sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Uma religiosa com a mala

O selo e o carimbo comemorativos do septuagésimo aniversário da canonização de  Francisca Cabrini e a mala de viagem utilizada pela religiosa

 ‘O seu símbolo seria uma mala : sabem-no bem as religiosas do instituto por ela fundado há exatamente 136 anos, que expuseram a sua mala de couro desgastada por causa das numerosas viagens, no museu que lhe dedicaram na casa mãe de Codogno. Porque viajou realmente muito, essa mulher lombarda, frágil e determinada, que dedicou a sua vida para ajudar os migrantes italianos que naqueles anos partiam cheios de esperança rumo às Américas. Francisca Cabrini tinha recebido aquela missão do Papa Leão XIII e para a cumprir tornou-se ela mesma migrante entre os migrantes. Partiu de Génova com sete irmãs em 1889 — ela que não conhecia o mar, precisamente como a maioria das mulheres e dos homens amontoados na terceira classe — e já durante a travessia começou a dar-se conta das terríveis condições em que os migrantes viviam. Assim como eles, pensava que ia encontrar uma acomodação hospitaleira e ajuda, quando chegasse a Nova Iorque, mas uma amarga desilusão estava à sua espera.

O selo e o carimbo comemorativos do septuagésimo aniversário da canonização de Francisca Cabrini e a mala de viagem utilizada pela religiosa

Os padres scalabrinianos que a aguardavam à chegada começaram a dizer que não a esperavam tão cedo, que a sua acomodação ainda não estava pronta. No dia seguinte, depois de ter descansado em condições de sujidade terrível numa hospedaria, foi ter com o arcebispo Corrigan e descobriu que a situação era pior ainda : o prelado ordenou-lhes que voltassem a partir com o mesmo navio porque os católicos irlandeses, dos quais ele mesmo fazia parte, não queriam que religiosas italianas os estorvassem. Com efeito os irlandeses, já estabelecidos na América desde há algumas décadas, deploravam a chegada de outros católicos pobres, sujos, ignorantes como os imigrantes italianos. Nem sequer permitiam que eles entrassem nas suas igrejas.

Esta experiência simplesmente confirmou a Francisca Cabrini quanto a presença delas era necessária. Também ela sem proteção, sem saber uma palavra de inglês, pôs imediatamente mãos à obra para encontrar uma sede digna, apoiantes abastados que financiassem as suas escolas e os seus orfanatos, não obstante fosse necessário enfrentar um muro de dificuldades. Nada ia pelo caminho certo, e tudo parecia conjurar contra o seu projeto : mas ela via nas dificuldades e nas desilusões não tanto obstáculos, quanto provações espirituais para purificar as suas intenções e dar bases mais sólidas ao seu trabalho. «Chegaram aos nossos ouvidos — escrevem as irmãs nas suas memórias — observações e pareceres que, se fossem ouvidos, deveriam por assim dizer destruir a obra e em geral a ideia de praticar o bem aos pobres italianos. Ouvia-se falar também do ódio que aqui existe contra os italianos e as suas escolas, das grandes dificuldades que deveríamos superar, etc. Se a reverenda madre-geral tivesse sido uma mulher de espírito fraco, certamente deveria renunciar a tudo e partir imediatamente». Por sua vez, Cabrini escrevia : «Aqui não suportam a vista dos italianos». Mas, independentemente do que acontecesse, Francisca estava convicta de que, confiando-se de modo completo ao Coração de Jesus, no momento certo, os resultados positivos não teriam faltado: ensinava às irmãs que «a missão deverá proceder muito bem, porque encontra muitas oposições».

Ela movia-se em duas direções : por um lado, visitar os pobres e compreender as suas exigências; por outro, procurar entender a sociedade americana com encontros específicos. Foi naquele período que nasceram os seus grandes amores : pelos pobres italianos ignorantes e vilipendiados, sem proteção e sem ajuda, mas também pela América, um país no qual ela intuiu depressa que havia muitas perspectivas de realização e de abertura para quantos chegavam. Fez-se amar imediatamente pelos americanos em virtude da sua abordagem franca, da sua maneira de ir diretamente ao núcleo das questões, da sua praticidade. Para ela, foi imediatamente claro o caminho para o resgate dos migrantes italianos : transformar um exército de italianos ignorantes e pobres em cidadãos americanos estimados. Assim conseguiu transformar os inimigos — como o arcebispo Corrigan — em patrocinadores, que lhe ofereceram ajuda para a construção dos primeiros orfanatos e para as primeiras escolas. Efetivamente, Francisca não pedia caridade, mas sabia envolver os seus interlocutores, propondo-lhes investimentos em obras de assistência que, graças à sua habilidade de administradora, se tornariam instituições prósperas. Oferece-se dinheiro com mais boa vontade a quantos demonstram que sabem fazer bom uso do mesmo. As suas obras, nas quais as dimensões caritativas se faziam acompanhar sempre de serviços a pagamento, eram geridas como empresas e portanto, possivelmente, também deviam produzir lucro, que era imediatamente investido noutras fundações.

Este tipo de inserção na sociedade americana, inicialmente quase desprovida de coberturas institucionais e de fundos, era muito semelhante àquela que viviam os migrantes, e esta experiência foi-lhe preciosa na invenção de estratégias de ajudas destinadas a eles. Como revelam as palavras pronunciadas numa entrevista ao diário «The Sun», poucos meses depois da sua chegada : «O nosso objetivo consiste em arrancar os órfãos italianos da cidade da miséria e dos perigos que os ameaçam, e transformá-los em homens bons».

Com efeito, a madre Cabrini elabora um modelo de integração para os imigrantes — um modelo que ela mesma seguirá, a qual em 1909 receberá a cidadania americana, como naturalmente as suas irmãs — segundo o qual a nova identidade americana podia conviver com a originária italiana, graças à pertença à religião católica. Na sua opinião, era exatamente a universalidade do catolicismo que garantia a continuidade entre a situação de partida e a de chegada.

