sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A morte do cristão, como horizonte trinitário e pascal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A morte é o acontecimento humano que mais nos gera questionamentos.
*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia


‘Dos silêncios que a vida nos impõe, não há dúvidas de que a morte é o acontecimento humano que mais nos gera questionamentos. Ela é uma das grandes questões que perpassam toda nossa existência. Não raras vezes ouvimos expressões, tais como ‘a morte é a única certeza da vida’, entre outras. Diante disso, o que pensar dessa silenciosa e terrível situação que, cedo ou tarde, experimentaremos pessoalmente, mas que, até agora, só a percebemos, inevitavelmente, quando ela se mostra para aqueles que nos cercam?

Assim, pois, ao mesmo tempo em que temos a certeza da morte, pouco podemos dizer sobre ela e, de tal modo, qualquer especulação que façamos será insuficiente. O que não se pode negar é que, em todas as culturas das quais temos notícias, a morte é real e é motivo de atenção. Contudo, refletir sobre tal tema é mais que um desafio, pois vivemos em uma cultura que, cada vez mais, tenta se esquivar de tudo aquilo que nos remete à finitude humana.

Somos testemunhas do quanto as questões que se referem à morte são tratadas com desprezo, medo e, de todas as maneiras, tentamos adiar nosso indesejável encontro com esta situação indizível, mas inevitável. A crescente busca pela eternização da juventude é prova mais que clara do quanto a morte é, para nós, tabu : nunca se viu tantos empreendimentos e tecnologias, que se destinam a criar o prolongamento da vida, como vemos hoje.

Sem dúvidas, um dos fatores que contribuem para que a morte seja ‘experimentada’ e percebida a partir de um verdadeiro sentimento de pavor, é o fato de, em nosso imaginário, pensarmos nela como sendo uma realidade dotada de pessoalidade, isto é, pensar a morte como uma pessoa, um ser [1]. Contudo, é preciso esclarecer o fato de que a morte, como pessoa, não existe. A morte é, exclusivamente, um fato. O fato não é outro senão o de que morremos [2]. Isso nos coloca diante de um limite insuperável : a morte não é passível de ser conceituada. Porém, a não possibilidade de conceitualização, não nos impede de percebê-la como fenômeno [3].

Contudo, tanto o morrer quanto o viver têm sentido, quando vistos pelo horizonte pascal e trinitário. De fato, a vida cristã é uma vida na Trindade, de modo que, ao participar da morte-ressurreição de Cristo, o cristão é, pelo Espírito, levado à comunhão com o Pai : ‘Nele, vós também sois juntamente edificados para serdes morada de Deus, no Espírito’ (Ef 2,22).

A morte é, para o ser humano, situação ímpar de pergunta pelo sentido. Este, por sua vez, é a vida na Trindade, fazendo da morte, momento máximo de abandono e de comunhão. Interessante notar a ambiguidade do termo abandono. Pode significar tanto o sentimento de estar só, quanto o próprio desapegar-se de si mesmo, confiando-se ao totalmente Outro. A morte, pensada pelos dois sentidos do abandonar-se, é a expressão radical da fragilidade do existir.

Aqui, recordamos os inúmeros esforços da Tanatologia, que tem crescido consideravelmente, em vista de pensar os temas acerca da finitude da vida, mas, sobretudo, sobre a qualidade de vida dos enfermos terminais. É um bonito trabalho, no qual aqueles que já se encontram no limite da vida, são assistidos de modo que possam gozar com qualidade de seus últimos instantes.

Entretanto, todos estes e outros esforços, não são capazes de livrar o ser humano do sentimento de abandono, na hora da morte. Vale lembrar a máxima popular de que ‘nascemos sozinhos e, sozinhos, morremos’. Nenhuma abordagem, por mais mística que seja, é capaz de livrar o aspecto dramático do morrer : ‘Sinto uma tristeza mortal; ficai aqui e vigiai comigo’ (Mt 26,38). Nenhuma presença, porém, é capaz de aliviar-nos deste abandono : ‘Não fostes capazes de vigiar uma hora comigo’ (Mt 26,40).

O Rosto abandonado da cruz nos ilumina sobre o morrer, como abandono confiante nos braços daquele que, não sem razão, fez-nos existir. Do profundo grito de abandono, ‘Eloi, Eloi, lemá sabachtáni’ (Mc 15,34), ecoa-nos a pergunta sobre onde estaria o Pai, que parecia tão próximo e íntimo do Filho, o abandonado. No ápice do drama humano, é o Espírito quem revela o lugar onde Deus se encontra : ‘Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito’ (Lc, 23,46). O Pai é o próprio lugar amoroso, no qual o Filho pode depositar sua confiança. Do abandono, Jesus é conduzido à mais profunda experiência de comunhão.

Morrer, abandonando-se ao existir amoroso do Pai, é, para nós, associação ao Filho, sujeito do abandono oblativo e obediente a Deus : ‘Pai, se esta taça não pode passar sem que eu a beba, que se cumpra tua vontade’ (Mt 26,42). É o próprio Espírito o elo da relação entre o abandonado e o regaço acolhedor do Pai. Oferecer-se na confiança ao Pai na hora da morte não é outra coisa, senão momento recapitulador de toda uma existência orientada para Deus, na liberdade configurada.

A dimensão pascal e, por isso, trinitária da morte nos permite pensar além da própria morte. ‘Pelo batismo nos sepultamos com ele na morte, para vivermos uma vida nova, assim como Cristo ressuscitou da morte pela ação gloriosa do Pai. Pois se fomos enxertados por uma morte como a sua, o mesmo acontecerá por sua ressurreição’ (Rm 6,4-5). O acontecimento pascal de Cristo nos coloca diante da possibilidade de um ‘estar com Cristo’ (Fl 1,23). E é à luz do ‘estar com Cristo’, que nossa esperança de que o morrer não é a realidade última de nossa existência, tem seu lugar e sua razão de ser : ‘Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão’ (1Cor 15,19). Cristo, ‘como primícias dos que morreram’, é o lugar teológico de nossa esperança na ressurreição.’
  

 [1] Basta que nos lembremos da emblemática figura da Morte, que perpassa nosso imaginário popular : um esqueleto, vestido de roupa preta, portando uma foice. Ou, ainda, as corriqueiras experiências de pessoas que, ao sentirem um calafrio, pronunciam como a uma oração : ‘Passe a morte, que estou forte’, como se esta pudesse ser sentida como uma espécie de fantasma ou espírito.

[2] Cf. Thomas, Louis-Vicent. Antropologia dela morte : l’Africa e l’Occidente messi a confronto de um grande antropologo sul terreno più árduo : il rispetto – o il disprezzo – per l’esistenza umana in tutte le inifinite forme che assume di fronte ala morte, vero banco di prova dela vita. Italy : Garzanti, 1976, p. 260. Ver também : Dastur, Françoise. A morte : ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro : DIFEL, 2002 p. 57.

[3] Cf. Dastur, A morte, p.62.


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