Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Felipe Magalhães Francisco,
teólogo
‘Na piedade católica, muito se repete um mantra-oração : Jesus,
manso e humilde de coração, fazei de nosso coração semelhante ao vosso. Tal
prática de piedade, tão comum em rezas do terço e momentos de adoração ao
Santíssimo Sacramento, tem inspiração bíblica. A humildade de Jesus é um
convite a ser assumido por cada discípulo e discípula : ‘[...] aprendei de mim, pois sou manso e humilde de
coração’ (Mt 11,29). A palavra humildade ganhou um uso recorrente, em nossa
semântica cotidiana, de simplicidade. Fala-se que os pobres são humildes; que
os sem estudo são humildes. Esse uso tem sua razão de ser, quando ampliamos o
alcance interpretativo de tal palavra.
Humildade e humilhação são duas palavras muito próximas,
etimologicamente. Ambas estão intimamente ligadas a húmus, terra,
chão. Os empobrecidos e empobrecidas, então, estão nessa situação de
humildade-humilhação : rebaixados em sua dignidade, estão ao chão. Para além
desse lugar usual possível, para a palavra humildade, interessa-nos, aqui,
refletir a partir de outro lugar, que também se radica no contexto etimológico
da palavra : húmus. Curiosamente, também a palavra homem, do latim homo,
pertence à mesma família da palavra húmus. Para um cristão, a associação com a
narrativa bíblica do Gênesis é inevitável. Do barro, do chão, Deus modela Adão,
que, literalmente, significa o terroso.
Tornar-se humildade, nesse contexto, corresponde a assumir uma
virtude. Esse é o ponto de partida, aliás, da espiritualidade quaresmal. Na
quarta-feira de cinzas, celebração em que é dada a largada para o caminho de
conversão em preparação à Páscoa, católicos e católicas são marcados, em suas
frontes, com cinza, enquanto são exortados : ‘Lembra-te que és pó, e que ao pó hás de voltar’, em clara
referência bíblica. Bonita a dimensão simbólica de tudo isso : ao assumir o
caminho de converter-se, isto é, de voltar para Deus numa mudança de
mentalidade, é preciso perceber qual lugar ocupamos na vida, diante de nós
mesmos, dos outros e de Deus. Ser humilde significa, então, não dar para si uma
importância maior que a que realmente se tem. Não se trata de modéstia,
definitivamente, mas de reconhecer a si mesmo, num processo profundamente
espiritual, de dar-se o valor que realmente se tem.
Importante a associação com a palavra húmus : no pó, a
identificação de nossa pertença à criação. Da terra, essa mãe-sustento, nasce
nossa participação em igualdade de importância com todo o mundo criado. Nem
mais nem menos importantes. Recordar de nossa pertença ao chão, ao pó, isto é,
ser humilde, é assumir nosso lugar no mundo, em relação a ele e a tudo o que
nele contém. Viver a humildade corresponde, então, a viver não se colocando em
posição superior a nada nem a ninguém, mas no mesmo nível. É preciso que não
nos esqueçamos do que significa o pecado : arrancar nosso rosto humano para
buscar assumir um lugar que não nos pertence, que é o de querer ser como
deuses. Em outras palavras : o pecado é a nossa desumanização, o nosso esquecimento-negação
de que somos terra.
Jesus, que para os cristãos e cristãs é o paradigma da
humanização, ensina-nos o que é verdadeiramente assumir um lugar existencial
que transparece humildade. Não se colocou superior a ninguém, mas, ao
contrário, rebaixou-se ao ponto de poder elevar quem também estava ao chão. É o
que faz na ocasião em que a mulher iria ser apedrejada, quando acusada de
adultério : Jesus vai ao chão e, lá, no lugar dos humilhados, põe-se a escrever
na terra. Os acusadores, mesmo confrontados com os próprios pecados, são incapazes
de se curvarem numa postura humilde (cf. Jo 8,1-11). Essa narrativa exemplifica
toda uma postura de vida, assumida por Jesus.
Ela manifesta, aliás, toda a teologia da kénosis.
Jesus não se apega à sua condição divina, mas se esvazia para
assumir a condição de servo. Humilhou-se ao ponto de assumir a
morte de cruz, para prestar um serviço à humanidade (cf. Fl 2,5-8). Assumindo a
vida humana, o Filho de Deus participa de nossa condição terrosa. E é de lá, da
terra, do chão, que nos eleva à condição de filhos e filhas de Deus; que nos
possibilita sermos elevados à participação na santidade divina, por pura graça.
Quando a santidade divina visita o mais íntimo e profundo de nós,
alcançando-nos desde a terra, na encarnação do Filho de Deus, somos chamados a
assumir nossa dignidade, reconhecendo o que verdadeiramente somos e o que, por
graça, somos chamados e levados a ser : plenamente humanos.
Diante de tudo isso, deveria causar estranheza o fato de que
cristãos e cristãs cedam ao orgulho. Há uma terrível e real tentação, dentro e
fora das igrejas, de que cristãos e cristãs se comportem como se fossem
melhores que outras pessoas, inclusive melhor que aqueles e aquelas com as
quais lida na vida comunitária. Cristãos e cristãs devem ser melhores para os
outros e, jamais, pretenderem-se melhor que os outros. A vaidade cristã só nos
afasta do Reino, porque desfigura o lugar propriamente cristão que é o do
serviço. ‘Entre vocês não deve ser assim :
ao contrário, aquele dentre vós quiser ser grande, seja o servidor [...]’
(Mc 10,43) é um imperativo colocado por Jesus a cada discípulo e discípula :
aos passos do Mestre, estamos no mundo para servir e não para ocupar lugares de
importância que sequer temos direito.
Assumir a humildade tal como a do coração de Jesus é tarefa
espiritual necessária, se queremos nos assumir como cristãos e cristãs,
discípulos e discípulas de Jesus. A humildade é virtude necessária e
irrenunciável àqueles e àquelas que pretendem ser fiéis à missão dada por
Jesus, de anunciadores e promotores do Reino de Deus. Descer ao chão, para lá
tocar as situações de humilhação, de indignidade, de pecado é atitude urgente
para aqueles que querem ser sinal fecundo do Reino. A religião cristã não é
aquela composta pelo puros e santamente afastados : mas daqueles que, imersos
na terra do mundo, irradiam humanidade, escrevendo ao chão, para solidarizar-se
com quem precisa ser tocado pela libertação própria do Reino de Deus. Percorrer
o caminho da humildade é compreender que, fora do chão, lugar concreto onde a vida
se dá, não há salvação.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1237431/2018/03/a-humildade-de-jesus-e-o-orgulho-dos-cristaos/
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