Não obstante a vida para os italianos e para os católicos em geral fosse bastante árdua, Francisca compreende no novo mundo as reais possibilidades de afirmação e de inserção, vê o lado positivo da liberdade e da coexistência de diferentes religiões, garantia de uma tolerância que a Europa, enferma de intolerância anticlerical, já não lhe assegurava.

De cada uma das casas por ela fundada tinha início uma rede de iniciativas a favor do bairro, que abrangia a escola paroquial e a visita às famílias. As religiosas não apenas distribuíam alimentos e roupas aos mais necessitados, mas também encorajavam o batismo das crianças, a regularização dos casamentos na igreja e o retorno à prática da religião católica. Os imigrantes em dificuldade sabiam que podiam entrar em contacto com o convento para solicitar a sua ajuda, sabiam que as religiosas teriam auxiliado os desempregados a encontrar um trabalho, assistido as crianças sem uma família e assegurado a assistência legal às famílias pobres que precisassem disto. Se fosse necessário, elas ajudavam também aqueles que desejavam repatriar. Em cada instituto havia uma secretária para ajudar os imigrantes a escrever aos familiares, a efetuar os procedimentos burocráticos e a manter os contactos com as instituições do país de origem. As modalidades de intervenção mudavam em conformidade com as necessidades e as características do lugar de estabelecimento. Por exemplo em New Orleans, onde um desagradável episódio de violência tinha gerado uma onda de espírito anti-italiano, a madre conseguiu recuperar a estima e a admiração dos cidadãos apaixonados pela música, fazendo cantar Verdi durante uma procissão.

A sua estratégia previa que se usasse o italiano com os imigrantes : eram em italiano os serviços religiosos e as representações teatrais das escolas, assim como italiano era o pessoal dos hospitais e, parcialmente, o ensino nas escolas. Mas a sua preocupação constante foi garantir em cada escola um bom ensino na língua local, para favorecer a inserção.

As religiosas ocupavam-se também dos encarcerados, o grupo mais desventurado dos imigrantes italianos : «Era um espetáculo comovedor ver mais de cem homens entregues a todos os vícios pender dos lábios de uma religiosa humilde, aprender aquilo que talvez sempre tinham ignorado, levantar objeções e perguntar para compreender melhor e saber mais», escreve uma irmã cabriniana.

Quer se tratasse de minas ou de prisões, a madre Cabrini não teve medo de enviar as suas irmãs — armadas unicamente com a sua caridade — para lugares terríveis, onde poucas mulheres teriam ousado ir. O hábito religioso nem sempre constituía uma defesa, mas elas conseguiam fazer-se aceitar por aqueles desventurados falando-lhes em italiano, com docilidade, e mostrando com simplicidade e paciência um interesse sincero pelas suas almas. Para muitos mineiros ou encarcerados, a voz das religiosas e o seu sorriso constituíam o primeiro contato humano depois de meses de humilhações e de canseiras, de isolamento e de desespero. A sua finalidade consistia em dar dignidade e esperança também àquelas franjas de desesperados, para os quais a emigração tinha sido uma derrota.

Nalguns casos, as irmãs cabrinianas conseguiram até obter a revisão de processos, com resultado favorável para os condenados, penalizados por desconhecerem a língua inglesa, o que não lhes permitia defender-se.

Para abrir uma escola, um orfanato, um hospital, destinados aos imigrantes, a madre Cabrini escolhia sempre lugares bonitos, edifícios espaçosos e luminosos, possivelmente circundados por amplos espaços verdes. Assim, os últimos tornavam-se os primeiros. Mas desta forma desejava também dissipar as vozes negativas que pesavam sobre a comunidade italiana, tornando-a pouco aceite e escassamente estimada pelos outros grupos étnicos, sobretudo pelos irlandeses. Os edifícios bonitos, o estilo com o qual preparava as festas de inauguração, para as quais eram convidadas as autoridades religiosas e civis, para saborear as especialidades italianas e ouvir a música lírica, contribuíram não só para fortalecer a sua fama de mulher empreendedora de valor, mas inclusive para melhorar a imagem dos italianos.

Muitas vezes na preparação dos edifícios para o novo destino assistencial, ela teve que combater com bairros inteiros, que não queriam que um estabelecimento dedicado aos migrantes italianos diminuísse o valor imobiliário das casas. Em Chicago, para a obrigar a mudar de ideia, sabotaram o hospital em construção, mas Francisca não renunciou ao seu projeto; ao contrário, decidiu fazer entrar imediatamente os doentes : «Não acho que os nossos inimigos queiram chegar a ponto de queimar vivos os enfermos». E os acontecimentos deram-lhe razão. Em Seattle, superou todas as dificuldades que lhe foram impostas e conseguiu transformar um hotel de luxo num hospital maravilhoso.

Os movimentos migratórios, que na época da madre Cabrini diziam respeito acima de tudo aos europeus mais pobres que partiam para as Américas, hoje dizem respeito a todos os países do Terceiro Mundo, e a Europa, de base de partida, tornou-se terra de chegada. Mas Francisca Cabrini já tinha vislumbrado no migrante o homem novo : sem raízes, sem mais pertenças religiosas ou de pátria, agora ele deve construir a própria identidade e a sua vida. A emigração tornou-se o problema do nosso tempo, e precisamente por isso a santa falecida há quase cem anos, em 1917 em Chicago, é hoje mais atual e mais importante do que nunca.’


Fonte :

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Mulheres e meninas, as maiores vítimas do tráfico de pessoas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Resultado de imagem para trafico de orgãos no mundo

 ‘Mulheres e meninas representam 71% das vítimas do tráfico de pessoas, uma forma de ‘escravidão moderna’ que atinge também crianças, um terço dos casos.

