*Artigo
de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre
em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
‘Dos silêncios que
a vida nos impõe, não há dúvidas de que a morte é o acontecimento humano que
mais nos gera questionamentos. Ela é uma das grandes questões que perpassam
toda nossa existência. Não raras vezes ouvimos expressões, tais como ‘a morte é a única certeza da vida’,
entre outras. Diante disso, o que pensar dessa silenciosa e terrível situação
que, cedo ou tarde, experimentaremos pessoalmente, mas que, até agora, só a
percebemos, inevitavelmente, quando ela se mostra para aqueles que nos cercam?
Assim, pois, ao
mesmo tempo em que temos a certeza da morte, pouco podemos dizer sobre ela e,
de tal modo, qualquer especulação que façamos será insuficiente. O que não se
pode negar é que, em todas as culturas das quais temos notícias, a morte é real
e é motivo de atenção. Contudo, refletir sobre tal tema é mais que um desafio,
pois vivemos em uma cultura que, cada vez mais, tenta se esquivar de tudo
aquilo que nos remete à finitude humana.
Somos testemunhas
do quanto as questões que se referem à morte são tratadas com desprezo, medo e,
de todas as maneiras, tentamos adiar nosso indesejável encontro com esta
situação indizível, mas inevitável. A crescente busca pela eternização da
juventude é prova mais que clara do quanto a morte é, para nós, tabu : nunca se
viu tantos empreendimentos e tecnologias, que se destinam a criar o
prolongamento da vida, como vemos hoje.
Sem dúvidas, um
dos fatores que contribuem para que a morte seja ‘experimentada’ e percebida a partir de um verdadeiro sentimento de
pavor, é o fato de, em nosso imaginário, pensarmos nela como sendo uma
realidade dotada de pessoalidade, isto é, pensar a morte como uma pessoa, um
ser [1]. Contudo, é preciso
esclarecer o fato de que a morte, como pessoa, não existe. A morte é,
exclusivamente, um fato. O fato não é outro senão o de que morremos [2]. Isso nos coloca diante de um
limite insuperável : a morte não é passível de ser conceituada. Porém, a não
possibilidade de conceitualização, não nos impede de percebê-la como fenômeno [3].
Contudo, tanto o
morrer quanto o viver têm sentido, quando vistos pelo horizonte pascal e
trinitário. De fato, a vida cristã é uma vida na Trindade, de modo que, ao
participar da morte-ressurreição de Cristo, o cristão é, pelo Espírito, levado
à comunhão com o Pai : ‘Nele, vós também
sois juntamente edificados para serdes morada de Deus, no Espírito’ (Ef
2,22).
A morte é, para o
ser humano, situação ímpar de pergunta pelo sentido. Este, por sua vez, é a
vida na Trindade, fazendo da morte, momento máximo de abandono e de comunhão.
Interessante notar a ambiguidade do termo abandono. Pode significar tanto o
sentimento de estar só, quanto o próprio desapegar-se de si mesmo, confiando-se
ao totalmente Outro. A morte, pensada pelos dois sentidos do abandonar-se, é a
expressão radical da fragilidade do existir.
Aqui, recordamos
os inúmeros esforços da Tanatologia, que tem crescido consideravelmente, em
vista de pensar os temas acerca da finitude da vida, mas, sobretudo, sobre a
qualidade de vida dos enfermos terminais. É um bonito trabalho, no qual aqueles
que já se encontram no limite da vida, são assistidos de modo que possam gozar
com qualidade de seus últimos instantes.
Entretanto, todos
estes e outros esforços, não são capazes de livrar o ser humano do sentimento
de abandono, na hora da morte. Vale lembrar a máxima popular de que ‘nascemos sozinhos e, sozinhos, morremos’.
Nenhuma abordagem, por mais mística que seja, é capaz de livrar o aspecto
dramático do morrer : ‘Sinto uma tristeza
mortal; ficai aqui e vigiai comigo’ (Mt 26,38). Nenhuma presença, porém, é
capaz de aliviar-nos deste abandono : ‘Não
fostes capazes de vigiar uma hora comigo’ (Mt 26,40).
O Rosto abandonado
da cruz nos ilumina sobre o morrer, como abandono confiante nos braços daquele
que, não sem razão, fez-nos existir. Do profundo grito de abandono, ‘Eloi, Eloi, lemá sabachtáni’ (Mc 15,34),
ecoa-nos a pergunta sobre onde estaria o Pai, que parecia tão próximo e íntimo
do Filho, o abandonado. No ápice do drama humano, é o Espírito quem revela o
lugar onde Deus se encontra : ‘Pai, em
tuas mãos eu entrego o meu espírito’ (Lc, 23,46). O Pai é o próprio lugar
amoroso, no qual o Filho pode depositar sua confiança. Do abandono, Jesus é
conduzido à mais profunda experiência de comunhão.
Morrer,
abandonando-se ao existir amoroso do Pai, é, para nós, associação ao Filho,
sujeito do abandono oblativo e obediente a Deus : ‘Pai, se esta taça não pode passar sem que eu a beba, que se cumpra tua
vontade’ (Mt 26,42). É o próprio Espírito o elo da relação entre o
abandonado e o regaço acolhedor do Pai. Oferecer-se na confiança ao Pai na hora
da morte não é outra coisa, senão momento recapitulador de toda uma existência
orientada para Deus, na liberdade configurada.
A dimensão pascal
e, por isso, trinitária da morte nos permite pensar além da própria morte. ‘Pelo batismo nos sepultamos com ele na
morte, para vivermos uma vida nova, assim como Cristo ressuscitou da morte pela
ação gloriosa do Pai. Pois se fomos enxertados por uma morte como a sua, o
mesmo acontecerá por sua ressurreição’ (Rm 6,4-5). O acontecimento pascal
de Cristo nos coloca diante da possibilidade de um ‘estar com Cristo’ (Fl
1,23). E é à luz do ‘estar com Cristo’,
que nossa esperança de que o morrer não é a realidade última de nossa
existência, tem seu lugar e sua razão de ser : ‘Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos,
dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão’ (1Cor 15,19). Cristo, ‘como primícias dos que morreram’, é o
lugar teológico de nossa esperança na ressurreição.’
[1] Basta que nos lembremos
da emblemática figura da Morte, que perpassa nosso imaginário popular : um
esqueleto, vestido de roupa preta, portando uma foice. Ou, ainda, as
corriqueiras experiências de pessoas que, ao sentirem um calafrio, pronunciam
como a uma oração : ‘Passe a morte, que
estou forte’, como se esta pudesse ser sentida como uma espécie de fantasma
ou espírito.
[2] Cf. Thomas, Louis-Vicent.
Antropologia dela morte : l’Africa e
l’Occidente messi a confronto de um grande antropologo sul terreno più árduo :
il rispetto – o il disprezzo – per l’esistenza umana in tutte le inifinite
forme che assume di fronte ala morte, vero banco di prova dela vita. Italy :
Garzanti, 1976, p. 260. Ver também : Dastur, Françoise. A morte : ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro : DIFEL, 2002 p.
57.
[3] Cf. Dastur, A morte,
p.62.
Fonte :
* Artigo na http://domtotal.com/noticia/1095269/2016/10/a-morte-do-cristao-como-horizonte-trinitario-e-pascal/
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