sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Liturgia : a poesia de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Daniel Reis, 
graduando em Teologia e em Direito (PUC Minas); 
cursa Especialização em Liturgia (Universidade Salesiana de São Paulo)


‘A arte, amplamente considerada, tem o condão de revelar o que a razão não consegue. Há uma frase atribuída a Leonardo da Vinci que ilustra bem esta ideia : ‘A arte diz o indizível, exprime o inexprimível e traduz o intraduzível’. A poesia, compreendida como produção artística ou ato criador de arte - seja pelo poema, pela música ou pela imagem - em sua forma final pode parecer mais real que a realidade que se apresenta aos olhos, pois consegue exprimir e desvelar um significado que, em semiótica, sempre está oculto de alguma forma. Para corroborar esta ideia, vale lembrar a belíssima afirmação poética de Antoine de Saint-Exupéry, em sua célebre obra ‘O Pequeno Príncipe’ : ‘Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos’. Desta forma, um coração poético nos auxilia numa compreensão simbólica da fé. Nos ajuda a percorrer, pelos sinais, os significados que querem se revelar. Nos liberta das visões fundamentalista e literalista, que costumam avidamente ‘saltar aos olhos’. E uma vez livres, podemos perceber a textura e a tonalidade do nosso modo de entender e de nos comunicar com Deus.

A Liturgia, sendo a mais primorosa obra de arte que Deus dedicou à humanidade, não é outra coisa senão uma poesia que declama, de forma ritual e simbólico-sacramental, o amor salvífico do Criador às suas criaturas. Nossa comunicação com Deus se dá, por excelência, pela linguagem litúrgica, cujo conteúdo exprime, invoca e evoca o Mistério que não pode ser contido nas palavras da linguagem humana. Esta linguagem litúrgica traz em si uma forma poética, que é expressiva, rítmica, possui cadência, como no exemplo do hino laudatório do Sanctus, onde a repetição ‘Santo, santo, santo’ faz entender que a realidade do Deus a quem falamos escapa a qualquer descrição verbal adequada, não só pela pobreza da língua hebraica, onde a tripla repetição corresponde, para nós, ao superlativo, mas pela própria pobreza e insuficiência de toda a linguagem humana para falar de Deus e a Deus. Nesta toada, o liturgista Cesare Giraudo, comentando sobre o Sanctus, diz ser ‘a forma suprema com que a criatura, no momento em que toma consciência da sua própria condição, fala a Deus; e não pode falar outra coisa senão declarando-o Santo’, dada a limitação comunicacional humana. Também T.S. Eliot, em sua obra ‘Quatro Martelos’, afirma que ‘nossas palavras forçam, rompem, escorregam, resvalam, correm e transportam a carga do significado em nossa fala das coisas de Deus’.

Como a poesia, a liturgia também está impregnada de metáforas. A palavra ‘metáfora’ vem de um verbo grego que significa ‘transferir para outro lugar’ ou ‘transportar o significado de uma palavra ou imagem de um referente para outro’, de tal forma que, com base em uma semelhança ou aparência percebida, ‘a’ seja visto como ‘b’. É o exemplo deste verso poético de Camões : ‘Amor é fogo que arde sem se ver.’ Esta linguagem metafórica, figurada - que se vale de figuras (imagens) para dizer como as coisas são - é plenamente verdadeira. Assim, como no verso de Camões, podemos dizer autenticamente que, por exemplo, a Palavra de Deus proclamada na Liturgia ‘é fogo que arde’ em nós, como experimentaram os discípulos de Emaús : ‘É por isso que os nossos corações ardiam enquanto Ele nos explicava as Escrituras pelo caminho’ (Lc 24,32). Portanto, também a Liturgia, unida à poesia, nos revela uma coisa por meio de outra, metafórica e poeticamente. O Mistério Pascal de Cristo nos é revelado nos sinais sensíveis componentes de toda e qualquer celebração litúrgica : vemos pão e vinho, mas sabemos que, através da linguagem litúrgico-poética, são-nos comunicados o Corpo e o Sangue do Senhor. No Batismo, salta aos olhos em primeiro plano um banho de água na criança; mas pela fé celebrada naquele gesto litúrgico-poético, sabemos que ela está sendo mergulhada na morte com o Cristo e, ao sair da água, ressuscitando juntamente com Ele (cf. Rm 6,4). Assim, a linguagem poética da liturgia é como um telescópio que nos ajuda a captar uma verdade mais profunda e menos óbvia, escondida : a verdade da graça salvífica! Fernando Pessoa afirma que ‘O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, e o fim da arte superior é libertar’. Sendo a Liturgia a mais ‘superior’ de todas artes, pois tem o próprio Deus como artista, ela nos liberta, colocando ao nosso alcance a libertação oferecida por Jesus Cristo. Porém, mesmo não sendo ‘inferior’ ou ‘média’, nos termos de Pessoa, ela também nos ‘agrada’ e nos ‘eleva’ à dignidade de Filhos e Filhas de Deus, por Ele muito amados.

Se a vocação da poesia é revelar o que a razão não consegue, assim será também a vocação da Liturgia, com um certo acréscimo, pois consiste em assimilar e encaminhar as pessoas para a graça divina, tantas vezes imperceptível aos olhos da razão, mas plenamente cognoscível à luz da arte poética que deve estar intimamente ligada à Liturgia, como afirma o Concílio Vaticano II :

Entre as mais nobres atividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus’ (Sacrossanctum Concilium, nº 122)

Sintonizamos os nossos ouvidos à voz da poesia para saber o que ela pode nos dizer, inflamando a nossa imaginação muitas vezes insensível, ajudando-nos a ver coisas ainda desconhecidas e nos mostrando de novo os encantos do nosso mundo extenuado, fazendo-nos vivenciar a glória da salvação, bem como a maravilha de nos encorajar para tornar reais as possibilidades de mudança e transformação que este mundo reclama. A poesia é uma forjadora que martela a matéria incandescente do amor em sua forja artística, apara as arestas do significado de ser cristão e remodela as nossas percepções do mundo. Já dizia a poetisa inglesa Elizabeth Jennings : ‘A poesia deve mudar e fazer o mundo parecer novo em cada plano’.  No plano da fé, também a Liturgia deverá fazer o ‘mundo parecer novo’, mais parecido com o Reino de Deus! E a arte poética que ela carrega contribui essencialmente para isso : para um mundo mais belo evangelicamente, onde cada um de nós possa um dia afirmar, a exemplo do Santo Padre Paulino de Nola (séc. IV), que ‘Para mim a única arte é a fé, e Cristo a minha poesia’!’


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