O Papa Francisco, repetidas vezes, definiu o tráfico de pessoas como ‘uma chaga’ dos tempos modernos. Em agosto deste ano, visitou a Comunidade João XXIII, em Roma, que acolhe 30 jovens que foram vítimas da prostituição e tráfico de pessoas.

A denúncia faz parte do Informativo Global sobre Tráfico de Pessoas 2016 do Escritório da ONU contra a Droga e o Delito (ONUDD), divulgado em Viena, com base nos relatos de quase 63 mil vítimas, entre os anos de 2012 e 2014, em mais de cem países.


Modalidades do tráfico

O tráfico de pessoas consiste em transportar e reter um pessoa pela força ou coerção, com o fim de explorá-la, não somente com fins de trabalho ou sexuais, mas também para mendigar ou, até mesmo, para o tráfico de órgãos ou matrimônios forçados.

A exploração sexual e o trabalho forçado seguem sendo as modalidades mais detectadas de tráfico, porém as vítimas também sofrem com o tráfico para a mendicância, os matrimônios forçados, as fraudes nos serviços públicos, ou a pornografia’, explica Yuri Fedotov, Diretor Executivo da ONUDD.

O relatório indica que em 54% dos casos, a exploração sexual é o delito mais comum, sendo observada no entanto uma tendência à diminuição desde 2007.

Enquanto as mulheres e meninas representam a maior parte das vítimas de abusos sexuais ou matrimônios forçados, para os homens e meninos a maior incidência é de exploração no trabalho (85% dos casos), principalmente na indústria da mineração, da pesca ou como soldados.


Exploração infantil

A exploração infantil também varia segundo as regiões e continentes, revela o relatório da ONU. Enquanto a média global em relação à exploração de menores gira em torno dos 30%, na África subsaariana este percentual aumenta para 64% e na América Central e Caribe, 62%.


Impunidade

As máfias por trás do tráfico ganham cerca de 32 milhões de dólares anuais. Os baixos índices de condenação, segundo a ONU, não fazem outro que incentivar este tipo de crime.

A maioria das pessoas condenadas por tráfico são homens (seis em cada dez) e geralmente são do mesmo ambiente das vítimas, o que é essencial para ganhar a sua confiança, embora exista, cada mais uma vez, grandes variações regionais. Na Europa de Leste 54% dos supostos traficantes investigados são mulheres e na África Subsaariana representam metade dos suspeitos.

O relatório revela que as mulheres tem uma maior taxa de condenação pelo tráfico de pessoas em relação a outros delitos e aponta também que, em alguns casos, as próprias vítimas passam a fazer parte de uma organização criminosa, cooptando novas mulheres e meninas.

A ONU alerta não existir nenhum país imune ao tráfico e que somente na Europa Ocidental foram detectadas vítimas oriundas de 137 países. A ONU chama a atenção, ademais, para o fato de que os dados documentados no informe representam somente ‘a ponta do iceberg’.


trafico de pessoas

Guerras, migrações e pobreza

O documento não arrisca um número global de pessoas afetadas por este crime contra os direitos humanos, limitando-se a analisar estes 63.000 casos documentados nos últimos dois anos, embora o próprio Fedotov disse em mais de uma ocasião que as vítimas totalizaram ‘milhões’.

No relatório, o Diretor Executivo do ONUDD destacou a ligação entre a presença de grupos armados e o tráfico de pessoas, que muitas vezes exploram sexualmente mulheres e enviam os homens para o trabalho forçado ou para combater.

As pessoas que fogem de guerras e perseguição são particularmente vulneráveis ao tráfico’, ressaltou Fedotov no relatório, recordando que os atuais movimentos migratórios e de refugiados são os maiores no mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Outros fatores que aumentam a vulnerabilidade a este tipo de crime é o crime organizado e a pobreza.


Penalização do tráfico

O relatório também detalha que houve avanços significativos nos últimos anos : se em 2003 apenas 18% dos países penalizava o tráfico, agora são 85%, um total de 158 países. Também foi ampliado o espectro do delito, já que as forças de segurança de muitos países agora detectam melhor os casos de trabalhos forçados ou exploração no trabalho.

No entanto, novamente voltam a existir grandes diferenças entre os países, e os Estados mais pobres são aqueles que têm mais dificuldades para garantir uma investigação e proteção adequada às vítimas. Nesse sentido, a ONU afirma que o grau de impunidade por este crime continua a ser elevada, em parte devido à investigação deficiente para resolver um crime transnacional tão complexo.

O documento salienta que são necessários mais recursos para identificar e ajudar as vítimas, assim como para melhorar as ações do sistema de justiça para investigar e processar os responsáveis.’


Fonte :


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O sagrado dever da hospitalidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Resultado de imagem para hospitalidade cristã
*Artigo de Faustino Teixeira,
professor de Pós-Graduação em Ciência da Religião
(Universidade Federal de Juiz de Fora),
pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. 
É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana.


