Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
O afresco do pintor italiano Giusto de 'Menabuoi (1320-1390) de 1375 mostra como Judas trai o Filho de Deus através de um beijo.
(Hervé Champollion / akg-images)
*Artigo
de Pádraig Ó Tuama,
teólogo, professor e poeta
‘Os
conflitos revelam o que é importante para nós. Às vezes me encontro em conflito
porque descobri algo que não sabia que me importava muito. Alguém muda os
móveis no escritório e percebo por que gostava mais da disposição anterior;
alguém posta uma mensagem de mídia social que me enfurece por algum motivo até
então não considerado; alguém fala alguma coisa do meu país, minha religião,
minha política, minha língua, minhas prioridades e muitas outras coisas que
supõem centenas de anos de ressentimento que carrego em mim.
O
conflito é uma informação poderosa; e essas informações poderosas podem ser
difíceis de reconhecer, difíceis de processar, difíceis de aceitar, de aprender
ou de agir. O conflito pode dizer muito sobre nós mesmos, e pode nos dizer
muito sobre Jesus. Ele nos mostra por que não devemos temer.
Ouvir
atentamente um grupo de discussão significa obter um vislumbre peculiar dos
desejos e ansiedades desse grupo. Você também aprende suas táticas, alianças,
ameaças, o que estão dispostos a fazer para vencer e o que lhes acontece quando
sentem que perderam. Você também percebe o medo e a habilidade. Uma pessoa pode
demonstrar a capacidade de contornar ou reformular um argumento, ou suas
alianças, ou sua falta de vontade de se envolver, inclusive seus sentimentos em
relação a compromissos.
O
que significa prestar atenção espiritual e moral aos conflitos de nossas vidas?
Muita energia religiosa parece ser gasta imaginando vidas religiosas livres de
conflito : Adão e Eva no paraíso; Jesus manso em uma manjedoura; os santos mais
focados em sua pureza do que em suas políticas. Você entende a foto.
Mas
isso trai a literatura bíblica e a condição humana. O objetivo de nossas vidas
não é contornar conflitos e sair ileso, mas nos envolvermos com eles de uma
maneira que teste, aprimore e evolua nossos impulsos morais em direção a uma
ética de compromisso sério e criativo.
Medo do Medo
Durante
anos, tive medo de conflitos. Não só estava com medo de conflitos, mas também
com medo do medo — camadas e camadas me impediam de encarar o convite e as
informações que o conflito apresentava. Então duas coisas aconteceram. Minha
saúde diminuiu e, acidentalmente, aprendi a orar.
O
declínio da minha saúde era previsível. Estava trabalhando no ministério
religioso, gay, fechado, assustado e ansioso. Não tinha os recursos para
expressar as informações da minha vida. Então meu corpo sofreu. Peguei um vírus
grave, que afetou meu sistema imunológico, tornando-o hiperativo, e o vírus não
foi embora. Algo estava chamando minha atenção.
Aprendi
a orar. Acidentalmente. A história real é que eu decidi desistir de minha fé.
E, num movimento irônico que estava totalmente perdido para mim, decidi ir a um
mosteiro — comunidade de Taizé — para desistir de Deus. Para formalizar minha
desistência, decidi voltar à cena da crucificação. E decidi imaginar que eu era
uma das pessoas ao longo do caminho da cruz e que tive a oportunidade de dizer
adeus ao Deus que não amava mais. Mas naquela oração, Jesus disse algo para
mim, e eu lhe disse algo. E estava no meio de um tipo de oração que nunca havia
imaginado.
— Decidi
que ou você me odeia, ou é hora de parar de me importar – disse.—
Você se importa com o quê? – Perguntou Jesus.— Eu não sei – respondi.— Nem
eu – Jesus disse.— Eu não sei o que fazer – falei.— Eu
sei – ele disse, olhando para mim.
Senti
que faltava uma coisa nos anos em que me aproximei de Jesus : respeito.
Respeito dele para mim e de mim para ele.
Então,
bem na tentativa de me divorciar de Deus, encontrei-me conversando com Jesus
com inesperado respeito recíproco. O que ele pensava ditava tudo o que devia
pensar. Mas estava curioso. Queria saber o que aborreceu Jesus, o que chateou
ele, o que comoveu. Comecei a ler os evangelhos e a escrever cartas para o
Jesus que não conhecia.
