*Artigo
de Faustino Teixeira,
professor de Pós-Graduação em Ciência da Religião
(Universidade Federal de
Juiz de Fora),
pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria.
É pós-doutor
em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana.
‘A hospitalidade
envolve uma ‘dádiva de si’, tendo uma
grande familiaridade com a abertura ao outro e ao diálogo. No campo das
religiões, a hospitalidade ganha um significado essencial. A acolhida ocorre no
‘solo sagrado’ do outro, implicando
um gesto magnífico, que coloca o sujeito diante de um risco preciso, que
revolve toda a sua autocompreensão. A hospitalidade não traduz apenas a
maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um ‘estranho’ que bate à nossa porta. Há uma
dimensão de tensão ou mesmo altercação na relação que se estabelece. O desafio
já começa na soleira da porta, ‘naquela
porta à qual se bate e que vai abrir um rosto desconhecido, estranho. Limite
entre dois mundos, entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira
é a etapa decisiva semelhante a uma iniciação’. [1]
O caminho que se
abre pode ser o diálogo, que começa a ocorrer quando a recepção se dá de forma
sutil, delicada, cuidadosa e amorosa. Há que bater ‘devagar’ na porta do outro, sem muito ruído, de forma a favorecer
um intercâmbio vital. Entrar no novo circuito envolve ‘renunciar a se impor’, mantendo delicadamente o direito à
diferença, a preservação de certa distância. O caminho é tortuoso, e exige
escuta e paciência. Há que buscar por todos os meios quebrar as amarras da
violência que estão implícitas em toda dinâmica da hospitalidade. É um mundo
novo que se anuncia, exigindo delicadeza e cuidado. Daí ser o diálogo uma
frágil ‘zona de passagem’, de ‘aventura, espanto e inquietação’. [2]
O diálogo é uma ‘cartografia inacabada’, que vai se
tecendo com as linhas da humildade e generosidade. Os interlocutores são
convidados a alçarem o olhar, vislumbrarem novos patamares de significado,
refletirem sob nova luz. Aí pode então ocorrer o milagre de um encontro, que
preserva simultaneamente o autorrespeito genuíno e a autoexposição ao outro. No
cerne do diálogo está uma acolhida, está a presença de um rosto que convida, de
um olhar que indaga e provoca o mover dos lábios.
São inúmeros e
exemplares os casos de exercício dialogal, de realização de uma hospitalidade sagrada,
como a de buscadores que se inserem nas inúmeras tradições espirituais. Nos
diversos itinerários, o diálogo encarna a virtude maior entre as culturas : a
hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o
quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas
casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz (...). [3]
O diálogo comporta
algo mais que uma interlocução humana, vai além, e traduz um ‘ato religioso’, na medida em que evoca
um Mistério maior. Indica o traço contingente que habita em qualquer
experiência religiosa particular. Suscita indagação, abertura permanente, ou
como mostra Gadamer [4], expansão da
individualidade. O que se busca, intensivamente, é a verdade que habita na
dinâmica mesma da sinfonia do encontro. Disse a respeito Montaigne [5] : ‘Eu festejo e acaricio a verdade em qualquer lugar que a encontrar, e
para lá me dirijo alegremente, e lhe estendo minhas armas vencidas, de longe,
assim que a vejo se aproximar (...)’. [6]
São ricos os
exemplos de buscadores que viveram intensamente a prática da hospitalidade [7]. No âmbito do cristianismo, e em
particular no diálogo com o islã, aparecem figuras notáveis como Louis
Massignon [8] (1883-1962), que
abraçou com vigor esse tema, fazendo dele a ária de sua vida. Para ele, a
hospitalidade envolvia uma saída de si mesmo, uma ‘expatriação interior’ para poder assumir o outro com alegria e
gratuidade. Entendia que o verdadeiro encontro com o outro não acontece
mediante o caminho de sua anexação, mas no deixar-se hospedar por ele. O
caminho indicado é o do coração, que é o lugar privilegiado de acesso ao ‘segredo divino’. Hospitalidade,
Misericórdia e Compaixão são palavras que se irmanam. Assumir a hospitalidade é
deixar-se tomar pelo apelo solene dos Abdâl, ou seja, daqueles que foram
escolhidos por Deus para sanar as feridas do mundo mediante o dom de si. Foi
desta palavra, Abdâl — plural de badal —, que Massignon tirou a inspiração para
a sua experiência espiritual mais forte, a Badaliya, um mosteiro espiritual,
uma comunidade de pessoas dedicadas ao caminho da oferta ao islã.