‘A hospitalidade envolve uma ‘dádiva de si’, tendo uma grande familiaridade com a abertura ao outro e ao diálogo. No campo das religiões, a hospitalidade ganha um significado essencial. A acolhida ocorre no ‘solo sagrado’ do outro, implicando um gesto magnífico, que coloca o sujeito diante de um risco preciso, que revolve toda a sua autocompreensão. A hospitalidade não traduz apenas a maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um ‘estranho’ que bate à nossa porta. Há uma dimensão de tensão ou mesmo altercação na relação que se estabelece. O desafio já começa na soleira da porta, ‘naquela porta à qual se bate e que vai abrir um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos, entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é a etapa decisiva semelhante a uma iniciação’. [1]

O caminho que se abre pode ser o diálogo, que começa a ocorrer quando a recepção se dá de forma sutil, delicada, cuidadosa e amorosa. Há que bater ‘devagar’ na porta do outro, sem muito ruído, de forma a favorecer um intercâmbio vital. Entrar no novo circuito envolve ‘renunciar a se impor’, mantendo delicadamente o direito à diferença, a preservação de certa distância. O caminho é tortuoso, e exige escuta e paciência. Há que buscar por todos os meios quebrar as amarras da violência que estão implícitas em toda dinâmica da hospitalidade. É um mundo novo que se anuncia, exigindo delicadeza e cuidado. Daí ser o diálogo uma frágil ‘zona de passagem’, de ‘aventura, espanto e inquietação’. [2]

O diálogo é uma ‘cartografia inacabada’, que vai se tecendo com as linhas da humildade e generosidade. Os interlocutores são convidados a alçarem o olhar, vislumbrarem novos patamares de significado, refletirem sob nova luz. Aí pode então ocorrer o milagre de um encontro, que preserva simultaneamente o autorrespeito genuíno e a autoexposição ao outro. No cerne do diálogo está uma acolhida, está a presença de um rosto que convida, de um olhar que indaga e provoca o mover dos lábios.

São inúmeros e exemplares os casos de exercício dialogal, de realização de uma hospitalidade sagrada, como a de buscadores que se inserem nas inúmeras tradições espirituais. Nos diversos itinerários, o diálogo encarna a virtude maior entre as culturas : a hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz (...). [3]

O diálogo comporta algo mais que uma interlocução humana, vai além, e traduz um ‘ato religioso’, na medida em que evoca um Mistério maior. Indica o traço contingente que habita em qualquer experiência religiosa particular. Suscita indagação, abertura permanente, ou como mostra Gadamer [4], expansão da individualidade. O que se busca, intensivamente, é a verdade que habita na dinâmica mesma da sinfonia do encontro. Disse a respeito Montaigne [5] : ‘Eu festejo e acaricio a verdade em qualquer lugar que a encontrar, e para lá me dirijo alegremente, e lhe estendo minhas armas vencidas, de longe, assim que a vejo se aproximar (...)’. [6]

São ricos os exemplos de buscadores que viveram intensamente a prática da hospitalidade [7]. No âmbito do cristianismo, e em particular no diálogo com o islã, aparecem figuras notáveis como Louis Massignon [8] (1883-1962), que abraçou com vigor esse tema, fazendo dele a ária de sua vida. Para ele, a hospitalidade envolvia uma saída de si mesmo, uma ‘expatriação interior’ para poder assumir o outro com alegria e gratuidade. Entendia que o verdadeiro encontro com o outro não acontece mediante o caminho de sua anexação, mas no deixar-se hospedar por ele. O caminho indicado é o do coração, que é o lugar privilegiado de acesso ao ‘segredo divino’. Hospitalidade, Misericórdia e Compaixão são palavras que se irmanam. Assumir a hospitalidade é deixar-se tomar pelo apelo solene dos Abdâl, ou seja, daqueles que foram escolhidos por Deus para sanar as feridas do mundo mediante o dom de si. Foi desta palavra, Abdâl — plural de badal —, que Massignon tirou a inspiração para a sua experiência espiritual mais forte, a Badaliya, um mosteiro espiritual, uma comunidade de pessoas dedicadas ao caminho da oferta ao islã.


Experiência comunitária

Há também o exemplo precioso de Christian de Chergé [9] (1937-1996), o monge-mártir de Tibhirine (Argélia). No compromisso assumido pela comunidade trapista com os irmãos muçulmanos da região algo de maravilhoso aconteceu, como passo de gratuidade e hospitalidade. Os laços comunitários que se estabeleceram naquela difícil região foram tratados de forma singela no filme de Xavier Beauvois [10], Homens e deuses [11] (2010), num envolvimento amoroso, de compromisso e entrega excepcionais. Para Chergé, a dinâmica de hospitalidade era o horizonte da experiência comunitária, algo central para ele. Dizia não haver fronteiras de tempo ou espaço para o exercício do amor e da misericórdia. Uma acolhida marcada pela pura gratuidade, como um dom que não implica reciprocidade. Ele dizia que essa acolhida brota límpida do coração do evangelho, daí o desafio de ‘aprender a exercê-la sem exigir reciprocidade, em nome Daquele que veio a nós gratuitamente’. [12]

Os exemplos de dedicação à hospitalidade falam muito mais forte que as teorias a respeito, não há dúvida sobre isso. Nesse percurso de dedicação à alteridade pode ainda ser lembrado o nome de Serge de Beaurecueil [13] (1917-2005). Foi um frade dominicano que dedicou sua vida a essa aventura de amor aos amigos muçulmanos. Na trilha de outros buscadores, pôde perceber que há sempre a presença de um outro a desvelar facetas inéditas do Mistério sempre maior. Foi assim que, partindo de uma grande devoção à mística sufi, encontrou o caminho do serviço junto aos meninos de Cabul, no Afeganistão. Dizia que no momento derradeiro, a pergunta essencial vai incidir não sobre a religião abraçada, mas sobre o movimento de ‘partilha do pão e do sal’. Um passo essencial para a sua conversão espiritual ocorreu numa situação cotidiana, de convivência com um dos meninos da região, Ghaffâr, que favoreceu sua ampliação olhar. Num certo dia, o garoto disse : ‘Você aceitaria que eu fizesse uma refeição em sua casa e depois viesse lanchar na minha? Poderíamos assim partilhar o pão e o sal, o que sela entre nós a amizade, a união dos destinos’. Esse menino morreria pouco tempo depois, num acidente automobilístico. O gesto acenado pelo garoto ganhou um significado sacramental para o dominicano, com notáveis irradiações. Num de seus livros, dirá :

