segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A ferida e o vazio

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘Podemos entender como o mundo ocidental, de antiga matriz cristã, hoje se sente abalado e ferido. Ferido também nos valores que considera seus, em particular o do acolhimento aos necessitados e aos perseguidos, defendido por muitos nos últimos meses frenéticos, diante da massa crescente de imigrantes que continuam a chegar à Europa em fuga da guerra e do terrorismo islâmico. É claro que os atentados de Paris favorecem quantos são contrários ao acolhimento, quantos vêem em cada imigrante um potencial terrorista.

Mas, olhando bem, os terroristas que agem na França não são — pelo menos até agora — imigrantes que chegaram há pouco à Europa, mas filhos ou até netos de imigrantes que vieram há muitas décadas, nascidos e crescidos aqui, portanto cidadãos para todos os efeitos. Mas trata-se de cidadãos que não assimilaram o sistema de valores que lhes foi transmitido pela escola, o valor da laicidade e da igualdade, e em particular da liberdade individual garantida a todos.

Muitos comentaristas dizem nestas horas que a culpa é de uma malograda integração, sobretudo profissional e social. E não obstante haja muita verdade nisto, contudo podemos perguntar que integração economica é possível hoje, quando estão desempregados inclusive os jovens franceses, e a crise da escola torna cada vez mais difícil — se não impossível — a ascensão social para as classe subalternas. Portanto, não é apenas um problema dos filhos dos imigrantes, mas eles vivem-no de modo diverso, juntamente com alguns jovens europeus que se une a eles na frente do ódio.

A este propósito, é muito mais convincente a análise de Farhad Khosrokhavar, sociólogo iraniano que há anos estuda a imigração islâmica na Europa, num ensaio publicado no número do passado mês de Junho da revista «Études». O estudioso identifica a crise que leva os jovens à ruptura com as sociedades ocidentais, não tanto na rejeição dos valores que elas oferecem, mas sobretudo no vazio de regras morais que os recebe no novo mundo. No constrangimento com que no Ocidente de hoje é aceite o seu modo de se propor, que frisa a acentuada diferença entre os sexos, enquanto o modelo vencedor é o da sua anulação.

Numa sociedade em que tudo parece lícito e possível para o indivíduo, em que as relações entre os sexos estão desprovidas de normas, em que se evita qualquer resposta relativa à morte e à vida no além, os jovens só podem esperar numa boa remuneração que permita um nível crescente de consumos. Solução frágil da qual, de resto, hoje estão excluídos. Portanto, o sociólogo iraniano interpreta a corrida ao fundamentalismo como um sessenta e oito invertido no qual, em vez da libertação, se procura um mundo de regras onde encontrar dignidade para além da condição economica e um significado seguro para a existência.

Esta interpretação, muito mais penetrante e aguda do que aquelas que estamos habituados a ler e ouvir, revela como é ardilosa a esperança de enfrentar este problema frisando a laicidade, impelindo as religiões à clandestinidade e ao indizível. E, ao mesmo tempo, abre novas responsabilidades — mas também novas possibilidades — à obra das mulheres e dos homens de fé.’  


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