Experiência
comunitária
Há também o
exemplo precioso de Christian de Chergé [9]
(1937-1996), o monge-mártir de Tibhirine (Argélia). No compromisso assumido
pela comunidade trapista com os irmãos muçulmanos da região algo de maravilhoso
aconteceu, como passo de gratuidade e hospitalidade. Os laços comunitários que
se estabeleceram naquela difícil região foram tratados de forma singela no
filme de Xavier Beauvois [10],
Homens e deuses [11] (2010), num
envolvimento amoroso, de compromisso e entrega excepcionais. Para Chergé, a
dinâmica de hospitalidade era o horizonte da experiência comunitária, algo
central para ele. Dizia não haver fronteiras de tempo ou espaço para o
exercício do amor e da misericórdia. Uma acolhida marcada pela pura gratuidade,
como um dom que não implica reciprocidade. Ele dizia que essa acolhida brota
límpida do coração do evangelho, daí o desafio de ‘aprender a exercê-la sem exigir reciprocidade, em nome Daquele que veio
a nós gratuitamente’. [12]
Os exemplos de
dedicação à hospitalidade falam muito mais forte que as teorias a respeito, não
há dúvida sobre isso. Nesse percurso de dedicação à alteridade pode ainda ser
lembrado o nome de Serge de Beaurecueil [13]
(1917-2005). Foi um frade dominicano que dedicou sua vida a essa aventura de
amor aos amigos muçulmanos. Na trilha de outros buscadores, pôde perceber que
há sempre a presença de um outro a desvelar facetas inéditas do Mistério sempre
maior. Foi assim que, partindo de uma grande devoção à mística sufi, encontrou
o caminho do serviço junto aos meninos de Cabul, no Afeganistão. Dizia que no
momento derradeiro, a pergunta essencial vai incidir não sobre a religião
abraçada, mas sobre o movimento de ‘partilha
do pão e do sal’. Um passo essencial para a sua conversão espiritual
ocorreu numa situação cotidiana, de convivência com um dos meninos da região,
Ghaffâr, que favoreceu sua ampliação olhar. Num certo dia, o garoto disse : ‘Você aceitaria que eu fizesse uma refeição
em sua casa e depois viesse lanchar na minha? Poderíamos assim partilhar o pão
e o sal, o que sela entre nós a amizade, a união dos destinos’. Esse menino
morreria pouco tempo depois, num acidente automobilístico. O gesto acenado pelo
garoto ganhou um significado sacramental para o dominicano, com notáveis
irradiações. Num de seus livros, dirá :
Ghaffâr, sem
dúvida alguma, favoreceu-me a chave de compreensão. Estava aqui para partilhar
a vida dos afegãos na banalidade de seus acontecimentos cotidianos, e
simplesmente partilhar o alimento... Uma tal partilha ligou meu destino ao
deles, selando o direito de intercessão — tão caro a Louis Massignon —
consagrando um traço de união entre Cristo e eles, instrumento silencioso da
graça. [14]
A hospitalidade
firma-se, assim, como algo precioso, com valor sagrado, que estabelece laços
entre aqueles que buscam crescer na experiência do Mistério e da busca do
sentido. Hoje, porém, surge um desafio novo, que é entender as teias largas da
hospitalidade, que não se reduz à acolhida dos outros humanos, mas que rasga o
conceito tradicional de ‘nós’, de
forma a abrigar todos os seres da criação, no respeito essencial aos seus
direitos característicos. Abraçar a hospitalidade ganha um significado muito
especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com
sentido, acolhendo a ‘textura do mundo da
vida’. Não há mais dois mundos antagônicos, em que sociedade e natureza
estão divididos, mas uma única malha tecida por trilhas diferenciadas, mas
sempre relacionadas. Supera-se a dicotomia entre o organismo (aqui) e o
ambiente (lá), e o ser humano se dá conta, finalmente, que é parte do vivente e
não mais o umbigo do mundo. O habitar a Terra ganha assim um significado novo e
alvissareiro, e o ser humano vem inserido ‘no
interior da continuidade do mundo da vida’. [15]
Espiritualidade
ecológica
O Papa Francisco
se deu conta desse desafio inaugural em sua carta encíclica Laudato si’, sobre
o cuidado da casa comum [16]. Parte
da ideia essencial de que todos os seres humanos são terra, e que os elementos
de seu corpo são constituídos pelos ‘elementos
do planeta’ (LS 2). Na pauta de sua reflexão, o desafio de uma ‘nova solidariedade universal’, que parte
da consciência de que tudo na Terra está interligado, e que todos os seres
criados precisam uns dos outros. Novos laços são tecidos, unindo a humanidade
com a animalidade, com a vegetalidade e a mineralidade, numa consciência comum
da dignidade de cada criatura. Indica a urgência de uma ‘espiritualidade ecológica’, uma ‘conversão ecológica’ (LS 216 e 217) voltadas para o exercício comum
de recuperação de uma harmonia serena com a criação. O Universo inteiro está
animado pela dinâmica espiritual : ‘Há um
mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do
pobre’ (LS 233).