Cresci
com muitos conflitos à minha volta : o conflito do legado da colonização da
Irlanda, o conflito de ser gay, o conflito de me odiar, o conflito de
violências que conhecia. Por isso, prestei muita atenção aos conflitos nos
evangelhos : a mulher empurrando a multidão, confrontando essas pessoas com
suas leis limitantes; os argumentos públicos sobre adeptos religiosos; as
diferentes visões sobre como entender o papel dos estrangeiros no território
ocupado; perguntas sobre a forma do casamento; argumentos sobre o pecado e os
pecadores. Em quem devo tocar? Quem devo permitir que me toque?
Em
cada uma dessas interações, os personagens estavam comunicando informações
íntimas sobre suas vidas : as coisas que amam sobre si mesmas; as coisas que se
recusam a considerar; os preconceitos sobre suas vidas; as regras que dominam,
mas pelas quais nunca gostariam de ser conduzidas; inclusive as leis que
quebram.
Em
uma história, Jesus chega a uma casa. Não nos dizem de quem é a casa, mas é
possível que seja dele em Cafarnaum. Jesus tem seus discípulos consigo; e
quando chegam lá, pergunta sobre o que estavam discutindo ao longo do caminho.
A
questão em si é intrigante. A palavra grega para perguntar é dialogizomai,
da qual obtemos a palavra diálogo. Se Jesus dissesse : ‘Que dialogais um com
o outro pelo caminho?’, A cena inteira teria um sabor diferente. No
entanto, os tradutores são unânimes em afirmar que a melhor tradução para o
português é discussão, não dialogar.
De
qualquer forma, você pode ler o resto da história. Os discípulos estão calados
porque têm vergonha; eles têm discutido sobre quem é o melhor.
É
fácil pensar que conhecemos a substância desse conflito, mas vale a pena fazer
uma pausa por um momento. O que significaria ser o maior? Aquele que passou
mais tempo com Jesus? Quem foi mais elogiado? Aquele que era o mais forte?
Aquele com o maior insight político? Aquele que mais se parecia com ele? Aquele
que era o melhor em discutir? Estes são – devemos
assumir – homens discutindo. Eles estão discutindo sobre
tamanho, a força, o corpo? Em qualquer grupo, sempre há tensões sobre o maior,
e cada grupo tem seu próprio critério para definir quem o seja. A comparação é
como uma faísca para a mecha do conflito. Uma vez iniciado o jogo de
comparação, é improvável encerrar até que acabe de alguma forma – levando-nos
à agressão, à exclusão, ao julgamento e à redução; nesse jogo de determinar de
uma vez por todas quem é o perdedor.
Porque
é isso que está acontecendo em uma discussão sobre o maior. Por trás de tudo,
também há uma discussão sobre quem é o menor.
Os
evangelhos às vezes prestam muita atenção à linguagem corporal. Nesta cena,
vemos Jesus sentado. O que é isso? Um convite para um exame atento de seus
vícios competitivos? Possivelmente. Provavelmente, é uma indicação da postura
de idosos reverenciados em muitas culturas. Os discípulos teriam sentado abaixo
dele com toda a probabilidade. Então, a linguagem corporal deles mudou; são
chamados de uma multidão de homens zombadores para uma postura de humildade e
hierarquia (às vezes a hierarquia – quando é possível
confiar – tem suas funções). Então, a coisa mais surpreendente
acontece : Jesus apresenta uma criança.
A
propósito, essa é uma das partes mais ricas da história. De onde veio a
criança? Alguém dirá – é claro que sim – que
essa criança é de Jesus. Ou talvez fosse um filho de um vizinho, ou um sobrinho
ou sobrinha, ou um filho da casa. Se esta é a casa de Jesus, isso indica que a
casa de Jesus era uma casa pela qual as crianças passavam, prontas para serem
incluídas em uma parábola explicativa.
De
qualquer forma, uma criança é apresentada. E a criança é abraçada. A criança é
a personificação física do exato oposto da grandeza. Qualquer que seja a medida
mundana de grandeza, essa criança não é ótima. A criança é pequena. A criança é
impotente. A criança pode não ser fofa. A criança é uma criança, longe dos
jogos de poder dos homens. Ao ouvir uma discussão sobre a grandeza conduzida
pelos homens, Jesus os faz sentar para aprender e depois os enfrenta com um
outro independente, que encarna o oposto do que os consumia. Essa criança
perturba a economia de eminência que tem sido sua obsessão. Quando ouço as
pessoas dizerem que a teologia deve ser objetiva, não subjetiva, penso em como
Jesus interrompeu a objetividade. Não podemos comentar casos únicos, dizem
empresas e governos. Contudo, Jesus parece dizer que só comenta casos
individuais, caso contrário, não haveria sentido. Ele fala sobre hospitalidade,
vincula-a à virtude, liga esta à noção de valor e valor à grandeza.