Ghaffâr, sem dúvida alguma, favoreceu-me a chave de compreensão. Estava aqui para partilhar a vida dos afegãos na banalidade de seus acontecimentos cotidianos, e simplesmente partilhar o alimento... Uma tal partilha ligou meu destino ao deles, selando o direito de intercessão — tão caro a Louis Massignon — consagrando um traço de união entre Cristo e eles, instrumento silencioso da graça. [14]

A hospitalidade firma-se, assim, como algo precioso, com valor sagrado, que estabelece laços entre aqueles que buscam crescer na experiência do Mistério e da busca do sentido. Hoje, porém, surge um desafio novo, que é entender as teias largas da hospitalidade, que não se reduz à acolhida dos outros humanos, mas que rasga o conceito tradicional de ‘nós’, de forma a abrigar todos os seres da criação, no respeito essencial aos seus direitos característicos. Abraçar a hospitalidade ganha um significado muito especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com sentido, acolhendo a ‘textura do mundo da vida’. Não há mais dois mundos antagônicos, em que sociedade e natureza estão divididos, mas uma única malha tecida por trilhas diferenciadas, mas sempre relacionadas. Supera-se a dicotomia entre o organismo (aqui) e o ambiente (lá), e o ser humano se dá conta, finalmente, que é parte do vivente e não mais o umbigo do mundo. O habitar a Terra ganha assim um significado novo e alvissareiro, e o ser humano vem inserido ‘no interior da continuidade do mundo da vida’. [15]


Espiritualidade ecológica

O Papa Francisco se deu conta desse desafio inaugural em sua carta encíclica Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum [16]. Parte da ideia essencial de que todos os seres humanos são terra, e que os elementos de seu corpo são constituídos pelos ‘elementos do planeta’ (LS 2). Na pauta de sua reflexão, o desafio de uma ‘nova solidariedade universal’, que parte da consciência de que tudo na Terra está interligado, e que todos os seres criados precisam uns dos outros. Novos laços são tecidos, unindo a humanidade com a animalidade, com a vegetalidade e a mineralidade, numa consciência comum da dignidade de cada criatura. Indica a urgência de uma ‘espiritualidade ecológica’, uma ‘conversão ecológica’ (LS 216 e 217) voltadas para o exercício comum de recuperação de uma harmonia serena com a criação. O Universo inteiro está animado pela dinâmica espiritual : ‘Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre’ (LS 233).

A hospitalidade ganha assim uma tessitura nova e exigente, que sem desconsiderar os passos da acolhida ao outro humano, distinto, vem agora enriquecida com uma dimensão novidadeira, que delineia os passos essenciais do significado mais profundo do habitar espiritualmente a Terra.’


Fonte :

------------------------
1 - Alain Montandon. Espelhos da hospitalidade (prefácio). In: _. Ed. O livro da hospitalidade. São Paulo : Senac, 2011, p. 32.

2 - Marco Lucchesi. Guerras de religião? O Globo. 03/12/2014. (Nota do autor)

3 - Ibidem. (Nota do autor)

4 - Hans-Georg Gadamer : filósofo alemão, autor de Verdade e método (Petrópolis : Vozes, 1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18-3-2002, Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, disponível em http://migre.me/DtiK. (Nota da IHU On-Line)

5 - Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) : escritor e ensaísta francês, considerado por muitos o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos seus ‘Ensaios’, analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo. (Nota da IHU On-Line)

6 - Apud Magali Bessone. Do eu ao nós. In. Alain Montandon (Ed.). O livro da hospitalidade, p. 1270. (Nota do autor)

7 - Ver : Faustino Teixeira. Buscadores cristãos no diálogo com o islã. São Paulo : Paulus, 2014. (Nota do autor)

8 - Louis Massignon (1883-1962) : escritor e católico francês perito no Islã. (Nota do IHU On-Line)

9 - Charles-Marie Christian de Chergé (1937-1996) : monge cisterciense francês. Prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, na Argélia, foi raptado, juntamente com mais seis monges, na noite de 26 para 27 de março de 1996, por um grupo de 20 homens do Grupo Islâmico Armado. Levaram sete monges prisioneiros, incluindo o Irmão Bruno, um visitante de Fès, em Marrocos. Dois monges não foram localizados pelos captores. Uma mensagem do GIA anunciou que os sete monges tinham sido decapitados em 21 de maio de 1996. (Nota da IHU On-Line)

10 - Xavier Beauvois (1967) : ator, diretor e escritor francês. Uma de suas produções é Homens e deuses, exibida como parte da programação do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012 no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. (Nota da IHU On-Line)

11 - Homens e deuses: Des hommes et des dieux, filme francês de 2010, de gênero dramático, dirigido pelo cineasta Xavier Beauvois, exibido como parte da programação do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012. Sobre esse filme, confira a entrevista concedida pelo monge trapista Xavier Beauvois à edição 387 da IHU On-Line, de 26-3-2012, intitulada A Igreja feita de homens e de deuses, disponível em http://bit.ly/1A30RlK. (Nota da IHU On-Line)

12 - Christian de Chergé. L´invencible esperance. Paris : Bayard, 2010, p. 206. (Nota do autor)

13 - Serge de Beaurecueil (1917-2005) : um dos membros fundadores do Instituto Dominicano de Estudos Orientais (IDEO), no Cairo. Começou suas pesquisas em mística muçulmana. Em 1963 assumiu uma cátedra de história da mística muçulmana na Universidade de Cabul. (Nota da IHU On-Line)

14 - Serge de Beaurecueil. Me enfants de Kaboul. Paris : Cerf, 2004, p. 65. (Nota do autor)

15 - Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis : Vozes, 2015, p. 26. (Nota do autor)


16 - Papa Francisco. Laudato si’. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. (Nota do autor)

sábado, 24 de dezembro de 2016

Natal segundo Santo Agostinho

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘Com os sermões agostinianos sobre o nascimento do Senhor é possível reconstruir um presépio que recorda as reflexões do Santo sobre o mistério de sua aparição humana neste nosso mundo. É um presépio teológico ou cristológico onde a presença de Deus ilumina tudo, ao mesmo tempo em que projeta sombras profundas : Um mirante de grandes contrastes e paradoxos.

