Dante e seus Poemas por Domenico di Michelino (1460)
*Artigo de Geraldo De Mori, SJ
‘A destinação
final do ser humano é vista de diversas maneiras pelas religiões e pelas
ciências. O cristianismo professa sua esperança na ressurreição dos mortos,
baseado na proclamação da ressurreição de Jesus Cristo. Muitas igrejas cristãs,
ao rezarem a cada domingo o símbolo dos Apóstolos ou símbolo de
Niceia/Constantinopla, dizem crer na ‘ressurreição
dos mortos e na vida eterna’ ou dizer crer ‘na ressurreição dos mortos e na vida do mundo que há de vir’.
Baseada nessas afirmações do símbolo da fé, a teologia cristã elaborou ao longo
dos séculos uma reflexão que deu origem, já nas Sumas medievais, aos artigos
dedicados aos ‘novíssimos’ (as coisas
novas), que na teologia atual são estudados no tratado de escatologia (as
coisas últimas e definitivas).
A sistematização
do que tradicionalmente foi chamado de ‘novíssimos’
é o resultado do encontro entre várias ‘representações
da vida futura’, muitas delas presentes na Bíblia e outras oriundas das
tradições religiosas e filosóficas de outras culturas, dentre as quais a grega.
Nos textos mais antigos da Bíblia, a vida era o mais importante. Para
realizar-se plenamente, o ser humano tinha que ter saúde, viver uma vida longa,
ser bem sucedido do ponto de vista material, ter filhos e ver ‘os filhos dos filhos’ (Sl 128,6). Não
havia esperança de uma vida após a morte, embora o Israel antigo não conhecesse
a ideia de que com a morte tudo desapareceria. Para eles, os mortos iam para o
xeol (Jó 14,13; Sl 6,5; 86,13;139,8; Pr 30,16; Ecl 9,4-6;.10), que era o reino
das sombras, mas sobre o qual Deus reinava. Não existia a ideia de que o xeol
fosse o domínio de uma força maligna, identificada em outras religiões com o
diabo. Tampouco existia a ideia de que havia um paraíso para onde iriam os
justos/bons. Deus mostrava, porém, misericórdia para com os justos (até a
milésima geração : cf. Dt 5,10) e retribuía com o castigo os que praticavam o
mal (até a terceira geração o mal : cf. Dt 5,9).
A crença de que
haveria uma retribuição após a morte, com um lugar para os bons e outro para os
maus, começou a surgir na literatura apocalíptica judaica, que é representada
pelo livro de Daniel e por vários apócrifos (Esdras, Enoque etc.). Em parte,
isso foi determinado pela morte dos justos e a constatação de que no mundo nem
sempre eles eram devidamente retribuídos e os maus devidamente castigados. O
capítulo 12 de Daniel é emblemático a esse respeito, pois fala que os mortos ‘acordarão’, alguns para a ‘vida eterna’ e outros para o ‘desprezo eterno’ (v. 2). O capítulo 7 do
segundo livro dos Macabeus também atesta a fé na ressurreição (v. 28-29).
O Novo Testamento
mostra a duas perspectivas acima elencadas : a dos saduceus, para os quais não
haveria ressurreição, e a dos fariseus, que nela criam (Mt 22,23-33). Aparece
também a crença de um lugar para os bons (o ‘seio de Abraão’, em Lc 16,22) e um lugar para os maus (o ‘inferno’, em Lc 16,23). O lugar para os
maus é denominado também ‘geena’, e
ganha traços terríveis nos discursos de Jesus : lugar onde haveria ‘choro e ranger de dentes’, com ‘vermes’, ‘corrupção’ (Mt 5,22.30; 10,28; 18,9; 23,15.33 etc.). O termo ‘paraíso’ ocorre uma única vez na boca de
Jesus, quando ele o promete ao bom ladrão arrependido na cruz (Lc 23,43). Jesus
fala, porém, do reino de Deus como algo futuro, lugar de festa e banquete (Mt
22,1-14; Lc 14,15-24). Além da ideia de ‘lugares’
para onde iriam os mortos, os textos do Novo Testamento falam ainda que Jesus
ressuscitou dos mortos e apareceu a vários discípulos (1Cor 15,5s), e
fundamentam nossa ressurreição na sua ressurreição, com longa reflexão sobre
como ela seria (1Cor 15,12-58). Os principais textos que falam de nossa
ressurreição a associam à segunda vinda de Cristo, o ‘dia do Senhor’ (1Ts 4,13-18; 1Cor 15,23-27).