A hospitalidade
ganha assim uma tessitura nova e exigente, que sem desconsiderar os passos da
acolhida ao outro humano, distinto, vem agora enriquecida com uma dimensão
novidadeira, que delineia os passos essenciais do significado mais profundo do
habitar espiritualmente a Terra.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.domtotal.com/noticia/1111332/2016/12/o-sagrado-dever-da-hospitalidade/
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1 - Alain Montandon. Espelhos da hospitalidade
(prefácio). In: _. Ed. O livro da hospitalidade. São Paulo : Senac, 2011, p. 32.
2 - Marco Lucchesi. Guerras de religião? O Globo.
03/12/2014. (Nota do autor)
3 - Ibidem. (Nota do autor)
4 - Hans-Georg Gadamer : filósofo alemão, autor de
Verdade e método (Petrópolis : Vozes, 1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos 102
anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line número
9, de 18-3-2002, Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, disponível em http://migre.me/DtiK.
(Nota da IHU On-Line)
5 - Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) : escritor e
ensaísta francês, considerado por muitos o inventor do ensaio pessoal. Nas suas
obras e, mais especificamente nos seus ‘Ensaios’, analisou as instituições, as
opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a
generalidade da humanidade como objeto de estudo. (Nota da IHU On-Line)
6 - Apud Magali Bessone. Do eu ao nós. In. Alain
Montandon (Ed.). O livro da hospitalidade, p. 1270. (Nota do autor)
7 - Ver : Faustino Teixeira. Buscadores cristãos no
diálogo com o islã. São Paulo : Paulus, 2014. (Nota do autor)
8 - Louis Massignon (1883-1962) : escritor e católico
francês perito no Islã. (Nota do IHU On-Line)
9 - Charles-Marie Christian de Chergé (1937-1996) :
monge cisterciense francês. Prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em
Tibhirine, na Argélia, foi raptado, juntamente com mais seis monges, na noite
de 26 para 27 de março de 1996, por um grupo de 20 homens do Grupo Islâmico
Armado. Levaram sete monges prisioneiros, incluindo o Irmão Bruno, um visitante
de Fès, em Marrocos. Dois monges não foram localizados pelos captores. Uma
mensagem do GIA anunciou que os sete monges tinham sido decapitados em 21 de
maio de 1996. (Nota da IHU On-Line)
10 - Xavier Beauvois (1967) : ator, diretor e escritor
francês. Uma de suas produções é Homens e deuses, exibida como parte da
programação do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012 no Instituto Humanitas
Unisinos - IHU. (Nota da IHU On-Line)
11 - Homens e deuses: Des hommes et des dieux, filme
francês de 2010, de gênero dramático, dirigido pelo cineasta Xavier Beauvois,
exibido como parte da programação do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012.
Sobre esse filme, confira a entrevista concedida pelo monge trapista Xavier
Beauvois à edição 387 da IHU On-Line, de 26-3-2012, intitulada A Igreja feita
de homens e de deuses, disponível em http://bit.ly/1A30RlK. (Nota
da IHU On-Line)
12 - Christian de Chergé. L´invencible esperance. Paris :
Bayard, 2010, p. 206. (Nota do autor)
13 - Serge de Beaurecueil (1917-2005) : um dos membros
fundadores do Instituto Dominicano de Estudos Orientais (IDEO), no Cairo.
Começou suas pesquisas em mística muçulmana. Em 1963 assumiu uma cátedra de
história da mística muçulmana na Universidade de Cabul. (Nota da IHU On-Line)
14 - Serge de Beaurecueil. Me enfants de Kaboul. Paris :
Cerf, 2004, p. 65. (Nota do autor)
15 - Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento,
conhecimento e descrição. Petrópolis : Vozes, 2015, p. 26. (Nota do autor)
16 - Papa Francisco. Laudato si’. Sobre o cuidado da
casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. (Nota do autor)
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