Vejam! O Criador do ser humano se fez homem para que, Aquele que governa do mundo sideral, se alimentasse de leite; para que o Pão tivesse fome; para a Fonte tivesse sede, a Luz adormecesse, o Caminho se fatigasse na viagem, a Verdade fosse acusada por falsos testemunhos, o Juiz dos vivos e dos mortos fosse julgado por um juiz mortal, a Justiça fosse condenada pelos injustos, a Disciplina fosse açoitada com chicotes, o Cacho de uvas fosse coroado de espinhos, o Alicerce fosse pendurado no madeiro; para que a Virtude se enfraquecesse, a Saúde fosse ferida e morresse a própria Vida’ (Sermão 191,1: PL 38,1010).

Na dialética, Santo Agostinho quer que os cristãos subam do temporal ao eterno, do mundo visível ao invisível : «Jesus jaz no presépio, mas leva as rédeas do governo do mundo; toma o peito, e alimenta aos anjos; está envolto em panos, e veste a nós de imortalidade; está mamando, e o adoram; não encontrando lugar na pousada, fabrica seus templos nos corações dos crentes. Para que se fortalecesse a debilidade, se debilitasse a fortaleza... Assim, acendemos nossa caridade para que alcancemos a sua eternidade». (Sermo 190,4: PL 38,1009).


Humildade de Cristo

De maravilha em maravilha, de paradoxo em paradoxo, Santo Agostinho retorna sempre à humildade de Deus, motivo de tanto escândalo para os pagãos :

«A humildade é ela mesma que se lança ao rosto dos pagãos. Por isso nos insultam e dizem : Que Deus é esse que adorais? Um Deus que nasceu? Que Deus adorais? Um Deus que foi crucificado? A humildade de Cristo desagrada aos soberbos; mas se a ti, cristão, agrada, imita-a; se a imitas, não trabalharás, porque Ele disse: Vinde a mim todos vós que estais sobrecarregados». (Enarrat. in ps. 93,15: PL 37,1204).

A doutrina da humildade é a grande lição do mistério de Belém : «Considera, homem, o que Deus se fez por ti; reconhece a doutrina de tão grande humildade mesmo em uma criança que não fala» (Sermo 188, 3: PL 38,1004).


A Mãe Virgem e a Igreja jubilosa

Juntamente com o Filho de Deus e sua Mãe sempre virgem, no presépio agostiniano está presente a Igreja, ou a humanidade inteira que salta de júbilo.

A todos deve contagiar a alegria do nascimento : «Saltem de júbilo os homens, saltem de júbilo as mulheres; Cristo nasceu varão e nasceu de mulher, e ambos os sexos são honrados nEle. Pulai de prazer, santos meninos, que escolhestes principalmente a Cristo para imitar no caminho da pureza; brincai de alegria, virgens santas; a Virgem deu à luz para vós para desposar-vos com Ele sem corrupção. Dai mostras de júbilo, justos, porque é o natalício do Justificador. Fazei festas vós os fracos e enfermos, porque é o nascimento do Salvador. Alegrai-vos, cativos; nasceu vosso redentor. Alvoroçai-vos, servos, porque nasceu o Senhor. Alegrai-vos, livres, porque é o nascimento do Libertador. Alegrem-se os cristãos, porque nasceu Cristo» (Sermo 184,2: PL 38,996).

A alegria, pois, tem uma expressão de transbordamento incontido no presépio de Santo Agostinho para todo tipo de pessoas. Toda a humanidade participa desta alegria : «Todos os graus dos membros fiéis contribuíram para oferecer à Cabeça o que por sua graça puderam levar» (Sermo 192,2: PL 38,1012).


Epifania do Senhor

Ainda que o nome de Epifania seja reservado hoje para a festividade dos Magos, inicialmente compreendia as duas festas do nascimento e da adoração dos Magos, porque os «dois dias pertencem à manifestação de Cristo» (Sermo 204,1: PL 38,1037). Primeiro se manifestou visivelmente em sua carne aos judeus, e logo a seguir aos gentis, representados pelos Magos do Oriente. Desde então, o recém nascido começou a ser pedra angular da profecia onde se juntavam as duas paredes, os judeus e os gentis.

Os grandes paradoxos de Belém continuam neste mistério : «Quem é este Rei tão pequeno e tão grande, que não abriu ainda a boca na terra, e está já proclamando editos no céu?» (Sermo 199,2: PL 38,1027). O mistério do Menino Deus se enriquecia de novas luzes : «Jazia no presépio, e atraia aos Magos do Oriente; se ocultava em um estábulo, e era dado a conhecer no céu, para que por meio dele fosse manifestado no estábulo, e assim este dia se chamasse Epifania, que quer dizer manifestação; com o que recomenda sua grandeza e sua humildade, para que quem era indicado com claros sinais no céu aberto, fosse buscado e encontrado na ‘angustura’ do estábulo, e o impotente de membros infantis, envolto em panos infantis, fosse adorado pelos Magos, temido pelos maus» (Sermo 220,1: PL 38,1029)’.


Fonte :


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal : a humanidade divinizada

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Filho de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano.
*Artigo de Jaldemir Vitório, SJ, 
mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico 
e doutor em Teologia pela PUC do Rio de Janeiro

  
‘A comercialização do Natal lançou densa nuvem sobre o sentido litúrgico e espiritual de um tema fundamental da fé cristã : o Mistério da Encarnação. A sociedade de consumo, alavancada pela publicidade, transformou o período natalino em fonte de lucro. E o avalia como bom ou ruim pelo parâmetro econômico. Por conseguinte, o Natal se identifica com comida e bebida, trocas de presentes, enfeites das casas, comemorações carregadas de sentimentalismo vazio e muitas outras exterioridades, descomprometidas com o Evento que está na origem de tudo aquilo, o nascimento de Jesus de Nazaré.

Subjacente ao clima contagiante de fraternidade, a comover até corações duros, está o paradoxo de se deixar fora da festa aquele a quem se festeja. Estando Jesus excluído, seu lugar é ocupado pelo Papai Noel, cuja imagem onipresente de velhinho bonachão coloca o homenageado de escanteio, relegando-o ao esquecimento. O caridoso São Nicolau (séc. III-IV), que está na origem da tradição de distribuir presentes às crianças, foi recriado pela publicidade da Coca-Cola e introjetado no imaginário infantil. O Menino Jesus e o presépio estão fora de cogitação, quando o tema é o Natal dos publicitários, dos comerciantes e dos consumidores.

Outra vertente do paradoxo natalino diz respeito à contaminação das consciências de pessoas autodenominadas cristãs e, até mesmo, engajadas em instituições eclesiais. O poder de convencimento da mídia anestesia-lhes as consciências, nivelando-as com quem está longe de se declarar cristão e abraçar o ethos evangélico como projeto de vida. As celebrações natalinas da sociedade de consumo colocam no mesmo patamar, sem qualquer distinção, muitos que, da boca para fora, professam ser discípulos e discípulas de Jesus e quem está, simplesmente, interessado em comer, beber e festejar. Triste destino do projeto de Jesus de Nazaré!

A beleza do Natal cristão alicerça-se na correta compreensão de um versículo lapidar do evangelho de João : ‘O Verbo fez-se carne e armou sua tenda entre nós!’ (Jo 1,14). A primeira parte da afirmação aponta para algo de extrema relevância, qual seja o encontro da transcendência e da imanência, do divino e do humano, da eternidade e da história, do absoluto e do relativo no advento de Jesus de Nazaré, em quem ‘o Verbo se fez carne’. Paralelamente ao processo de humanização da divindade, acontece a divinização da humanidade. Tal convergência do humano e do divino abre perspectivas insuspeitadas de interpretação de Gn 1,27 : ‘Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou’, onde ambas as dimensões se fazem presentes na intenção do Criador.

A metáfora da segunda parte do versículo joanino sublinha a dinâmica do Mistério da Encarnação, feita de simplicidade, de escondimento e de pobreza. ‘Armar a tenda’ evoca provisoriedade, fragilidade e, sobretudo, solidariedade. O Verbo que se faz carne, jamais, será refém de estruturas imponentes e sólidas, sem dinamismo histórico, descoladas da caminhada do Povo de Deus. A tenda, pelo contrário, favorece a mobilidade, de modo a se poder estar onde está a humanidade carente de salvação, em sua eterna peregrinação. Ela permite ao Verbo ser, de fato, ‘Emanuel’, na vida das comunidades de fé, em marcha, rumo à comunhão definitiva com o Pai. O Verbo peregrino recusa-se a se tornar refém e se deixar enquadrar em dogmas e esquemas caducos. Ele é livre para armar e desarmar sua tenda para estar onde a humanidade clama pela misericórdia do Pai.

O texto joanino exige pensar a antropologia cristã em perfeita sintonia com a cristologia. Em outras palavras, o evento Jesus de Nazaré torna-se referência para se falar da humanidade. Assim, quanto se afirma dele, se desdobrará nas afirmações a respeito de qualquer ser humano. Um imenso desafio a ser enfrentado diz respeito ao descompasso instaurado entre antropologia e cristologia. Uma cristologia em tom maior, exaltando a divindade de Jesus e seu total enraizamento em Deus, contrapõe-se a uma antropologia em tom menor, que acusa o ser humano de pecador e considera a humanidade massa damnata, ‘gemendo e chorando neste vale de lágrimas’. A superação do descompasso acontece na perfeita convergência entre antropologia e cristologia, ambas feitas em tom maior, recusando-se a ver o ser humano pelo avesso. A humanidade e a divindade de Jesus de Nazaré encontram-se em cada ser humano, ‘imagem e semelhança de Deus’.

O tempo litúrgico do Natal convida-nos a recuperar a dignidade de cada ser humano, ao detectar a divindade que carrega dentro de si. A antropologia cristã de viés positivo poderia ser uma porta aberta para a superação do pessimismo que distorce a visão de muita gente, levando-as a rotular o semelhante de maneira incompatível com os anseios do Criador. Se fôssemos capazes de vislumbrar o divino que existe no mais íntimo de nós e no mais íntimo do nosso próximo, com certeza, estaríamos aptos para construir o mundo mais justo, humano e fraterno, ansiado por todos.

Por outro lado, o Natal confronta-nos com a enorme responsabilidade de reverter o processo de desconstrução da civilização, que caminha a passos de gigante e se torna visível, mormente, na banalização da vida e no desrespeito aos direitos humanos elementares. A recordação do nascimento de Jesus de Nazaré estimula as pessoas de boa-vontade a se empenharem, de corpo e alma, no restabelecimento da dignidade humana aviltada, para que, nelas, brilhe luminoso o clarão da divindade que carregam dentro de si. Ao se fazer humanidade e habitar entre nós, o Filho de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano.