Reenquadrando a imagem
Exercitando-me
em resolução de conflitos, ouvi a frase ‘reenquadrar’ repetidamente.
Vale a pena pensar nessa palavra de maneira tangível. Quando se pega uma obra
de arte e a reenquadramos, isso pode ajudar o espectador a ver o que tem ali.
Talvez a moldura capte uma cor até então escondida, oculta no centro do
trabalho. Talvez o quadro seja grande o suficiente para mostrar mais da foto.
Uma foto recente de um partido político na Irlanda mostrou seus representantes
sentados com uma pessoa de renome. Alguém no Twitter – sempre
o Twitter – mostrou o original. Mostrou representantes de duas
partes opostas sentadas com uma pessoa de renome. A foto foi reenquadrada e
cortada. Liberte-me, o conflito chama; mostre as partes inconvenientes.
Conflito
é informação, e muitas vezes não desejamos que o conflito revele a informação.
Assim, contamos a história que torna nosso colega, nosso chefe, nosso bispo ou
os leigos irrelevantes, até ridículos. Caricaturamos os indivíduos para que o
ouvinte da história do conflito saiba imediatamente o que um bom ouvinte deve
saber : quem é a pessoa boa e quem é a pessoa má.
Não
me interpretem mal – é divertido. Está no centro de todas as
boas histórias sobre ‘meu chefe é um idiota’. Mas as histórias nem
sempre dizem a verdade; nós sabemos isso. Os Evangelhos sim. Lembra de
Judas?
- ‘Simão, o cananeu, e Judas Iscariotes,
aquele que o traiu’ (Mt 10, 4);
- e ‘Judas Iscariotes, aquele que o entregou’
(Mc 3,19);
- e ‘Judas, irmão de Tiago, e Judas
Iscariotes, que foi o traidor’ (Lc 6,16);
- ‘E isto dizia ele de Judas Iscariotes, filho
de Simão; porque este o havia de entregar, sendo um dos doze.’ (Jo 6,71).
Existem
outros Judas nos Evangelhos – um deles é parente de Jesus (Mc
6,3) – e há um seguidor chamado ‘Judas (não o Iscariotes)’
no Evangelho de João (14,22). Estamos preparados para odiar essa pessoa.
Iscariotes se tornou um palavrão em algumas línguas, e certamente não é usado
como elogio em muitas.
Desde
a introdução de Judas, somos levados a um ponto de vista sobre ele. O que Judas
diria? O que faria? Conhecemos parte da história, mas pouco nos lembramos dela.
Parece-me que Judas era um homem que procurava escalar conflitos. Procurou
provocar um aumento do conflito com os ocupantes romanos. Ele não estava
sozinho. Os discípulos no caminho de Emaús contaram a um estranho a história de
seu lamento, decepção e choque que Jesus havia fracassado em seu projeto de
conflito pela liberdade : ‘Mas esperávamos que ele fosse o único a redimir
Israel’ (Lc 24,21).
Judas
costuma ser considerado um personagem faminto por dinheiro, mas ele não era
faminto por dinheiro. João nos diz que Judas roubou da bolsa (12,6), mas não
tenho certeza se acredito nisso. Que evidência há no texto de que os autores
são narradores confiáveis das motivações de Judas quando o apresentaram sem
considerar seu ponto de vista na história? Mateus é quem desfaz tudo. Mateus
está preocupado com a justiça, particularmente a justiça narrativa. Ele
introduz a genealogia de Jesus, nomeando 42 homens e cinco mulheres, e
ele – sozinho entre os evangelistas – termina
a história de Judas assim : ‘Quando Judas, que o havia traído, viu que Jesus
fora condenado, foi tomado de remorso e devolveu aos chefes dos sacerdotes e
aos líderes religiosos as trinta moedas de prata’ (Mt 27,3).
A
palavra arrepender só foi usada algumas vezes em outras partes do Evangelho de
Mateus. Duas vezes Jesus pede que as pessoas se arrependam por causa da
proximidade do reino (3,2 e 4,17) e duas vezes Jesus usa a palavra ao falar de
cidades cujas políticas precisam mudar (11,21 e 12,41).