Com base nesses
textos e nessas ‘representações’ da
vida futura, a pregação cristã e a teologia foram elaborando, em diálogo com a
filosofia grega, o que, na Idade Média, foi chamado de novíssimos : céu e
inferno. Em parte, essa reflexão constituiu-se como ‘topografia do além’, determinada pelas categorias a partir das
quais conhecemos : espaço e tempo. O ‘mundo
futuro’ tornou-se uma espécie de reprodução, mais perfeita e plena, chamada
‘céu’ ou ‘paraíso’, ou imperfeita e falha, denominada ‘inferno’. Além desses dois ‘lugares’,
pouco a pouco foi surgindo um terceiro, o ‘purgatório’.
Em parte, isso se deve ao dualismo antropológico grego, que via o ser humano
como a conjunção de corpo (perecível) e alma (imperecível), e em parte, ao ‘atraso da parusia’, que levantava a
questão do que acontecia com os fiéis que haviam dado testemunho do Cristo
antes de sua segunda vinda. A crença de que no dia juízo tudo deveria ser ‘revelado’, passando pelo fogo (1Cor
3,13-15), e a prática da oração pelos ‘fiéis
defuntos’, levou à elaboração da teologia do purgatório. Com a Divina
comédia, de Dante, na Idade Média, e as pregações da Igreja visando à
conversão, essa representação do além se popularizou, tendo ainda grande
importância na linguagem.
A nova visão do
mundo, dada pelas descobertas das ciências modernas, mostrou, porém, que não se
pode mais pensar a esperança na ressurreição ou a ‘vida futura’ ou no ‘além’,
com as categorias do nosso mundo (espaço e tempo). É difícil pensar fora do
tempo e do espaço, mas isso não significa que não o possamos fazer. O único
lugar para pensar isso é o próprio mistério pascal de Cristo, sua cruz e
ressurreição.
Como fazê-lo?
Vendo como Jesus morreu. Podemos dizer que na Cruz, Jesus nos diz primeiro o
que é o inferno. Ao clamar em voz forte ‘meu
Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46), ele nos diz que o
inferno é a separação radical da fonte de sentido, que é o Pai, o não sentir-se
amparado por ele, ver a vida aniquilar-se no nada. Essa frustração radical e
total da existência é a não realização da vocação à filiação, inscrita na
criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Alguns autores pensam que
Jesus fez essa experiência para que ninguém a fizesse depois dele. Outros dizem
que a possibilidade do inferno é a condição de possibilidade da liberdade, ou
seja, Deus nos cria para sermos filhos (as), mas não nos obriga à filiação. Por
isso, a possibilidade da frustração radical da existência, que é viver fora do
sentido, que é Deus. De qualquer forma, a cruz é a revelação do mal por
excelência, presente na condenação do justo, e a revelação da vitória sobre
este mal, pois é a expressão do dom de si de Jesus por amor até o fim, em
fidelidade ao Pai. Essa fidelidade pode ser vista também como confiança, e aí
aparece a experiência da vitória sobre a frustração. Nas palavras : ‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’
(Lc 23,46), Jesus mantém-se fiel àquilo que ele acreditou durante toda a vida,
na ‘noite mais escura’ dos sentidos,
pois aí Deus parecia ter-se ausentado. Nesta fé-confiança encontra-se o que
poderíamos chamar ‘céu’, pois o céu é
encontrar sentido e sentido último e definitivo para a existência, mesmo quando
ela parece não ter sentido.
Perseverar na
apelação filial, eis o caminho revelado por Jesus diante do nada da morte
injusta que lhe foi impingida. A passagem pelo abandono pode ser vista como ‘purgatório’, ou seja, a prova final pela
qual passou Jesus, e pela qual todos passamos. No fundo, diante do ‘nada’ para o qual a morte parece
conduzir, e que pode ser identificado com o ‘inferno’, a fé, feita de provação, de ‘purgatório’, nos diz que a perseverança na fé-confiança é possível,
e nos leva ao ‘céu’. Toda essa
experiência da cruz não é feita apenas entre Jesus e o Pai. O Espírito Santo aí
está, levando Jesus ao supremo despojamento, à ‘noite escura da alma’ do abandono, do inferno, arrancando-o, pelo
purgatório, para o céu da fé-confiança. Nossa morte, na perspectiva cristã,
também é chamada a ser vivida na perspectiva aberta por Jesus. Pela
fé-confiança, passando ‘pelo vale
tenebroso do abandono’, somos chamados a abandonar-nos nos braços do Pai,
como o fez Jesus, movidos pela força do Espírito Santo.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1178875/2017/08/ceu-inferno-e-purgatorio-a-luz-do-misterio-pascal/
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