*Artigo
de Jaldemir Vitório, SJ,
mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico
mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico
e doutor em Teologia pela PUC do Rio de Janeiro
‘A comercialização
do Natal lançou densa nuvem sobre o sentido litúrgico e espiritual de um tema
fundamental da fé cristã : o Mistério da Encarnação. A sociedade de consumo,
alavancada pela publicidade, transformou o período natalino em fonte de lucro.
E o avalia como bom ou ruim pelo parâmetro econômico. Por conseguinte, o Natal
se identifica com comida e bebida, trocas de presentes, enfeites das casas,
comemorações carregadas de sentimentalismo vazio e muitas outras
exterioridades, descomprometidas com o Evento que está na origem de tudo
aquilo, o nascimento de Jesus de Nazaré.
Subjacente ao
clima contagiante de fraternidade, a comover até corações duros, está o
paradoxo de se deixar fora da festa aquele a quem se festeja. Estando Jesus
excluído, seu lugar é ocupado pelo Papai Noel, cuja imagem onipresente de
velhinho bonachão coloca o homenageado de escanteio, relegando-o ao
esquecimento. O caridoso São Nicolau (séc. III-IV), que está na origem da
tradição de distribuir presentes às crianças, foi recriado pela publicidade da
Coca-Cola e introjetado no imaginário infantil. O Menino Jesus e o presépio
estão fora de cogitação, quando o tema é o Natal dos publicitários, dos
comerciantes e dos consumidores.
Outra vertente do
paradoxo natalino diz respeito à contaminação das consciências de pessoas
autodenominadas cristãs e, até mesmo, engajadas em instituições eclesiais. O
poder de convencimento da mídia anestesia-lhes as consciências, nivelando-as
com quem está longe de se declarar cristão e abraçar o ethos evangélico como
projeto de vida. As celebrações natalinas da sociedade de consumo colocam no
mesmo patamar, sem qualquer distinção, muitos que, da boca para fora, professam
ser discípulos e discípulas de Jesus e quem está, simplesmente, interessado em
comer, beber e festejar. Triste destino do projeto de Jesus de Nazaré!
A beleza do Natal
cristão alicerça-se na correta compreensão de um versículo lapidar do evangelho
de João : ‘O Verbo fez-se carne e armou
sua tenda entre nós!’ (Jo 1,14). A primeira parte da afirmação aponta para
algo de extrema relevância, qual seja o encontro da transcendência e da
imanência, do divino e do humano, da eternidade e da história, do absoluto e do
relativo no advento de Jesus de Nazaré, em quem ‘o Verbo se fez carne’. Paralelamente ao processo de humanização da
divindade, acontece a divinização da humanidade. Tal convergência do humano e
do divino abre perspectivas insuspeitadas de interpretação de Gn 1,27 : ‘Deus criou o ser humano à sua imagem, à
imagem de Deus ele o criou’, onde ambas as dimensões se fazem presentes na
intenção do Criador.
A metáfora da
segunda parte do versículo joanino sublinha a dinâmica do Mistério da
Encarnação, feita de simplicidade, de escondimento e de pobreza. ‘Armar a tenda’ evoca provisoriedade,
fragilidade e, sobretudo, solidariedade. O Verbo que se faz carne, jamais, será
refém de estruturas imponentes e sólidas, sem dinamismo histórico, descoladas
da caminhada do Povo de Deus. A tenda, pelo contrário, favorece a mobilidade,
de modo a se poder estar onde está a humanidade carente de salvação, em sua
eterna peregrinação. Ela permite ao Verbo ser, de fato, ‘Emanuel’, na vida das comunidades de fé, em marcha, rumo à comunhão
definitiva com o Pai. O Verbo peregrino recusa-se a se tornar refém e se deixar
enquadrar em dogmas e esquemas caducos. Ele é livre para armar e desarmar sua
tenda para estar onde a humanidade clama pela misericórdia do Pai.
O texto joanino
exige pensar a antropologia cristã em perfeita sintonia com a cristologia. Em
outras palavras, o evento Jesus de Nazaré torna-se referência para se falar da
humanidade. Assim, quanto se afirma dele, se desdobrará nas afirmações a
respeito de qualquer ser humano. Um imenso desafio a ser enfrentado diz
respeito ao descompasso instaurado entre antropologia e cristologia. Uma
cristologia em tom maior, exaltando a divindade de Jesus e seu total
enraizamento em Deus, contrapõe-se a uma antropologia em tom menor, que acusa o
ser humano de pecador e considera a humanidade massa damnata, ‘gemendo e chorando neste vale de lágrimas’.
A superação do descompasso acontece na perfeita convergência entre antropologia
e cristologia, ambas feitas em tom maior, recusando-se a ver o ser humano pelo
avesso. A humanidade e a divindade de Jesus de Nazaré encontram-se em cada ser
humano, ‘imagem e semelhança de Deus’.
O tempo litúrgico
do Natal convida-nos a recuperar a dignidade de cada ser humano, ao detectar a
divindade que carrega dentro de si. A antropologia cristã de viés positivo
poderia ser uma porta aberta para a superação do pessimismo que distorce a
visão de muita gente, levando-as a rotular o semelhante de maneira incompatível
com os anseios do Criador. Se fôssemos capazes de vislumbrar o divino que
existe no mais íntimo de nós e no mais íntimo do nosso próximo, com certeza,
estaríamos aptos para construir o mundo mais justo, humano e fraterno, ansiado
por todos.
Por outro lado, o
Natal confronta-nos com a enorme responsabilidade de reverter o processo de
desconstrução da civilização, que caminha a passos de gigante e se torna
visível, mormente, na banalização da vida e no desrespeito aos direitos humanos
elementares. A recordação do nascimento de Jesus de Nazaré estimula as pessoas
de boa-vontade a se empenharem, de corpo e alma, no restabelecimento da
dignidade humana aviltada, para que, nelas, brilhe luminoso o clarão da divindade
que carregam dentro de si. Ao se fazer humanidade e habitar entre nós, o Filho
de Deus revelou a beleza escondida em cada ser humano.
Um pensamento
lúcido de Santo Atanásio (séc. III-IV) – ‘Deus
se fez homem, a fim de que o homem se tornasse Deus’ – ilumina o sentido do
Natal. A isso, a teologia oriental chama de théosis, divinização ou deificação
do humano. Cada Natal é um convite aos discípulos e às discípulas de Jesus para
deixarem transparecer a riqueza da divindade, escondida no mais íntimo de si.’
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