A
visão de Mateus parece diferente. A palavra arrepender-se é rica : a palavra
usada no grego é metanoia, o que significa mudar de ideia ou mudar
de direção. Judas não se importava com o dinheiro – ele trouxe
as 30 moedas de prata de volta. Judas não queria que Jesus fosse
condenado – isso o levou a por fim a si mesmo. Às vezes, o
conflito pode ser intensificado para nos distrair de uma história mais
profunda, uma história mais verdadeira, uma história mais inconveniente.
O
conflito é uma economia peculiar. Algumas pessoas usarão conflitos contra um
grupo para escalar mais conflitos com outros. No evangelho de João, uma mulher
está sendo levada para ser apedrejada porque foi pega ‘no próprio ato de
cometer adultério’ (8,4). Que notavelmente conveniente. Essa coisa toda
parece tão surpreendentemente conveniente que acho que é uma configuração. De
qualquer forma, alguns homens estão prontos para encenar o conflito final – assassinato – contra
essa mulher, a fim de escalar um conflito entre eles e Jesus.
Aqui
é onde a linguagem corporal entra novamente : a mulher conhecia a linguagem
corporal das pedras. Eles estavam quase contra ela. Jesus também conhece a
linguagem corporal. Ele se agacha. Diante de uma multidão de homens sendo
reduzida a um sentimento primordial de pertencimento, ele vê uma multidão se
exaltando. Jesus fez um gesto. Ele se agachou. O que estava escrevendo?
Diante
do conflito, Jesus se torna menor e faz algo que ninguém mais pode ver. O
conflito é a busca da curiosidade. Quando a curiosidade entra em uma multidão
de pessoas enfurecidas, algo pode mudar. Jesus poderia estar rabiscando,
poderia estar escrevendo pecados, poderia estar escrevendo uma pergunta interessante – onde
está esse suposto homem? –- ou poderia estar apenas demonstrando
que o drama do conflito desses homens não era o drama que eles pensavam. Ele
fez uma pausa. Chamou a atenção, levantou-se, falou e se agachou novamente.
Os
homens vão embora; Jesus fica e fala com a mulher. Mas ele a deixa em
conflito – afinal, ela agora sabe do que esses homens são
capazes de voltar. E certamente alguns desses homens são conhecidos dela ou
parentes. E Jesus diz para ela não pecar mais. Qual foi o pecado dela?
Apaixonar-se por um homem que mentiu sobre ser casado? Ser considerada não
casada e cortejar um homem? Ser enganado em sexo? Ser um cenário para as
obsessões teológicas dos homens projetadas em seu próprio corpo? Eu não sei.
Mas eu sei que gostaria de questionar.
A
linguagem está no coração do que me move. Para mim, poesia, conflito e religião
circulam em torno da mesma coisa : as palavras que dizemos, de corpo e língua.
Jesus também gostava de palavras. Ele elogiou a mulher pelas palavras dela.
Jesus estava cansado, queria fugir, mas alguém não o deixou. Não dê comida para
cachorros, ele diz. E então ele mesmo aprende. Ah, mas senhor, diz essa mulher
estrangeira, até os cachorrinhos comem migalhas. Ela pega o insulto de
cachorrinhos e vira o diálogo. Ensinando como dar do que transborda do seu
coração. Ele para, ouve, muda de ideia. Ele a elogia por suas palavras. E ainda
nos lembramos dela.
Alguns
conflitos precisam se intensificar para que os detentores do poder percebam que
são eles que causam o conflito do qual estão reclamando. Alguns conflitos
precisam aumentar para que as pessoas possam colaborar. Alguns conflitos
precisam diminuir. Alguns de nós precisamos ser tirados do conflito. Alguns de
nós precisamos ser jogados no coração dos conflitos que estamos negando.
Estamos
cercados por tantos conflitos. Vale a pena perturbar as águas do conflito com
um andarilho aquático encarnado : aquele que acalma tempestades, aquele que
revela conflitos onde pensávamos que não existiam, aquele que não era possuído
pelo medo do medo. Nossos conflitos revelam algo curiosamente íntimo sobre nós.
Essas tempestades nos dizem coisas que não queremos que digam. Passemos sobre
estas tempestades como Jesus de Nazaré. Oremos.’
Fonte
: