*Artigo
do Padre Alexander Schmemann,
teólogo e sacerdote cristão ortodoxo
(13.09.1921 – 13.12.1983)
‘Quando um homem
parte em viagem, deve saber para onde vai. Da mesma forma com a Quaresma. Antes
de tudo, a Quaresma é uma viagem espiritual e seu destino é a Páscoa, a «Festa das Festas». É a preparação à «realização da Páscoa figurativa, a
verdadeira Revelação». Devemos então começar por tentar compreender esta
relação entre Quaresma e Páscoa, pois ela revela algo de muito essencial,
crucial, no tocante a nossa fé e a nossa vida cristã.
E necessário
explicar que a Páscoa é muito mais do que uma Festa entre as festas, muito mais
do que uma comemoração anual de um acontecimento passado? Quem quer que tenha
participado, ainda que uma única vez, desta noite «mais luminosa de que o dia», quem quer que tenha provado esta
alegria única sabe-o bem. Mas de onde vem esta alegria? E porque podemos
cantar, como fazemos na liturgia pascal : «Hoje,
todas as coisas estão repletas de luz, o Céu, a Terra e os infernos»? Em que
sentido celebramos, como pretendemos celebrar, «a morte da morte, a destruição
do inferno, o início de uma vida nova e eterna»? A todas estas perguntas, a
resposta é a seguinte : A vida nova que, há quase 2.000 anos, jorrou do túmulo,
foi dada a nós, a todos nós que cremos em Cristo. E ela nos foi dada no dia do
nosso batismo onde, como diz São Paulo, «fomos
sepultados com Cristo na morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos,
assim andemos nós também em novidade de vida »(Rm 6,4)
Assim, celebramos
na Páscoa a Ressurreição de Cristo como algo que aconteceu e que ainda nos
acontece. Pois cada um de nós recebeu o dom desta vida nova e faculdade de
acolhê-la e vivê-la. E um dom que muda radicalmente nossa atitude em relação a
todas as coisas deste mundo, inclusive a morte, e que nos dá o poder de afirmar
alegremente : «A morte não existe mais!»
Certamente a morte ainda está ai, nós ainda a enfrentamos e um dia ela virá nos
buscar. Porém aí reside toda nossa fé; por sua própria morte, Cristo mudou a
natureza da morte, fez dela uma passagem, uma páscoa, uma «pascha» para o Reino de Deus, transformando a tragédia das
tragédias em vitória suprema. «Esmagando
a morte pela morte», ele nos tornou participantes de sua ressurreição. É
por isso que no fim das Matinas de Páscoa, dizemos : «Cristo ressuscitou, e eis a vida que governa! Cristo ressuscitou, e
nenhum morto permaneceu no túmulo».
Esta é a fé da
Igreja, afirmada e formada evidente por seus inumeráveis santos. E entretanto
será que não provamos diariamente que esta fé é raramente a nossa, que sempre
perdemos e traímos a vida nova que recebemos como dom e que, na verdade,
vivemos como se Cristo não houvesse ressuscitado dos mortos, como se este
acontecimento único não tivesse o menor significado para nós? Tudo isso por
causa de nossa fraqueza, por causa da nossa impossibilidade de viver
constantemente de fé, de esperança e caridade, no nível a que Cristo nos elevou
quando disse : «Buscai antes de tudo o
Reino de Deus e sua justiça». Nós simplesmente esquecemos, de tanto que
estamos ocupados, imersos em nossas ocupações cotidianas, e, porque esquecemos,
sucumbimos. E por esse esquecimento, esta queda e este pecado, nossa vida volta
a ser «velha’, mesquinha, escurecida e finalmente desprovida de sentido; uma
viagem desprovida de sentido em direção a um fim sem significado. Fazemos tudo
para esquecer a própria morte, e eis que de repente, no meio de nossa vida tão
agradável, ela está lá diante de nós, horrível, inevitável, absurda. Até
podemos, de vez em quando, reconhecer e confessar nossos diversos pecados, mas
sem por isso relacionar nossa vida àquela vida nova que Cristo nos revela e nos
deu. Na verdade, vivemos como se Ele jamais tivesse vindo. Este é o único
verdadeiro pecado, o pecado de todos os pecados, a tristeza insondável e a
tragédia de nosso Cristianismo, que só o é de nome.
Se tomamos consciência
disto, então podemos compreender o que a realidade da Páscoa recobre e porque
ela necessita e pressupõe a Quaresma. Pois então podemos compreender que as
tradições litúrgicas da Igreja, todos seus ciclos e ofícios, são feitos antes
de tudo para nos ajudar a recobrar a visão e o gosto desta vida nova, que
perdemos e traímos tão facilmente, e assim poderemos nos arrepender e voltar a
esta vida. Como poderíamos amar e desejar algo que não conhecêssemos? Como
colocar acima de tudo, em nossa vida, algo que não vimos e não provamos? Em
suma, como poderíamos procurar um Reino de que não tivéssemos a menor idéia?
