriente-Próximo ou Siro-Palestina. Naturalmente, nos cursos de teologia (quase
totalmente de orientação cristã), a Bíblia hebraica, juntamente com o Novo
Testamento, está no centro da reflexão, sob a forma da história da religião ou
da exegese textual e teológica.
Nos
departamentos de história, a presença da Bíblia é rarefeita, pois a história de
Israel é menos praticada do que as histórias do Egito ou da Mesopotâmia, e
prepondera o interesse pela Grécia e por Roma. Paradoxalmente, não há quase
nenhum recorte em nossas disciplinas que possa desprezar a importância da
Bíblia, do Brasil colonial à Revolução Francesa, da Idade Média à Independência
norte-americana.
O
problema, portanto, é saber se é possível integrar a Bíblia hebraica na
operação historiográfica e como fazê-lo.
Para
o historiador, isso significa duas possibilidades inseparáveis. A primeira : a
Bíblia como sendo, ela mesma, um fenômeno histórico. A segunda : sua consideração,
ou não, como fonte documental.
A
própria questão poderia ser considerada um tanto descabida, pois a
historiografia atual se constituiu a partir da profunda remodelação da noção de
documento : quando surgiu como saber moderno no século XIX, a história privilegiou
os documentos escritos, particularmente, os de natureza oficial. Embora os
textos ainda predominem, a história abriu-se a novas fontes (imagens, objetos
materiais, relato oral) e integrou todo tipo de documento não oficial : cartas
privadas, textos literários, jornais, panfletos de propaganda etc. Se ‘tudo
é história’, pode-se dizer também que ‘tudo é documento’. Mesmo um
falso documento pode servir como fonte para se estudar algo, desde que o
historiador tenha ciência de sua falsidade (uma obra de arte forjada; um
decreto imperial não autêntico ou uma fake news). Diante desse quadro, o que
poderia justificar a exclusão da Bíblia do campo de documentos históricos?
Ocorre
que a Bíblia tem uma trajetória de mais de dois mil anos no pensamento ocidental
e seus vários usos e apropriações levantaram questionamentos legítimos que
precisam ser considerados.
O
ponto mais evidente é a sua concepção como ‘Escritura Sagrada’. Muitos
documentos com que trabalham os historiadores têm, igualmente, uma natureza sagrada
atribuída por suas sociedades : o Livro dos Mortos, no antigo Egito; as preces
aos deuses sumérios e tantos outros. Há, porém, uma grande diferença : enquanto
estes pertenceram a religiões hoje mortas, a Bíblia continua sendo o livro
sagrado do judaísmo, dos vários cristianismos e, indiretamente, do islamismo. A
sacralização dos textos bíblicos criou obstáculos ao seu estudo fora do domínio
teológico. Foi somente às vésperas do Iluminismo que as ‘Sagradas Escrituras’
passaram a ser objeto de reflexão crítica.
Na
historiografia, a situação é particular e até curiosa : os especialistas que
buscaram escrever uma história moderna do antigo Israel integraram as
narrativas bíblicas como uma espécie de enredo histórico preestabelecido, como
o guia de um passado já escrito. Caberia ao historiador traduzi-lo em um
linguajar acadêmico aceitável. Em outros termos, a Bíblia não foi inserida na
operação historiográfica como uma verdadeira fonte a ser submetida ao crivo dos
instrumentos de análise aplicados aos demais documentos, o que, justamente,
conferia à historiografia moderna sua mais importante característica : a de ser
um saber inferencial sobre as sociedades, fundado na crítica das fontes.
A
existência de um documento escrito complexo, extenso e praticamente único não é
uma exclusividade. O mesmo ocorre, por exemplo, com a obra de Tito Lívio para
vários períodos da história romana ou com a Ilíada e a Odisseia para
o chamado período homérico. No entanto, em nenhum desses casos o texto impôs
uma tutela narrativa ao historiador, sobretudo se considerarmos as novas
perspectivas introduzidas por cada uma das ‘escolas’ historiográficas
que se sucederam até hoje.
A
história do antigo Israel, ao contrário, persistiu sendo praticamente uma
paráfrase das narrativas bíblicas. O mesmo ocorreu na arqueologia bíblica
tradicional, concebida como uma prática de escavação e de interpretação da
cultura material que visava a corroborar a narrativa fornecida pelo texto
bíblico. Os artefatos, as estruturas etc. tampouco foram integrados adequadamente
como fonte documental para a produção de um conhecimento sobre a sociedade
antiga.