Um pensamento lúcido de Santo Atanásio (séc. III-IV) – ‘Deus se fez homem, a fim de que o homem se tornasse Deus’ – ilumina o sentido do Natal. A isso, a teologia oriental chama de théosis, divinização ou deificação do humano. Cada Natal é um convite aos discípulos e às discípulas de Jesus para deixarem transparecer a riqueza da divindade, escondida no mais íntimo de si.’


Fonte :


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Síria : apelo do Patriarca de Antioquia neste Natal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Resultado de imagem para síria gregorio III 2016 natal


‘‘Estamos caminhando por uma estrada de dor e de tristeza, mas também de esperança e de um futuro melhor’. É o que escreve o Patriarca de Antioquia e de todo o Oriente da Igreja greco-católica, Gregório III Laham, que com estas palavras sintetiza sua mensagem com os votos de um Santo Natal para a Síria e dirige um apelo aos que estão fugindo para que fiquem ‘a fim de construir um mundo novo’.

Apesar de toda a dor e a tragédia que estamos assistindo, seja em Damasco, como em Homs ou em Aleppo, a comunidade cristã na Síria se prepara à alegria do Natal, hoje mais do que nunca’, escreve o patriarca.

Para Dom Laham, ‘estamos vivendo um momento de grande desafio e é preciso usar a força do Natal para levar alegria para quem se encontra na tristeza e na dor, para quem perdeu a esperança e percebe não ter mais um futuro’.

Neste Natal – continua ainda o Patriarca – em todas as igrejas onde é possível haverá encontros com orações especiais, missas e vigílias com leituras evangélicas e espirituais’. E acrescenta : ‘Todas as igrejas estão trabalhando para levar um pouco de alegria ás crianças, às famílias dos mártires e dos idosos’.

Este deve ser o compromisso da Igreja com a chegada do Natal : ‘Precisamos fazer todo esforço possível para criar condições a fim de levar alegria ao maior número de pessoas’. 

Por fim Laham expressa toda sua ‘dor’ pelo fato que ‘muitas pessoas foram obrigadas a deixar suas casas e procura refúgio em regiões da Síria, nos Países próximos ou mesmo na Europa. Nós como Igreja – esclarece – somos contra todo tipo de migração, porque isto enfraquece as forças espirituais da sociedade’. Ao mesmo tempo reconhece que ‘não se pode proibir a uma pessoa garantir a sobrevivência dele e de sua família’. Mas aproveita esta mensagem de Natal para mais um apelo : ‘Fiquem! Dizemos a todos? Fiquem para construir um mundo novo após esta crise, precisamos reconstruir nossa nação sobre os alicerces do perdão, da reconciliação e da fraternidade’, conclui Dom Laham.’
  

Fonte :


segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O Natal e seus símbolos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Imagem relacionada
*Artigo de Dom Rodolfo Luís Weber,
Arcebispo de Passo Fundo


‘Estamos refletindo sobre os símbolos de Natal. Recordar porque são símbolos e de onde se originaram permite que mantenham a sua força e seu significado. O Natal já está próximo e há tantos sinais que nos levam a ele.

Certamente o mais significativo dos símbolos natalinos é o presépio. Foi popularizado a partir de São Francisco de Assis, no século XIII. Ele cultivava uma grande veneração às manifestações do amor de Deus para com a humanidade, especialmente a participação na vida humana em suas situações de fraqueza e pobreza. Os atributos de Deus são a grandeza, o poder, a onipotência, mas escolheu vir ao mundo se fazendo pequeno, criança e nascendo entre os animais. Este mistério da encarnação manifesta o amor de Deus e para representá-lo São Francisco inventou o presépio.

Três anos antes de sua morte, São Francisco quis celebrar de modo especial o nascimento de Jesus Cristo. O primeiro biógrafo de São Francisco, Tomás de Celano, descreve os seguintes preparativos : pediu licença ao Papa e depois convidou um homem chamado João, de boa fama e vida ainda melhor, ao qual deu as seguintes recomendações, quinze dias antes do Natal : ‘Se você quiser que nós celebremos no Natal de Greccio, é bom começar a preparar diligentemente e desde já o que eu vou dizer. Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e ver com os próprios olhos como ficou em cima da palha, entre o boi e o burro’. Isto, João preparou.

Quando se aproximou o dia do Natal, Francisco, os confrades e vizinhança, se reuniram. Vieram com tochas, alimentos e celebraram a missa no presépio. De forma simples e solene viveram os fatos de Belém. A iniciativa de São Francisco foi se divulgando e as representações do nascimento através das imagens de Jesus, Maria e José, o boi, o burro, os pastores, as ovelhas e os magos, com seus presentes, foi se tornando um costume comum entre os cristãos.

O canto ‘Noite Feliz’ é um símbolo sonoro. Foi composto em 1818, por F. Gruber, em alemão, na Áustria. Este canto impôs-se como canto de Natal no Brasil, não podendo imaginar-se uma noite de Natal sem ele.

Presentes nas decorações natalinas estão os sinos. São um meio de comunicação. Quantos se lembram, especialmente quem viveu nas cidades menores, da importância dos sinos. Avisam e convidam para as missas. Anunciam a morte de algum membro da comunidade ou ainda são um sinal de alerta. A sua ligação com Natal está em anunciar o nascimento de Jesus Cristo.

A ceia de Natal é a celebração da vida, do amor fraterno e da reconciliação em família. Grandes e felizes acontecimentos vêm acompanhados de festa e da partilha da comida. O Natal reúne e chama a família.

O Papai Noel é o menos cristão dos símbolos do Natal. Pode-se dar um sentido cristão nos presentes do Papai Noel. O grande presente que Deus Pai envia à comunidade, de forma gratuita e generosa, é Jesus Cristo, o Salvador. Este presente faz a verdadeira felicidade. Também é um incentivo à generosidade e à gratuidade. Dar de graça, algo para alguém, educa para o desapego e a partilha.’


Fonte :