*Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo
Metropolitano de Belém, PA
‘Conferimos o
calendário, as agendas de todos os tipos e organizamos o uso do tempo. De
acordo com as estações do ano, nos hemisférios norte e sul, convivemos com a
diversidade de climas e temperaturas, determinamos nossos períodos de trabalho
e de descanso, fazemos as nossas escolhas. O ano civil vai de janeiro a
dezembro e as normas dos diversos países determinam os prazos para prestações
de contas, impostos, vigência das leis, e daí por diante. Com todos os limites
existentes, mas o nosso mundo tende a normatizar a convivência, estabelecendo
regras e propondo o necessário respeito às pessoas e grupos. Seria muito bom
que tudo funcionasse assim, as leis fossem respeitadas, a ‘máquina’ funcionasse bem. Sabemos que nem sempre a letra
corresponde à realidade vivida, mas estamos buscando um mundo possível e
adequado, para as diversas porções da humanidade.
Para fecundar o
tempo humano, a experiência da fé tem o seu centro, não na natureza, com seus
ritmos, e nem mesmo na capacidade organizativa da sociedade. Para a Igreja, o
tempo é marcado por alguém e não por coisas ou normas acordadas na sociedade. O eixo do tempo cristão tem um nome, Jesus Cristo. Também a
sociedade, mesmo as pessoas que não têm fé, acabam referindo-se ao seu
nascimento no tempo, para datar os acontecimentos. E mesmo antes do ano civil
terminar, já é ano novo para a Igreja e para os cristãos, para percorrer, uma
vez mais e de forma sempre renovada, os mistérios de Cristo. Eles nos encontrem
crescidos e dispostos a testemunhar a fé cristã com maior ardor.
A organização do
chamado Ano Litúrgico, que começa neste domingo, aconteceu paulatinamente,
segundo a consciência adquirida do mistério de Cristo e da adesão a Ele. No
primeiro período da Igreja, a Páscoa foi o único ponto central da pregação, da
celebração e da vida cristã. O culto da igreja nasce da Páscoa e para celebrar
a Páscoa. Tudo é visto no centro e a partir do centro, e este centro é o
acontecimento do Cristo morto e ressuscitado. No começo, portanto, tudo está
centrado neste único mistério, atualizado no presente da celebração.
A Igreja primitiva
não celebrava ‘os mistérios’ de
Cristo, mas ‘o mistério’, ou seja, a
Páscoa, como acontecimento que resume e faz valer para a nossa salvação todo o
conjunto da vida e da ação salvífica de Cristo. Nos primeiros três séculos da
vida da Igreja prevaleceu o critério místico da ‘concentração’ sobre o critério cronológico da ‘distribuição’, que entrou nos séculos seguintes. Assim por exemplo,
na segunda parte do século II, Melitão de Sardes, repetindo um conceito, já
manifestado antes por São Justino, afirma : ‘Cristo é a Páscoa da nossa salvação’.
A celebração do
mistério pascal está no centro da ‘memória’
que a Igreja celebra do seu Senhor. Esta celebração se realiza, desde o
princípio, toda semana. As assembleias cristãs sempre se reuniram, como fazem
até hoje, no primeiro dia da semana para a ‘Fração
do Pão’, que foi o primeiro nome da Celebração Eucarística. Este dia
recebeu logo um nome novo ‘o dia do
Senhor’, ‘Domingo’, que lembra
aos cristãos a ressurreição de Cristo, une-os a ele na sua Eucaristia,
encaminha-os para a espera da sua vinda, no fim dos tempos.
O domingo é a
espinha dorsal do ano litúrgico inteiro, do qual é fundamento e núcleo. No
domingo existe a festa cristã na sua integralidade, e no decurso do ano
litúrgico são explicitados os aspectos da totalidade desta festa primordial. A
Páscoa anual até hoje continua celebrada com a ‘vigília’ solene, na passagem de Cristo, da morte para a
ressurreição. Ao redor desse núcleo primitivo vai-se constituindo o ‘tríduo sagrado’, que se inicia na
quinta-feira santa, depois celebra a morte de Cristo (sexta-feira santa), a sua
sepultura (sábado santo) e a sua ressurreição (domingo com a grande vigília), a
Páscoa celebrada em três dias. A solenidade pascal vai-se prolongando numa
festa de cinquenta dias, até o ‘Pentecostes’.
Depois se acrescentaram outros elementos que fazem parte da rica experiência do
Tempo da Igreja, até que se compôs o que chamamos de Ano Litúrgico, Ano de
Deus, Ano da Igreja, Ano dos cristãos.
No século IV, para
suplantar a festa pagã do ‘Natalis solis
invicti’ e para confirmar a fé no mistério da encarnação, surgiu a
celebração do Natal. No início, Natal, no Ocidente, e Epifania, no Oriente
constituíram uma celebração que tinha um único e mesmo objeto, a encarnação do
Verbo, ainda que com tonalidades diferentes. O ‘Advento’, como preparação ao Natal, é próprio do Ocidente cristão,
e é nele que estamos para adentrar e viver as quatro semanas intensas de oração
e crescimento, olhando para a vinda do Senhor no fim dos tempos, sua presença
no tempo cotidiano de nossa vida cristã e a memória de seu Natal no tempo,
quando o Verbo de Deus se fez Carne.
No Advento que se
inicia, tem lugar a virtude da Esperança, cujo conteúdo não se reduz em
aguardar coisas boas para o dia de amanhã, mas a certeza de que nossa vida tem
rumo, destino certo, tem sentido. Recordemos que esta, ao lado da fé e da
caridade, é uma virtude teologal, presente de Deus concedido no Batismo. Se
está dentro de nós por dom de Deus, é hora de atualizá-la, de forma a oferecer
à nossa geração esmorecida justamente na esperança, um sentido renovado para os
gestos, atitudes e passos a serem dados. A Liturgia da Igreja, em tempo de
Advento, oferece-nos ainda elementos preciosos para uma boa revisão de vida,
pautada não tanto no espelho, mas à luz de Jesus Cristo e sua Palavra, para que
o nosso seja um Tempo de Deus.
A partir da virtude da
Esperança, podemos acolher o convite a viver ‘em estado de Advento’, não fechados nos acontecimentos quotidianos,
que tantas vezes nos afogam, mas abertos para as promessas de Deus, conscientes
de sua presença salvadora, prontos para anunciar a alegria aos outros,
superando o pessimismo circundante, recolhendo as flores do bem que é feito,
acendendo luzes ao invés de abafar os fachos tímidos que se mostram na
escuridão. Justamente a grávida mais notável de todos os tempos, Virgem
Maria, em estado de expectativa, pode ser nossa companheira de jornada. O tempo
ao Advento é o mais favorável para cultivar a devoção e o carinho com Nossa Senhora,
aquela que se revestiu totalmente da Palavra de Deus!’
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