Há,
portanto, razões suficientes para que a legitimidade da Bíblia como documento
histórico tenha sido questionada e para que um ruidoso debate tenha se
estabelecido entre os chamados ‘maximalistas’ (que procuravam conservar
ao máximo a narrativa bíblica) e os ‘minimalistas’ (que buscavam
minimizar a validade documental da Bíblia).
Entre
esses extremos, porém, uma solução intermediária parece ser mais sensata e
produtiva. Não resta dúvida de que os textos bíblicos impõem dificuldades
imensas ao historiador. O conjunto é extremamente diversificado e mesmo
incoerente; sua unificação é fruto de um processo longo e mal conhecido; sua
redação e, sobretudo, sua forma canônica final são tardias, em geral separadas
por séculos dos contextos a que se referem. Para complicar ainda mais,
materialmente falando, o texto que conhecemos hoje deriva de manuscritos
medievais que datam de por volta do ano 1000 (depois de Cristo!). Entre esses
códices medievais e os manuscritos ‘originais’ (do qual não temos sequer
um exemplar) há um vácuo quase total, preenchido de modo apenas parcial pelos
Manuscritos do Mar Morto e por pouquíssimos outros fragmentos esparsos.
São
problemas sérios. Todavia, a situação não é muito diferente para grande parte
do que nos sobreviveu da literatura antiga e não pode, por si só, ser motivo
para descartar a Bíblia como documento.
No
entanto, é preciso reconhecer que essa intricada condição documental da Bíblia
só pode ser enfrentada se seu conteúdo for submetido às mesmas ferramentas
críticas utilizadas para qualquer documento. Na feliz expressão de Mario
Liverani, historiador italiano, é preciso fazer da história do antigo Israel
uma ‘história normal’. Acrescentemos : é preciso tratar a Bíblia como um
‘documento normal’. Nem mais, nem menos.
Inserir
a Bíblia na história implica, portanto, inserir a história na Bíblia,
reconhecendo nela um fenômeno cultural, fabricado por sociedades humanas em uma
série de contextos sociais concretos.
É
nesse sentido que os estudos sobre a memória cultural e sobre o trauma coletivo
enquanto fenômeno histórico e literário foram fundamentais para se entender
melhor boa parte das narrativas bíblicas. Muitas delas só são compreensíveis historicamente
como resultado do trauma representado pelo cativeiro babilônico. A conquista do
Reino de Judá pelos babilônios, em 587 a.C., solapou pilares fundamentais da
sociedade judaíta : a perda da terra e a migração forçada de parte da
população; o fim da dinastia davídica; a destruição do templo de Jerusalém. O
aparecimento de uma literatura de crise é parte das respostas culturais a esse
trauma coletivo. Seja sob o domínio babilônico, seja depois, sob o domínio
persa (Ciro, o Grande, conquistou a Babilônia em 539 a.C.), os judaítas
exilados reformularam a memória de seu passado, fundindo antigas tradições e
elementos inéditos. São mitologias da criação e do dilúvio, sagas de
ancestrais, textos proféticos, literatura sapiencial e mesmo erótica. E, sobretudo,
narrativas acerca de um passado remodelado pelo que restou dos escombros da
tragédia de Judá. Sob esta ótica sulista, o reino do norte, Israel, foi pintado
em cores francamente negativas. Ao mesmo tempo, ‘Israel’ ganhou um novo
sentido : não mais uma entidade política, um reino governado por um soberano,
mas um referencial identitário do qual os judaítas do exílio se reivindicaram
como herdeiros legítimos.
A
invenção de um passado que se apresenta como propriamente histórico é a matriz
da memória cultural bíblica, que cria e mantém a coesão e a identidade da
comunidade : a fuga espetacular do Egito, a conquista heroica de Canaã, uma
monarquia unificada e esplendorosa sob David e Salomão. Ao mesmo tempo, essa
construção memorial comporta reflexões sobre o sofrimento presente e sinaliza
possibilidades e limites de projetos para um futuro melhor, tanto para os
retornados quanto para os que restarão na diáspora, primeiro à sombra do
Império Persa, depois em um universo profundamente marcado pela cultura grega e
pelo domínio das monarquias helenísticas.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://jornal.usp.br/artigos/a-biblia-pode-ser-considerada-um-documento-historico/
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