É a liturgia da
Igreja que, desde o começo e ainda hoje, nos introduz, nos faz comungar a vida
nova do Reino. É através de sua vida litúrgica que a Igreja nos revela algo
daquilo que «o ouvido não ouviu, o olho não viu e que não subiu ao coração do
homem, mas que Deus preparou para aqueles que 0 amam». E no centro desta vida
litúrgica, como seu coração e seu ápice, como o sol cujos raios penetram por
toda a parte, encontra-se a Páscoa. E a porta aberta a cada ano ao esplendor do
Reino de Cristo, a antecipação do Júbilo eterno que nos espera, a glória da
vitória que — desde já — ainda que invisivelmente, preenche toda a oração : «A morte não mais existe! Toda a liturgia da
Igreja é ordenada ao redor da Páscoa, e, assim, o ano litúrgico, isto é, a
sucessão de estações e festas, torna-se uma viagem, uma peregrinação para a
Páscoa, para o «Fim» que é ao mesmo tempo o «Começo» : fim do que é velho,
começo da vida nova, uma «passagem» constante «deste mundo» para o Reino já
revelado em Cristo».
E, entretanto, a
vida «velha», a vida de pecado e
mesquinharia, não é facilmente vencida e transformada. O Evangelho espera e
exige do homem um esforço de que ele é, em seu estado atual, virtualmente
incapaz. Somos colocados perante um objetivo, um modo de vida que estão tão
além de nossas possibilidades! Os próprios apóstolos, quando ouviram o
ensinamento de seu Senhor, perguntaram-lhe, desesperados : «Como isso é possível?» Não é fácil,
realmente, rejeitar um ideal mesquinho de vida, perto de preocupações
cotidianas, de busca de bens materiais, de segurança e prazer, por um ideal de
vida cujo objetivo exclui tudo o que está aquém da perfeição : «Sê perfeitos como vosso Pai celeste é
perfeito».
Este mundo diz por
todos seus meios de comunicação : «Sejam
felizes, não se preocupem, tomem a via larga». Ora, Cristo diz o Evangelho.
«Escolhei a via estreita, combatei e sofrei,
pois é o caminho da única felicidade verdadeira». Sem o socorro da Igreja,
como podemos fazer esta escolha terrível, como podemos nos arrepender e
retornar à gloriosa Promessa que nos é dada a cada ano na Páscoa? É aqui que
intervêm a Quaresma. É o socorro que nos oferece a Igreja, escola de
arrependimento que, somente ela, nos tornará possível acolher a Páscoa não como
uma simples permissão de comer, beber e se divertir, mas verdadeiramente como o
fim daquilo que é «velho» em nós,
como nossa entrada no «novo».
Na Igreja
primitiva, o principal objetivo da Quaresma era preparar ao batismo os
catecúmenos, isto é, os Cristãos recém-convertidos, em um tempo em que o
batismo era ministrado durante a liturgia pascal. Entretanto, mesmo quando a
Igreja não batizava mais adultos e a instituição do catecumenato tinha
desaparecido, o sentido da Quaresma permaneceu o mesmo. Pois, apesar de sermos
batizados, o que perdemos e traímos constantemente é precisamente o que
recebemos no batismo. É por isso que a Páscoa é nosso retorno anual a nosso
próprio batismo, enquanto que a Quaresma é a preparação a este retorno, o
esforço lento e resistente para, finalmente, realizar nossa própria «passagem» ou «Páscoa» na nova Vida em Cristo. E se, como veremos, a liturgia de
Quaresma conserva ainda hoje seu caráter catequético e batismal, não é como um
resto arqueológico do passado, mas como algo de valioso e essencial para nós.
Pois, a cada ano, a Quaresma e a Páscoa nos fazem redescobrir uma vez mais e
recobrar aquilo que a passagem batismal através da morte e da ressurreição
havia operado em nós.
Uma viagem. Uma
peregrinação. E, ao empreendê-la, já desde o primeiro passo na «radiosa tristeza» da Quaresma,
percebemos ao longe, bem longe, o destino a alegria da Páscoa, a entrada na
glória do Reino. E é esta visão, o gosto antecipado da Páscoa, que torna
radiosa a tristeza da Quaresma e que faz de nosso esforço na Quaresma «primavera espiritual». A noite pode ser
longa e sombria; mas, ao longo do caminho, uma aurora misteriosa e luminosa
desponta no horizonte. «Não desaponte
nossa espera, ó Amigo do Homem!»’
Fonte :
* Artigo na íntegra https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/teologia/alexander_schmemann_a_quaresma_viagem_para_a_pascoa%C2%BB.html
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