*Artigo
de Daniel Reis,
graduando em Teologia e em Direito (PUC Minas);
cursa Especialização em Liturgia (Universidade Salesiana de São Paulo)
‘A arte,
amplamente considerada, tem o condão de revelar o que a razão não consegue. Há
uma frase atribuída a Leonardo da Vinci que ilustra bem esta ideia : ‘A arte diz o indizível, exprime o
inexprimível e traduz o intraduzível’. A poesia, compreendida como produção
artística ou ato criador de arte - seja pelo poema, pela música ou pela imagem
- em sua forma final pode parecer mais real que a realidade que se apresenta
aos olhos, pois consegue exprimir e desvelar um significado que, em semiótica,
sempre está oculto de alguma forma. Para corroborar esta ideia, vale lembrar a
belíssima afirmação poética de Antoine de Saint-Exupéry, em sua célebre obra ‘O Pequeno Príncipe’ : ‘Só se vê bem com o coração. O essencial é
invisível aos olhos’. Desta forma, um coração poético nos auxilia numa
compreensão simbólica da fé. Nos ajuda a percorrer, pelos sinais, os
significados que querem se revelar. Nos liberta das visões fundamentalista e
literalista, que costumam avidamente ‘saltar
aos olhos’. E uma vez livres, podemos perceber a textura e a tonalidade do
nosso modo de entender e de nos comunicar com Deus.
A Liturgia, sendo
a mais primorosa obra de arte que Deus dedicou à humanidade, não é outra coisa
senão uma poesia que declama, de forma ritual e simbólico-sacramental, o amor
salvífico do Criador às suas criaturas. Nossa comunicação com Deus se dá, por excelência,
pela linguagem litúrgica, cujo conteúdo exprime, invoca e evoca o Mistério que
não pode ser contido nas palavras da linguagem humana. Esta linguagem litúrgica
traz em si uma forma poética, que é expressiva, rítmica, possui cadência, como
no exemplo do hino laudatório do Sanctus, onde a repetição ‘Santo, santo, santo’ faz entender que a
realidade do Deus a quem falamos escapa a qualquer descrição verbal adequada,
não só pela pobreza da língua hebraica, onde a tripla repetição corresponde,
para nós, ao superlativo, mas pela própria pobreza e insuficiência de toda a
linguagem humana para falar de Deus e a Deus. Nesta toada, o liturgista Cesare
Giraudo, comentando sobre o Sanctus, diz ser ‘a forma suprema com que a criatura, no momento em que toma consciência
da sua própria condição, fala a Deus; e não pode falar outra coisa senão
declarando-o Santo’, dada a limitação comunicacional humana. Também T.S.
Eliot, em sua obra ‘Quatro Martelos’,
afirma que ‘nossas palavras forçam,
rompem, escorregam, resvalam, correm e transportam a carga do significado em
nossa fala das coisas de Deus’.
Como a poesia, a
liturgia também está impregnada de metáforas. A palavra ‘metáfora’ vem de um verbo grego que significa ‘transferir para outro lugar’ ou ‘transportar o significado de uma palavra ou imagem de um referente para
outro’, de tal forma que, com base em uma semelhança ou aparência
percebida, ‘a’ seja visto como ‘b’. É o exemplo deste verso poético de
Camões : ‘Amor é fogo que arde sem se ver.’
Esta linguagem metafórica, figurada - que se vale de figuras (imagens) para
dizer como as coisas são - é plenamente verdadeira. Assim, como no verso de
Camões, podemos dizer autenticamente que, por exemplo, a Palavra de Deus
proclamada na Liturgia ‘é fogo que arde’
em nós, como experimentaram os discípulos de Emaús : ‘É por isso que os nossos corações ardiam enquanto Ele nos explicava as
Escrituras pelo caminho’ (Lc 24,32). Portanto, também a Liturgia, unida à
poesia, nos revela uma coisa por meio de outra, metafórica e poeticamente. O
Mistério Pascal de Cristo nos é revelado nos sinais sensíveis componentes de
toda e qualquer celebração litúrgica : vemos pão e vinho, mas sabemos que,
através da linguagem litúrgico-poética, são-nos comunicados o Corpo e o Sangue
do Senhor. No Batismo, salta aos olhos em primeiro plano um banho de água na
criança; mas pela fé celebrada naquele gesto litúrgico-poético, sabemos que ela
está sendo mergulhada na morte com o Cristo e, ao sair da água, ressuscitando
juntamente com Ele (cf. Rm 6,4). Assim, a linguagem poética da liturgia é como
um telescópio que nos ajuda a captar uma verdade mais profunda e menos óbvia,
escondida : a verdade da graça salvífica! Fernando Pessoa afirma que ‘O fim da arte inferior é agradar, o fim da
arte média é elevar, e o fim da arte superior é libertar’. Sendo a Liturgia
a mais ‘superior’ de todas artes,
pois tem o próprio Deus como artista, ela nos liberta, colocando ao nosso
alcance a libertação oferecida por Jesus Cristo. Porém, mesmo não sendo ‘inferior’ ou ‘média’, nos termos de Pessoa, ela também nos ‘agrada’ e nos ‘eleva’ à
dignidade de Filhos e Filhas de Deus, por Ele muito amados.
Se a vocação da
poesia é revelar o que a razão não consegue, assim será também a vocação da
Liturgia, com um certo acréscimo, pois consiste em assimilar e encaminhar as
pessoas para a graça divina, tantas vezes imperceptível aos olhos da razão, mas
plenamente cognoscível à luz da arte poética que deve estar intimamente ligada
à Liturgia, como afirma o Concílio Vaticano II :
‘Entre as mais nobres atividades do espírito
humano estão, de pleno direito, as belas artes, e muito especialmente a arte
religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por
natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a
infinita beleza de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de
Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente
possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus’ (Sacrossanctum Concilium, nº 122)
Sintonizamos os
nossos ouvidos à voz da poesia para saber o que ela pode nos dizer, inflamando
a nossa imaginação muitas vezes insensível, ajudando-nos a ver coisas ainda
desconhecidas e nos mostrando de novo os encantos do nosso mundo extenuado,
fazendo-nos vivenciar a glória da salvação, bem como a maravilha de nos
encorajar para tornar reais as possibilidades de mudança e transformação que
este mundo reclama. A poesia é uma forjadora que martela a matéria
incandescente do amor em sua forja artística, apara as arestas do significado
de ser cristão e remodela as nossas percepções do mundo. Já dizia a poetisa
inglesa Elizabeth Jennings : ‘A poesia
deve mudar e fazer o mundo parecer novo em cada plano’. No plano da fé, também a Liturgia deverá
fazer o ‘mundo parecer novo’, mais
parecido com o Reino de Deus! E a arte poética que ela carrega contribui
essencialmente para isso : para um mundo mais belo evangelicamente, onde cada
um de nós possa um dia afirmar, a exemplo do Santo Padre Paulino de Nola (séc.
IV), que ‘Para mim a única arte é a fé, e
Cristo a minha poesia’!’
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